Cerca de 1980 veio ao Brasil o brigadeiro
Jasmins de Freitas - já então na reserva - e que em 1958/59 como
capitão, havia sido diretor do meu tirocínio (4° ano da Academia
Militar) na Escola Prática de Infantaria em Mafra. Ali
estabelecemos sólida amizade, e como o seu filho José António
emigrasse para o Brasil (Franca) e ali tivesse casado, eu e
minha mulher fomos convidados para seus padrinhos, o que
proporcionou novos encontros. E como sempre me contatavam quando
vinham a São Paulo, combinamos um almoço em minha casa, para o
qual também convidei os irmãos João e Francisco Sarmento
Pimentel, além do major Queiroz, casado com a filha de um
imigrante local e então de visita à família da esposa.
No dia e hora combinada, minha mulher e eu
recebemos os seis convidados, a tornar o almoço um evento
inolvidável, já que nenhum/a deles/as conhecia a minha
residência ou havia antes degustado as delícias culinárias em
que minha mulher é mestre. No living anexo à sala de almoço,
foram instaladas mesinhas com alguns aperitivos regionais
especiais – afinal, especialíssimos eram os convidados – aos
quais iam sendo oferecidas as bebidas adequadas como aperitivos,
que para Sarmento Pimentel se reduziam ao Porto seco e ou
aguardente, pois não tomava – nem mesmo entravam em sua casa –
whisky ou quaisquer outras bebidas importadas não portuguesas.
Quando apresentei o casal Jasmins de
Freitas ao velho capitão foi uma festa, mas quando chegou a vez
do major Queiroz (então comandante da Divisão da PSP de Lisboa
com sede na Praça da Alegria), Sarmento Pimentel, após ouvir a
informação de que ele era comandante de divisão da Polícia de
Segurança Pública, franziu a testa, contraiu as sobrancelhas,
arrebitou o nariz, semi cerrou os olhos e, como que para
confirmar, perguntou: você é da polícia? Mas o Capitão já tinha
festejado seus noventa anos sendo um “monumento” vivo, pelo que
os presentes fizeram “ouvidos moucos”, como se não tivessem
ouvido a pergunta, nem presenciado a mímica que a acompanhou,
que revelavam claramente certo desapreço pela ‘polícia’. E mesmo
eu, que tinha absoluto a vontade com ele, jamais abordei o
assunto.
Convidados a ocupar seu lugares à mesa,
todos se levantaram e a ela se dirigiram, mas Sarmento Pimentel
encarou as duas portas – ao lado e em frente da larga entrada da
sala de almoço – então fechadas, e perguntou onde davam acesso,
tendo sido informado que a porta ao lado dava para a casa de
banho, e a porta em frente para a cozinha. Ato contínuo o
Capitão abriu a porta de acesso à cozinha, com o falso argumento
de que gostava de apreciar as novas ‘máquinas’ das cozinhas
modernas, mas, na realidade, querendo certificar-se da
existência – ou não – dos cuidados de higiene que exigia em sua
própria residência. E com a maior tranquilidade tudo
‘bisbilhotou’ e tudo pareceu aprovar. Estava salva a “honra do
convento”.
Em seguida – tranquilamente - o nosso
convidado regressou à sala de almoço, ocupou o lugar que lhe
estava destinado e sentou-se todo sorrisos, expressão de
contentamento (ou alívio) que – de tão manifesta – lhe não era
habitual. Mas eu só tive a confirmação definitiva de que
Pimentel tinha aprovado – plenamente - as condições de higiene
da cozinha onde fora confeccionado o seu almoço (eu havia
indicado a minha esposa os seus pratos prediletos), quando, ao
longo do repasto, constatei que ele se servia sem parcimónia,
comendo com satisfação e elogiando tudo – entrada, peixe, carne
e sobremesas – exibindo ainda certa exuberância que raríssimas
vezes eu nele tinha presenciado. Mas isso tinha uma
justificação.
A safra vinícola do ano anterior – na minha
aldeia, que produzia um tinto famoso – tinha brindado a minha
adega familiar, com o melhor vinho tinto das últimas décadas, de
linda e acentuada cor Ruby, sabores frutados do campo, como
framboesa, amora e medronho; taninos e ácidos quanto baste, a
darem ao néctar um equilíbrio notável, uma maciez inigualável,
aveludada, que acariciava a faringe quando mergulhava nos
sensíveis meandros dos delicados aparelhos digestivos;
entretanto, das taças de boca larga, emanava um bouquet
que decerto deixaria inebriados os deuses Dionísio e ou
Baco, primeiros grandes apreciadores dos fermentados de suco de
uva. Mas o vinho apresentava um DETALHE, que
a ninguém informei: TINHA 16 graus !!!.
José Verdasca
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