Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . #57. março-abril 2016 . índice



João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração, Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.

JOÃO PEREIRA DE MATOS

Pessoa, epicurista

Este texto foi apresentado no Colóquio Internacional «Na fronteira entre o Mito e a História: Representações do Espaço e do Poder na Antiguidade» organizado pelo CHAM nos dias 23 e 24 de Abril de 2015 na FCSH/Universidade Nova
 

1. No âmbito do projecto pessoano mais vasto de reconstrução do paganismo, um dos heterónimos – Ricardo Reis – abraça explicitamente as teorias epicuristas embora, como veremos, seja um epicurismo peculiar, transformado ou metamorfoseado pelo influxo pessoano numa doutrina em alguns pontos diversa daquela que está plasmada nas fontes epicuristas. No entanto e apesar disso, ainda é coerente com eles.

Num texto com a epígrafe F. Reis, sendo portanto atribuído a Frederico Reis (1), sintetiza-se, de modo exacto, o epicurismo ricardiano (2): 

Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis. Tentaremos sintetizá-la.

Cada qual de nós – opina o Poeta – deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros e procurando apenas, dentro de uma sobriedade individualista, o que lhe agrada e lhe apraz. Não deve procurar prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas.

Buscando o mínimo de dor ou pena (2), o homem deve procurar sobretudo a calma, a tranquilidade, abstendo-se do esforço e da actividade útil.

Esta doutrina, dá-a o poeta por temporária. É enquanto os bárbaros (os cristãos) dominam que a atitude dos pagãos deve ser esta. Uma vez desaparecido (se desaparecer) o império dos bárbaros, a atitude pode então ser outra. Por ora não pode ser senão esta.

Devemos buscar dar-nos a ilusão da calma, da liberdade e da felicidade, coisas inatingíveis porque, quanto a liberdade, os próprios deuses – sobre que pesa o Fado – a não têm; quanto a felicidade, não a pode ter quem está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto a calma, quem vive na angústia complexa de hoje, quem vive sempre na espera da morte, dificilmente pode sentir-se calmo. A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer.

Tudo isto se apoia num fenómeno psicológico interessante: numa crença real e verdadeira nos deuses da Grécia antiga, admitindo Cristo (por vezes tido como antagónico, não só quando desperta o espírito cristão, porque esse é que é o inimigo [] do paganismo) como um deus a mais, mas mais nada – ideia esta de acordo com o paganismo e talvez em parte inspirada pela ideia (puramente poética) de Alberto Caeiro de que o Menino Jesus era «o deus que faltava».

 

2. A reconstrução do paganismo é a resposta ao diagnóstico de decadência da cultura Ocidental, enferma pela influência malsã do cristianismo. Quem o corporiza, porque é o mestre dos outros, é Caeiro (3) que cumpre o ideário desta renovação não o intelectualizando (como Reis ou António Mora) outrossim pela vivência de uma prática poética (ou seja, pelo influxo, de uma ideia «puramente poética»). Os outros (heterónimos, semi-heterónimos, Pessoa ortónimo) seguem-lhe o exemplo mas adaptam esse objectivo geral às suas próprias inclinações. Dão-lhe um cunho idiossincrático e é assim que entre tal comunidade possam por exemplo coexistir epicurismo e estoicismo. São diferentes aproximações que acrescentam complexidade e densidade ao drama em gente pessoano. Longe, aliás, de esgotar a sua propensão para o pensamento (e sentimento) místico ou esotérico como o amplo conhecimento da astrologia e a proximidade com os campos rosacrucianos e de exegese maçónica atestam, todos eles fugindo da dogmática cristã que explícita ou implicitamente os combateu (como é exemplo paradigmático os anátemas que a Igreja infligiu à Maçonaria), o que só demonstra a independência intelectual deste autor vário que raia a iconoclastia. Assim sendo, mesmo o ambicioso projecto de reconstrução do paganismo é tão-só uma configuração concreta da amplitude esotérica de Fernando Pessoa, não a esgotando mas em intersecção dinâmica com as outras referidas linhas de análise. 

 

3. Ricardo Reis professa um «epicurismo triste».

Ora, é a natureza deste adjectivo que faz toda a diferença. É património comum à maioria das doutrinas com reflexos existenciais um certo pendor celebratório na exacta medida em que pela prossecução delas e no sentido em que se logre cumprí-las haverá o necessário correlato de felicidade.

Também assim é com o epicurismo: o cerne das concepções ontologico-existenciais é o de afastar o medo relativamente aos males que comummente afligem o humano e, com isso, alcançar uma vida  mais feliz. É o olhar sobre a finitude humana nas suas várias declinações (a doença, a dor, a morte) ou até sobre as suas imperfeições (a injustiça, o conflito social) mas sob uma perspectiva redentora que permite concretizar um ideal de vida onde o bem-estar existencial que essa via de sabedoria proporciona é sinónimo de um sereno contentamento ou de uma quietude activa de uma «sobriedade individualista» na procura da «calma» e da «tranquilidade» . Ao introduzir o qualificativo de «triste» abre-se, contudo, um abismo na concreta compreensão do cerne do epicurismo. O que significa esse abismo? Significa que há uma nova dinâmica existencial em palco: apesar de se seguirem tais preceitos há uma indeclinável tristeza que acomete o sujeito, uma melancolia que vai à essência do poético que se não distingue de uma rigorosa hermenêutica existencial: o sujeito pode, racionalmente, encarar de modo positivo a finitude humana mas é o lamento por ela que provoca a deflagração poética (cujo resultado pode, ou não, ser um labor artístico ou, tão-só, uma vivência específica, na vertigem dessa contardictio in adjecto: um olhar lúcido, racional e sereno sobre a dimensão existencial, uma vivência hiper lúcida, dilacerada e em lamento sobre a estetização da vida).

 

4. Nesta conformidade, bem se compreende que a reconstrução do paganismo transcenda uma tomada de posição meramente filosófica, é o motor e o combustível para uma concreta actividade poética, no conjunto da rede heteronímica ou do drama em gente de Pessoa.

 

5. Seja como for, se se tivesse de destilar uma essência do epicurismo dir-se-ia que longe de se buscar o prazer pelo prazer, o que seria um mero hedonismo, procura-se a melhor maneira de lidar com a dor (quer em sentido físico quer em sentido psíquico, v.g., o medo, como por exemplo o medo da morte que é, a seu modo, uma dor psicológica) compreendendo a subtil interacção que há entre prazer e sofrimento. Não se deve, assim, «procurar os prazeres violentos», e não se deve «fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas». Todo o equilíbrio pressupõe uma certa neutralidade: aceitar o que é inevitável mas que pode ser neutralizado, se tal aceitação proporcionar serenidade; apreciar o prazer como algo positivo (mesmo algum prazer que possa estar contido numa situação de dor, como numa doença); entender que há dores que são necessárias para se alcançar um bem-estar ulterior (aquando de uma cura) e assim sucessivamente. Ora, como se verá, transformar esta demanda pela sabedoria num princípio poético significa reflectir esteticamente no valor do prazer e da dor no desiderato de um equilíbrio no qual, uma vez atingido, se exsuda uma noção de belo que, comummente aliás, se associa àquilo que é «clássico». O belo como proporção equilibrada, traduzindo-se numa via poética em estreita relação com a vida. Portanto nesta acepção, o epicurismo – transformado por Reis – é princípio fecundo de trabalho artístico.

 

6. Todavia, tudo isto é relativo: uma doutrina temporária enquanto a barbárie (corporizada no cristianismo) predomina e a «calma», a «liberdade» e a «felicidade» preconizadas pelo epicurismo não são mais do que ilusões, inatingível utopia da condição moderna de quem «está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver».

 

7. Dizer isto, «um epicurismo triste», ou mesmo «profundamente triste» que apenas busca uma «calma qualquer» significa estetizá-lo. Desvirtuar, por um lado, a sua estrita dimensão racional mas, por outro, abri-lo a uma dimensão daimónica, isto é, de inspiração poética que como intuição racional é vertida no caso de Pessoa, em escrita, na figura de Ricardo Reis, e em criatividade manante. Portanto, numa outra maneira e quiçá até mais radical, em activa quietude de uma «calma qualquer».

 

8. Note-se a dimensão que se acrescenta, no excesso de profundidade que o qualificativo «triste» implica. O contentamento, puramente racional, do sábio é, de certo modo, plano na unidimensionalidade da sua (auto)suficiência. A compreensão poético-emocional (certamente um dos sentidos possíveis da noção de sentimento poético) da vida, não sendo antitética da primeira tem, todavia, um revestimento de coloração emocional que não é mera apreciação subjectivo-sentimental (por isso, talvez, de um grosseiro romantismo) mas muito mais próximo do recorte conceptual de uma Groundstimmung. Isto é, uma emoção fundamental que nasce de uma fonte originária (Ursprung) de compreensão do mundo verdadeiramente existencial e não meramente existensiva, para usar aqui, de modo explícito as contraposições da analítica hedeggeriana (que distingue o domínio originário e autêntico do ser-o-aí – o Da-sein – que é o pleno campo ontológico do plano mediato a que chama o meramente ôntico). Isto é utilíssimo para fornecer o enquadramento de base que o epíteto «triste» aposto à doutrina epicurista introduz, ampliando-lhe afinal o escopo e alterando-lhe, porque sutbtilizado, o sentido.

 

9. Mas o significado poético deste epicurismo tem ainda outro alcance. Pessoa atribui-o, nesta configuração, a Ricardo Reis portanto a este interveniente da rede heteronímica que, laboriosamente, foi construindo e embora outros personagens tivessem um matiz diverso na sua aproximação ao paganismo, por vezes, de tal modo se confundem ou são tão subtis as diferenças que filologicamente se torna difícil atribuir por exemplo a Reis ou a António Mora (4) este ou aquele texto não assinado. Ou seja, este epicurismo tem a poeticidade de uma emoção ficta, de um perfilhar filosófico de teatro onde cada heterónimo (ou até Pessoa, ortónimo) se densifica por virtude da complexidade textual e em assim da especificidade de um pensamento filosófico e de uma tradição que segue, altera ou rejeita. Há, assim, um aspecto instrumental neste epicurismo poético: enriquecer Ricardo Reis, densificando-o.

 

10. Uma última palavra para agradecer ao Doutor Nuno Ribeiro e à Professora Leonor Santa Bárbara a ajuda preciosa para a elaboração destas breves reflexões. 

 

 

Bibliografia:

PESSOA, Fernando, Prosa de Ricardo Reis, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.

PESSOA, Fernando, O Regresso dos Deuses e outros escritos de António Mora, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.

HEIDEGGER, Martin, Being and Time, traduzido por John Macquarrie & Edward Robinson, Malden: Blackwell Publishing, 2007.

EPICURO, Cartas, Máximas e Sentenças, Tradução de Gabriela Baião, Edições Sílabo, 2009.

(1) Cf. PESSOA, Fernando, Prosa de Ricardo Reis, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003,  pag. 314.

 

(2) Cf. op. cit., pag. 280.

(3) Ricardo Reis tem o grande projecto de prefaciar Caeiro. Assim como António Mora a influência do mestre Caeiro é determinante para a sua praxis literária, quer na poesia quer na prosa ensaístico-filosófica.

(4) Cf. Prefácio op.cit.

 
 
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