“A Esperança é qualquer coisa que leva
tempo a perder”
No dia 16 de Maio de 1974, pouco depois do meio-dia, chegou ao
aeroporto de Lisboa João Sarmento Pimentel, após
um exílio de 47 anos no Brasil. Aguardavam-no
figuras tão incontornáveis na luta contra o
Estado Novo quanto ele: Mário Soares, Maria
Barroso, Raul Rego, Miguel Urbano Rodrigues,
Urbano Tavares Rodrigues e Lúcio Tomé Feteira,
representantes da Junta de Salvação Nacional, de
partidos políticos, ex-exilados políticos e
amigos.
“A maior homenagem que posso ter é a liberdade e a
democracia”, frase proferida por Sarmento
Pimentel, em parangonas saídas nesse dia no
jornal República, tal como um outro artigo,
intitulado “Um Grande Capitão” da autoria de
Victor Cunha Rego, referindo a chegada do
“capitão”, com 86 anos, “herói na África, que
conheceu palmo a palmo, muito antes de os soldados
portugueses que lá estão agora terem nascido.
Foi herói na Flandres muitos anos antes de nós
termos nascido. Derrubou a monarquia no Porto e
consolidou a República (…) Sem nunca dar
importância descabida às polémicas ideológicas,
praticando a política na sua dimensão concreta,
foi para nós, todos, que andámos pelo mundo sem
direito de voltar a Portugal durante décadas, um
exemplo”.
No dia seguinte, foi recebido carinhosamente na cidade do
Porto, saudando o povo, de uma das janelas da
estação da Campanhã, com as palavras “Temos por
obrigação defender a República e a Democracia”.
Um pequeno discurso, canalizado numa narrativa
sobre a vida de exilado e combatente na
revolução de 5 de Outubro, culminou com o
cântico do hino nacional por parte da multidão,
constituída por amigos, correligionários e muita
população, alguma proveniente do Eixo - Eixes,
sua terra natal; muitos traziam cravos
vermelhos, bramindo “vitória”.
Inolvidáveis foram os primeiros dias que se seguiram ao 25 de
Abril, cumulados por uma “alegria imensa”
(1),
uma sensação galvânica de sentir-se “como parvo,
a rir-se para toda a gente”, com o corolário de
ser abraçado e beijado nas ruas e, quem não
sabia de facto quem ele era, vinha colocar-lhe
um cravo na lapela; outros, os que tinham visto
o seu rosto na televisão ou nos jornais,
pediam-lhe um autógrafo; uma catarse com o
passado de exilado político, iniciado no dia 7
de Abril de 1927, ao desembarcar na Cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro, na sequência da
fuga desencadeada pela Proclamação
revolucionária de 3 Fevereiro de 1927, de que
foi um dos quatro signatários (2),
contestando a situação política iniciada a 28 de
Maio de 1926.
Clichés da sua história de vida
No outro lado do Atlântico, reconstruiu a vida
“desafogadamente”, com um nível aproximado ao de
Portugal. Na primeira edição do seu livro
“Memórias do Capitão”, adotado nas universidades
brasileiras na cadeira de Literatura Portuguesa,
referiu o primeiro ano, no Rio, sem trabalhar e
os passeios com o almirante Gago Coutinho,
aquando das “escapadelas” deste ao Brasil. Os
catorze anos em que trabalhou na empresa “Cia.
Souza Cruz”, permitiram-lhe, inclusive, manter
os quatro filhos a estudar no Colégio Mackenzie.
O encontro com o multimilionário português Lúcio
Tomé Feteira, o grande industrial, homem
generoso e inteligente, também ele expatriado,
proporcionou-lhe novas perspetivas económicas,
ingressando, durante uma década, numa arrojada
aventura, pautada pelos meandros dos “altos
negócios”, vindo a desempenhar a função de
co-fundador da primeira fábrica de vidro plano
do Brasil. No país de acolhimento, veio a
tornar-se, também ele, o protótipo de português
bem-sucedido, um íman de emigrantes audaciosos
que, em grande número, afluíram á sua porta, a
perscrutar o ingresso na Companhia em que
trabalhava.
Num registo intrinsecamente contestatário, “contra tudo e
todos”, que acompanhou Sarmento Pimentel desde a
escola, os seus artigos na “Seara Nova” (3) incidiram
predominantemente sobre a instrução militar, o
analfabetismo, Angola e Brasil, e neles, em
particular na coluna “Cartas do Brasil”, a sua
voz acutilante fez-se ouvir, recorrentemente,
sobre a emigração confrangedora e “à doida que
cada vez mais compromete o futuro da grei”,
constituída por ”cardumes de gente miserável e
andrajosa”
(4); insurgiu-se
contra o afluxo da mão-de-obra analfabeta,
totalmente impreparada e desprotegida, sugerindo
veementemente, a proibição da mesma.
Na sua residência de São Paulo, onde a família estava radicada
(e passará a residir oficialmente a partir de
1954), realizavam-se tertúlias com a
participação de uma plêiade de intelectuais
portugueses, nomeadamente Jaime Cortesão,
Fidelino Figueiredo, Jorge de Sena e Fernando de
Lemos mas, também, de intelectuais brasileiros,
como Paulo Duarte, Júlio de Mesquita Filho, o
professor António Cândido, Sérgio de Buarque de
Holanda, Almeida Prado, Florestan Fernandes,
Lygia Fagundes Telles e Rui Coelho
(5).
Nos primeiros doze anos a residir no Brasil, efetuou o
pagamento da renda da casa em Portugal e
permaneceu com as chaves no bolso (6),
com a expetativa de um volte-face no país. Na
correspondência confiscada pela Pide,
endereçada, na maior parte, para o amigo Hélder
Ribeiro, residente no Porto, a nostalgia e a
convicção no regresso enquadram o discurso
persistente pela queda do Estado Novo e
subsequente deflagrar da democracia e a
reimplantação da liberdade. A herança da
ditadura, no seu entender, estava a arraigar no
povo português, genuinamente bondoso, o
despoletar de um espírito vingativo,
inquisitorial, sem respeito pela dignidade
humana.
O primeiro documento que consta
do
Processo Individual da PIDE /DGS de João
Sarmento Pimentel e do irmão Francisco
refere-se a um panfleto intitulado “Intelectuais
Portugueses Livres Denunciam o Terror
Salazarista”, extraído do jornal brasileiro
“Última Hora”, publicado no Rio de Janeiro, a 28
de Março de 1959; o último documento do
processo tem por data 12 de Outubro de 1973, no
qual refere que virá a Portugal no início do
verão de 74 “se os deuses e os donos (expressão
sublinhada pela censura) não me embargarem as
passadas de emigrado político, inimigo do Estado
Novo e cambada fascista (…) necessitado
moralmente de um derradeiro olhar á pátria
madrasta, para não a levar com rancores no
magoado coração”. O discurso inexoravelmente
saudosista sobre a Pátria, alicerçado por uma
procrastinada, mas inequívoca, esperança de que
haveria de pisar o solo português antes de
falecer, são angustiantemente reincidentes ao
longo das cartas que integram o processo, folha
a folha. Deprimido pela morte da mulher, a “doce
e corajosa companheira” de meio século, a vinda
a Portugal “contribuiria para suavizar a (…)
angústia, sofrimento, desânimo” (7); acontecimentos comezinhos, como o casamento de
uma sobrinha, em Londres
(8), têm o espectro da ameaça, de um perigo latente,
tendo o irmão Francisco sido dissuadido, por
pessoa amiga, a “desviar a rota” de Portugal, a
caminho de Inglaterra, em virtude do processo a
decorrer, na “Formosa Estribaria”, contra ele e
todos os envolvidos no manifesto do cessar da
guerra em África e independência das colónias.
Durante catorze anos as palavras de Sarmento
Pimentel foram criteriosamente auscultadas em
surdina pelos agentes da Policia de Informação
sendo que, nos últimos anos, o “epigrafado”
tinha a convicção de ser alvo de vigilância,
referindo explicitamente na carta a um amigo, o
facto de esta ter chegado mais de um mês depois,
em correio comum, questionando, com ironia “se a
minha prosinha de fraterna amizade se perdeu no
labirinto dos carteiros" (9).
Na mesma missiva, dactilografada pelos agentes
da Pide, refere ainda, a solicitação a Mário
Soares, aquando da sua passagem pelo Brasil com
destino aos Estados Unidos, para que
interviesse, relativamente á apreensão em
Portugal, do primeiro volume das “Memórias”.
“o drama do meu exilio foi sempre este
complexo do regresso”
Em finais de Maio de 1950, na sequência da amnistia aos presos
políticos e por condição imposta ao “ditador”,
para o ingresso de Portugal na O.N.U., pisou o
solo português, após “23 anos e alguns meses” de
exílio, “para Inglês ver” (10). Em Lisboa, visitou amigos, promoveu encontros
com companheiros, alguns dos
tempos da 1ª Guerra Mundial (remetidos para a
situação de reforma compulsória), intelectuais,
ostracizados e espezinhados pelo regime e
definiu parâmetros, com os homens da “Seara
Nova”. Percorrido o norte do País, regressou á
capital, e após cinco meses de permanência em
Portugal, regressou ao Rio, no dia 15 de
Novembro. De volta a casa, reencontrou a vida de
exilado político, formatada na vida de um
dinâmico homem de negócios, no enleio da
indústria do vidro plano, o trabalho no
escritório e a inspeção á fábrica, em São
Gonçalo, “do outro lado da Guanabara”; ao final
do dia, as “visitas ao consulado dos
exilados”,
onde as publicações periódicas com notícias da
Metrópole afluíam sem demoras, bem como cartas
de amigos e outras informações, inevitavelmente
de cariz político mas, também, curiosidades
detalhadas sobre a situação de correligionários
que, estoicamente, ainda não tinham ido aumentar
o número de presos nas cadeias de Portugal ou
deportados para as Colónias. Retomou as
sistemáticas viagens de avião, “das sextas para
São Paulo e no primeiro de segunda para o Rio”.
Do registo das cartas a Fortunato Cardoso,
diretor de “O Comércio do Porto”, seu cunhado,
vê-se que partilha a intimidade familiar, a
debilidade física da mulher, Isabel, à beira dos
oitenta anos, e a visita diária do neto, filho
do Leopoldo, que vive uns andares acima; os
fins- de- semana, passados no campo, num local
emprestado pelo amigo Lúcio Feteira. O
sentimento empolgante e honroso de integrar a
equipa de Feteira, constituída por portugueses,
nomeadamente os engenheiros João Lopes Raimundo
e Cândido Souto Maior Torres Vouga, o comandante
Jaime de Morais, Francisco Rafael Rodrigues, e
comandante Campos Mota; por belgas, como o
técnico Maurício Lefevre e o engenheiro Octávio
Verry, tendo a colaboração do Dr. San Thiago
Dantas e Hermes Lima, brasileiros especializados
na área da jurisdição, os conceituados advogados
Renato Tocoulat e Alcy Demillecamps, bem como
industriais António Prado Júnior e Sebastião
Pais de Almeida, cujo corolário desse império
incidia no grande industrial português.
Após a Revolução de 1974, João Sarmento Pimentel voltou ao
Brasil, a segunda Pátria, onde os filhos
cresceram e viviam, vindo a falecer em São Paulo
com 99 anos, no dia 13.10.1987. A agrura com que
viveu, com resiliência, será, provavelmente,
inerente ao exilado político, especificada no
segundo volume das “Memórias do Capitão”: “O
drama do meu exílio foi sempre este complexo do
regresso. Nunca quis. Ou melhor, nunca pude
radicar-me em profundidade nesta terra
acolhedora de Piratininga, que estimo e me
interessa e conheço. Mas como sendo de próximos
parentes, não a minha. Já aqui cheguei tarde de
mais para me adaptar finalmente, ficar aqui, ser
paulista de corpo, alma e coração. Sou-o, sim,
por gratidão sincera”.
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