Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 56. janeiro-fevereiro 2016



Maria Toscano [Campo Maior, Maio/1963]: membro da APE; socióloga [ISCTE: Doutora (2010) e Lic. (1986); Univ. Nova de Lisboa: Mestre, 1993]; tem formação informal em Música (1968/70), Canto (1983) e Teatro (1978/83). Publicou 1 Romance; 9 Livros e 2 E-books de Poesia, e em Colectâneas poéticas. Outros projectos: Cafés-concerto e Leituras Encenadas (d. anos 80); Fado Branco (d. Fev.º/ 2012), com Ricardo Silva [Guitarra Portuguesa]; Poemas do Sul em 5 Cantos: edição de autora de 21 inéditos (2014/15).
 

MARIA TOSCANO

Que o teu peito guarde um coração rosado

1.

Que o teu peito guarde um coração rosado.

E cristalino como o mar. 

 

2.

Que o teu coração te resguarde o peito

de dores aflitivas, de sombras

de náuseas e de causas vendidas. 

 

3.

Que o teu coração puro te acompanhe

e sustente sonhos e anseios

— os olhos da tua alma vigiam

os nós os passos e abraços contidos

os risos e encantamentos gaiatos e

gestos de estar e ficar, silenciosos;

— meu amor anónimo e universal

traço do vigor macho da vida

porta para assomar a fêmea graça

que contida em mim caminha e me encaminha.

Que o teu peito te estremeça, cintilante,

te perturbe de improváveis afectos, fundos

te conquiste para o lado incondicional

do amor, o único porto amoroso

pois as ondas e os afectos são iguais

no momento da dança das marés.

Que os astros luminosos em teus dias

ardam e a tuas noites aconcheguem.

Possa teu sorriso maroto encantar

o rasto de quem perdido se encontre

pleno, à beira da dourada beira-mar.

Possa teu sentido de raiz aflorar

a concha inacessível e intocável

dos ansiados desejos.

Possa teu passo leve e firme guiar

os enxames de infelizes errando

ao largo da casa de água onde habitamos

há eras habitamos, sem outra consciência

que o arrepio e a impressão de nossas almas

de nossa íntimas vozes, almas inscritas.

Que o teu peito te proteja da aridez

da pedra que cobiça rocha e espuma,

da pedra invejosa de gente e algas

— pedra ou criatura vazia de amor de gente.

Possam as nortadas aliviar

tua solidão de traça suave,

tua exactidão cautelosa

terna e exacta, apesar das esquinas

apesar das quebras de medos e dias.

Permaneça em ti a presença inconstante

do banal mas doce cuidar cuidadoso

doce cuidado ali inteiro, como só pode

quem, mesmo sem saber, é flor de mar.

Que a rebentação das ondas te comova

tanto como este verbo me move e retém

aqui, extasiada frente ao oceano de prata

que é muito mais do que oceano, pois é o mar.

Possa o arrepiante voo destas vizinhas curiosas,

(o arrepiante e estridente voo das gaivotas),

alisar o traço destemido

de teu furor

herdado mas desprovido

da turbação dos dentros e dos sais.

Que teu dourado coração perene

ilumine ou reacenda a fantasia

da mão que, ao encontrar a outra mão,

emparelha, por fim, caminhos de linhas

ou puríssimas vibrações do que é terno

e pela pura ternura devém eterno.

Ouve-se "you look wonderfull tonight"

e dou por mim a rever bitolas critérios

e ideias encastradas doentes

que minam o coração da felicidade.

Possa teu coração permanecer

vibrando na paz, sereno na agitação:

- este o voto do Mestre que te remeto

meu amor anónimo que ainda não. 

 

4.

Que o teu peito guarde um coração excelente

capaz de sentir o erro e abandonar

desculpas traidoras da poesia.

 

Que o teu peito se entregue aberto e pleno

ao imaculado milagre da anunciação

ao radical milagre da ressurreição

da contemplação do que te supere nos outros

e, sobretudo, ao gesto do humano amparo.

Que o teu coração seja agente da ressurreição:

seja operário, proletário, soldado do “éme éfe á”

varina ou Maria das fontes e das searas

padre católico na pampa latino-americana

pastor protestante no vaticano corrupto

mestre budista ou sufi na bolsa de nova iorque

designer de humor na imprensa muçulmana

jovem pacifista em pleno campo de guerra.

Que o teu coração seja o milagre da redenção

que tanto te falta e há tanto te invoca e chama.

E saiba amar acima de todas as coisas, ámen.

Possa a palavra que desconheces ser-te anunciada.

Possa a luz que anseias ser-te soprada.

Possa a esperança ser inalada por tua alma

no ar que inspiras, ao ser-te inspirado.

Possam as pequenas e grandes asas serem-te casa

devirem tua casa de comoção, asas de abrigo

cantos de noivos encantados pela pureza

pelos gestos de ouro e límpidos de noivo,

pelos gestos de ouro e cintilantes da amada.

Que o teu peito se dilate, doce e silencioso

até abarcar o sussurro das folhas da oliveira

até dançar ao ritmo das ondas salgadas das orlas

até esvoaçar, inebriado, para o colo da claridade.

Possa a poalha do universo baixar a teus ombros

descer a teus seios e enlaçar-te, de gestos, as mãos

de actos gratuitos de entrega e desprendimento,

de gestos secretos e íntimos do entendimento.

Possas libertar-te da aguda dor onde militas

e acercares-te da magnífica, a esbelta entrega

da coroação pela mestre-mor, a esperança.

Sossega teus travessos desvarios.

Acalma tuas falas desesperadas.

Livra-te da corrupção da inveja,

do fraco arrepio que te dilacera

o olhar o passo a perspectiva e

polui o sangue amoroso em sangue vil.

Confia no invisível e intocável.

Aprende que o corpo magnífico da poesia

não se atrapalha nem admite a prisão

dos que retêm a fala o dom e a caridade

a pura dádiva da branda tenacidade.

 

Que o coração rosado te perturbe o peito

anunciando madrugadas ternurentas.

 

 

Sejam tuas veias antecipação do mapa,

da plena construção do destino

marcha, rumo em movimento lento.

 

Bem sabemos: o despertador está rouco ou chega sempre atrasado aos requisitos da alma.

 

Bem sabemos: o ouvido esquece o eco e qualquer pretexto vale o silêncio interno.

 

Bem sabemos: na clorofila resiste a básica orientação das folhas.

 

Bem sabemos: o sol borda a tom morno o rebordo da borda da voz.

 

Bem sabemos: as cantigas esvoaçam até encontrarem colo para aninhar-se.

 

Ergo a taça prateada, levanto alto

o cálice da rara ambrósia sagrada.

Bafejo a mão direita com bagas de uvas

e água sem mais estranhas colorações.

 

Bem sabemos: a mediatização da vida atrasa a acção de esperanças e utopias.

 

Atento no lado humano e, ante estes versos,

devolvo-lhes o lado adiado e desejado.

Possa tua memória viajar lisa e imperturbada

até ao ninho da candura e do sonhar.

Que teu peito te guarde, excelente coração. 

 

5.

Que o teu coração seja o pousio da esperança. 

 

6.

Que o teu coração resguarde a chama

lenta do compromisso com a terra

a vasta chama da aliança com as marés

a grata chama do encontro de amorosos

a farta chama do pueril encantamento.

Que o teu coração arqueje um pouco,

o bastante pouco do tempero certo

o tanto quê-bê do ígneo sal de prata

fervido entre os gestos e os passos

demoradamente entre palavra e abraços

de ramos dos seres majestosos com copa

de ramos dos seres amorosos com lava.

 

 

7.

Que o teu coração lateje em permanência

até ao fim dos séculos dos séculos, ámen.

É da eternidade esta minha fronteira

onde nasci me atraso me vivo e ardo

em cada verso-drama que me encaminha

em cada versículo-chama onde me aguardo

escondida sob estranhos nomes variáveis

pois todos somos apenas esse nome um.

Que o teu coração se abra ao fulgor

da maior viagem de entre todas que é ficar:

a vigente perturbação da seiva branca

atrasa a intensidade do pousar,

atrasa o ministério horizontal

o governo da única duração

designada por entrega e imanência

— prismas oclusos pela descartabilidade*.

 

* termo com que a autora designa a propriedade do que é descartável.

8.

Que o teu peito guarde um coração gracioso

isento de esporas e andaimes

liberto de rascunhos, tracejados,

hesitações do medo e cobardias.

Que teu peito guarde o coração da coragem

a semente do sonho e da vontade

a persistente floração dos cravos

enquanto a fraterna cidade demora

enquanto os campos oficinas e portos

são escritórios da vida em segunda mão.

Que o teu peito abrace a gratidão

e semeie versos ventejados pelo arrojo,

seja ventre da mais justa indignação

da mais digna intenção: a da humilde

mestiçagem dos sabores e dos amparos.

 

Que o teu peito seja o teu cálido ninho

que o teu peito seja tua fecundação,

teu ovo elementar, teu berço morno

enfim: teu colo, embalo e cântico mimoso

— te seja cioso e suave teu coração. 

 

9.

É este o caminho da celebração da vida

do nobre laudo esguio, aliado do travo a mel,

a sal e a outros sabores acres saciados

pelas insaciadas bocas do eros sapiente.

Este o caminho por fazer e desbravar

atabalhoado pela prova a outros-terceiros

comprometido com a vã externalidade

pois existe, só, na dobra do dentro

na discreta bainha dos sonhos gratos.

Este o limiar e a fronteira rósea,

bermas ou margens da libertação

e da mais intangível matéria

onde as margens se entregam ao leito

do caudal íntimo da serenidade.

Este o ângulo perplexo desde onde o rio

das incertezas se confunde com dormência

e traição legal, a traição prevista

nos cânones desta civilidade

onde os senhores matam com a mesma mão

da cobarde neutralidade e da revisão

de miniaturas e promessas vãs:

para que o cinzento permaneça

há que mudar figurantes e adereços.

Brilha, insinua-se o clarão de luz

ao largo da sofrida costa, receptiva.

Afago-te a mão calosa de dedos e medos:

que o teu peito guarde um coração aguado,

pouso do gratuito e eterno hemisfério

dúplice na holográfica ânsia do obter.

É esta a simplicidade das áleas

este o caminho da celebração da vida:

que o teu peito guarde a semente devida. 

 

11.

Que o teu peito — é como quem diz, tu

tua amada teu amor vizinho ou desconhecido —

te anime a guardares as 5 pedrinhas

numa mão e, na outra, o caule da revolução.

Que o teu peito nos seja acessível em flor, em cor,

em vibração alada das figuras de mitos, arquetípicas,

as reais senhoras da realidade profunda e real

onde tal caule mergulha a vibração, a revolução

que não acabou pois a viagem ao centro da terra

ao centro da serra das águas e das gentes está por fazer.

Que teu cravo resguarde as asas de teu peito

e seja ele que borde de esperança teu coração.

Que teu cravo transporte a revolução do centro

de teu peito para o centro da anónima emoção,

da anónima passagem de gentes rumo ao trabalho

da anónima romagem ao crédito bancário,

da anónima voragem dos indigentes pelas sarl

de capital anónimo, responsabilidade deslocalizada

e dignidade esvaída nos destinos seguros

onde afagam metal e notas podres de boçalidades.

Que o teu peito lembre, sempre, o valor do trabalho

o valor de saber fazer com arte e memória sábias

o valor de aprender a cadência das horas

o valor de tecer vida amor e prosperidade.

Possa teu coração destrinçar soberba de alegria

possa distinguir contentamento e vitória de vileza e roubo

possa diferenciar a brava luta da manipulação suja

diferenciar o ultraje e a corrupção da séria tarefa honrada,

e a sobranceria da pilhagem do vero sucesso, o de quem progride.

Possa teu coração — que é como quem diz, o de teu amor

ou de teus vizinhos ou o de todos nós —

negar-se a apagar trilhos de tempos e almas

recusar o desafio de matar a singularidade,

o espelho por olhar, o novo horizonte, as rotas

a desbravar e o peito a amar.

Possa teu coração ganhar-te, assim,

para a labuta cintilante dos sonhadores

incansáveis viventes da vida. 

 

12.

Possa a minha memória da menina

a caminho da escola interrompida

pelos avisos, segundo a vizinha,

do rádio clube sobre a capital

com direito a armas soldados e outras pessoas

inundando praças e ruas da cidade branca;

possa a minha memória de filha

chorosa por um pai em guerra dura

saudosa do pai na guerra tramada

no mato de outros onde os nossos e outros caíam

em nome ainda de outros que cá ficavam;

possa a minha memória da natureza domada

do riso moderado da ajuizada brincadeira

da saia arredondada, das curvas disfarçadas e,

sobretudo, da vida adiada ou suspensa

entre aerogramas e partidas e chegadas

entre idas e vindas de navios fardados

navios odiados cobiçando maridos, pais

e namorados de meninas domadas

e amantes de meninas adiadas:

possa esta memória dizer a teu coração:

Que o teu peito semeie versos de arrojo e

seja ventre da mais justa indignação

da mais digna intenção de liberdade

da mais justa ambição de dignidade

que ninguém te pode trocar por injúrias

nem mentiras descaradas da vil corrupção.

Possa, em nome da revolução de flores e amores,

teu coração ser o centro da indignação.

 

13.

Que o teu coração se expanda alumiado

pela interna faísca prateada,

guiado pelo raio prateado e luminoso

que te habita. que, generoso, habitas

e revelas em cada tremor das mãos

e assumes em cada estremecer de asa.

Que o teu coração se expanda sem aflição

nem outro significativo cuidado.

Que a calma dos suis sempre te acompanhe,

tua seja a bonomia e a temperança,

teus persistam os segredos, a confiança e

a contemplativa maneira de estar

sem mais atalhos nem compassos desfasados.

Que a tua pulsação alcance os ínfimos interstícios/

da matéria vibrante, amante

- que o teu pulsar, habitando o desejo,

deseje multiplicar-se infinitamente

deseje permanecer na duração

inquieta do instante e da eternidade.

Que o teu coração seja o próprio pulsar

e o receptáculo do jorro da vida

- as veias do arrojo são as mesmas

por onde passam as causas mais temidas.

 

14.

Que o teu coração seja ambicioso

e cioso da franca fraternidade

cioso da gaiata e contagiosa,

da pueril e fresca gargalhada.

Que o colo de teus sonhos mais risonhos

saiba aguardar pelos rebentos e musgos

da idade majestosa sem cuidados

nem outros requebros destemidos

que contemplar intuir saber e ser.

Que o colo dos teus braços maduros

enlace céu e nuvens num só abraço

às meninas de teus olhos endereçado.

Possa o horizonte descansar um pouco

entre as rugas de alegria de teu lábio

encarnado — que é como perduras

na memória do mais cioso amado

no travo saudoso de teu homem e amigo

constante e firme como a fraternidade

com que o teu franco coração anseia

acertar o compasso, aliar o passo,

alinhar o espaço da pujante veia-mãe,

o espaço onde a alquimia do verso

abre a dor ao soluço de bonança,

à reconciliação entre o convexo e o côncavo,

quando chega a idade de refazer universos.

.

 

15.

ao passear na marginal a vida ensina-nos o valor de distância e libertação.

 

© Maria Toscano.

Figueira da Foz, Casa do Caes e Gelataria Emanha; Comboio Inter-regional Cbr.ª-FF

20 a 29 de Abril/2015.

 
EDITOR | TRIPLOV
Contacto: revista@triplov.com
ISSN 2182-147X
Dir.
Maria Estela Guedes
PORTUGAL
 
 
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