Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 56. janeiro-fevereiro 2016






Maria Estela Guedes
(Portugal, 1947).
Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária, além de exegeta da obra de Herberto Helder. Faz parte do Conselho Editorial da revista Incomunidade, em www.incomunidade.com. Dirige coleções na editora Apenas Livros, entre elas CadeRnos SuRRealistas SempRe. Tem umas dezenas de títulos publicados.    
Foto: José Emílio-Nelson

MARIA ESTELA GUEDES

Universitas hominorum




Publicado em:


TEMPO-MEMÓRIA NA EDUCAÇÃO:
Reflexões

Organização:
Ana Maria Haddad Baptista, Júlia Maria Hummes, Márcia Pessoa Dal Bello & Ubiratan D'Ambrosio

São Paulo, Big Time Editora, 2015

Este ano resolvi inscrever-me em duas cadeiras de uma “Universidade Sénior”, assim escrito, quando correto seria escrever senior  e junior. Sofri uma enorme desilusão e houve logo quem criticasse: - A universidade está bem para a Estela ensinar nela, não para se inscrever como aluna.

Não concordo. Mesmo admitindo que eu fosse a quinta essência da atividade docente, e como professora nela exercesse, a universidade não passava por mim a ser melhor. De outra parte, eu não quero – não queria - ser mestre ao inscrever-me, sim aprendiz, e como tal devia o meu intuito ser satisfeito pela instituição.

A comunidade entende decerto a universidade senior como local de entretenimento, terapia ocupacional, acredito que seja esse até o fundamento da criação de tantas, mas está errado. O entretenimento e a ocupação podem buscar-se em outras associações, de dança, pesca ou peregrinação – estão na moda as viagens de aposentados a Santiago de Compostela, vamos lá meter pés ao caminho! Eu chamo a isso turismo de joelhos, porque muitos cumprem a promessa de assim fazer o circuito interior do santuário na peregrinação a Fátima. É deprimente, não devia ser permitida tal exibição, nenhum Deus exige dos crentes o exercício da tortura, ainda menos como espetáculo para multidões.

A universidade senior promove passeios, visitas a locais de interesse histórico e idas ao teatro, o que está muito bem. A necessidade de associativismo é grande, muitos idosos vivem isolados,  já não têm família, daí a importância dos companheiros e de uma instituição que ao menos reconheça a sua existência! Porém essa não é a missão fundamental de uma universidade! Se a instituição adopta um tal designativo, há que recheá-lo com ensino e propósitos compatíveis.

Um estabelecimento de ensino que assume o título de “universidade” não pode comportar-se abaixo do nível de uma escola secundária. O professor não pode saber tão pouco que divide pessoas por frangos quando o piquenique exige o inverso, nem pode ocupar o tempo da aula a mostrar os seus próprios exercícios, pondo-se ao nível dos instruendos, alguns dos quais já apresentaram melhor trabalho e já mostraram dominar mais profundamente a matéria. A circunstância de sermos maiores de 65 anos não legitima teorias de que “não faz mal, eles já não vão transmitir conhecimento, é preciso é que estejam entretidos para não se sentirem uns inúteis”. Errado, erradíssimo! Nós, seniores, somos os principais transmissores, sempre fomos os mais importantes educadores. A literatura, oral e escrita, valoriza os velhos como fonte de amor, amizade e sabedoria. As fadas são jovenzinhas (quando envelhecem ficam bruxas…), mas os grandes chefes, os grandes feiticeiros, os grandes magos, os grandes sábios, são sempre seniores. O sábio, até há bem pouco tempo, era o homem de ciência, de cultura, quase sempre velho. Culturas existem em que os anciãos presidem ao conselho que governa o seu povo. E mesmo na nossa cultura ocidental, que põe a juventude e a beleza num trono de ouro, os mais velhos são sempre preferidos para cargos de máxima responsabilidade, porque a idade lhes dá saber e experiência. Se queremos ver conselhos de anciãos a funcionar, basta abrir o televisor no canal Parlamento: quase todos os deputados são maiores de cinquenta anos, o que, diga-se em abono da verdade universitária dos nossos tempos, não lhes concede por isso nenhum grau de sapiência…

Qualquer estabelecimento de ensino deve aliar às asperezas do estudo a alegria e doçura do prazer, promovendo festas, espetáculos, passeios e outras distrações. Claro que sim, somos todos a favor dos estádios, dos orfeões e dos teatros universitários. A universidade senior, aliada muitas vezes ao governo local, cumpre essas funções. Mas não basta, essa não é a sua principal missão, em primeiro lugar está o que é próprio dela: ensinar o que se conhece e promover a aquisição do que até ali não se conhecia, mediante pesquisa, necessária ao avanço do conhecimento, e este necessário ao fortalecimento da cultura e melhoria das condições técnicas da civilização.

Noutra vertente do assunto, as instituições promotoras de eventos não devem baixar o nível intelectual e cultural das sessões ao que pensam ser o estado gagá do auditório. Nem o auditório é inepto nem devia ser constituído só pelas quarenta ou cinquenta pessoas da universidade senior e dos lares de terceira idade que se inscreveram no evento e o governo local transporta com gentileza (esperando que a gentileza não seja interesseira caça ao voto) nos seus autocarros. Algo não funciona, algo está muito errado por aqui, quer no modo condescendente como são tratados os mais velhos, quer na vertente de infantário como se lhes exibe a cultura. Para cúmulo, ao menos parte dos estudantes têm graus académicos superiores, obtidos em épocas de muito maior exigência no ensino.

A que propósito vem medir o valor de um homem pela sua utilidade? Vale enquanto trabalha, deixando de trabalhar passa a ser um inútil dispensável? O valor da existência pode medir-se pela qualidade da interação com os outros, mas não é a utilidade o termo adequado para a exprimir. Útil é a louça e inútil quando se parte. Que faríamos dos eremitas, dos solitários, dos deficientes, dos reclusos em prisões e mosteiros, dos doentes, dos guias espirituais, daqueles que nunca trabalharam? Que faríamos dos artistas? As sociedades não funcionam só com quem executa trabalho braçal ou exerce um ofício rotineiro. Sem o ócio e sonho de uns quantos, definhariam as civilizações por falta da inovação que esses tais ociosos e sonhadores criam e desenvolvem.

A palavra “universidade” foi adotada para caracterizar o ensino superior por causa do seu significado: o conhecimento nelas ministrado era universal, global. Dispondo de uma língua comum, o latim, servia aos estudantes de todo o mundo, daí que, em tempos antigos, os aprendizes ou aspirantes de qualquer país pudessem inscrever-se em famosas universidades como a Sorbonne, a de Montpellier (famosa pelos estudos de Medicina, onde aprendeu Rabelais), a de Oxford ou a de Coimbra. Isso acontecia porque não havia obrigatoriedade de estar presente nas salas de aula, de resto o termo “universidade” designa a comunidade de professores e alunos, deixando de lado o espaço físico. Universitas hominorum – associação de homens, dizia-se. Parece tudo excelente, acontece entretanto que só quase no nosso tempo se começou a entender aquele “hominorum” como “humanos”, independentemente de género masculino e feminino. O acesso da mulher ao ensino, tal como ao voto, é muito recente. Na generalidade dos países, as mulheres só começam a frequentar as universidades na segunda metade do século XIX. A primeira a entrar na Universidade de Coimbra foi Domitila de Carvalho, no ano lectivo de 1891-1892. Considerava-se indecente a presença das mulheres em cursos como o de medicina, em que as meninas tinham de estudar o corpo humano e era completamente impensável deixar uma mulher ir sozinha para estudar noutro país. Embora em Portugal não se tenha verificado a feroz oposição à entrada das mulheres patente nas outras universidades, Branca Edmée Marques (1899-1986) conseguiu graus académicos universitários e tornar-se cientista mas, quando se tratou de ir pesquisar a radioatividade com Madame Curie, em Paris, teve de levar a mãe na sua companhia para evitar a situação escandalosa.  

A universidade apareceu na Idade Média. A primeira é a de Constantinopla, em 425, mas precedem-na estabelecimentos de ensino superior mais antigos, por exemplo na China. E há lugares perdidos em regiões inóspitas onde nada se esperaria a não ser uma subida lancinante do mercúrio nos termómetros, como foi o caso da mesquita de Tombuctu, na orla do deserto do Sahara, no atual Mali, onde, no século XIV, começou a funcionar a famosa Universidade Corânica de Sankoré. Situada a cidade em local estratégico, na curva norte do Níger, era centro nas rotas comerciais entre o Egipto e os países da África sub-sahariana. Daí que na época de maior esplendor tenha contado, diz-se, com vinte e cinco mil estudantes. Os sábios que ali ensinaram, e é realmente “sábios” o termo usado, também se contam por milhares. Circunstância surpreendente, quem financiou a construção da mesquita de Sankoré foi uma mulher tuaregue, conhecida pela sua riqueza. A cidade e as suas mesquitas atraíram homens de todo o mundo muçulmano.

Ali se traduziram para árabe textos de filósofos e matemáticos gregos que afinal são os alicerces da nossa cultura ocidental. Foi a partir deste centro de estudos que se verificou a irradiação do islamismo em África. Por causa da sua importância histórica e valor dos manuscritos à sua guarda, a cidade de Tombuctu foi inscrita pela UNESCO, em 1988, na lista do Património Mundial.

Estes manuscritos, alguns dos quais pré-islâmicos, conservam-se há séculos como segredos de família. Na maior parte estão redigidos em árabe e em fula por sábios oriundos do antigo império do Mali. Tratam de astronomia, medicina, botânica, música e outros assuntos. Manuscritos mais recentes cobrem as áreas do direito, das ciências, da história, da religião e do comércio.

«Timbuctu», o magnífico filme de Abderrahmane Shami Sissako, revela aspetos da invasão do Mali pelas tropas do fundamentalismo islâmico, em 2012. Os fanáticos, obcecados em banir o que consideravam pecaminoso, impuseram leis absurdas, como o uso de luvas às vendedeiras, nos mercados, proibiram a música,  etc.. Na realidade, chegaram ao ponto de demolir os túmulos de santos sufis, espancaram mulheres por não cobrirem o rosto e chicotearam homens por fumarem ou beberem. Um dos seus planos era queimar os milhares de manuscritos guardados em bibliotecas públicas e privadas espalhadas pela cidade. Os documentos eruditos mostram como o islamismo é uma religião moderada, considerados tesouros culturais por institutos ocidentais, factos que bastavam aos jihadistas para os desejarem destruir.  

Entretanto, as autoridades do Mali, com ajuda externa, tinham montado uma operação secreta algum tempo antes da chegada dos jihadistas. Recorrendo a burros, esconderijos e contrabandistas, conseguiram levar os manuscritos para fora da cidade.

Sem o esplendor de outrora, a Universidade de Tombuctu ainda funciona, mas a cidade está a ser paulatinamente devorada pelas areias do Sahara. Ao caminharem para sul, deixam atrás delas aquela faixa de terra entre o Atlântico e o Índico na qual se localizam os países mais pobres do mundo, conhecida por sahel.

A Universidade Islâmica de Tombuctu é algo mais recente do que as asiáticas e europeias. Em Portugal, foi o documento Scientia thesaurus mirabilis, assinado em 1290 pelo rei D. Dinis que criou em Alfama (depois andou entre Coimbra e Lisboa até se fixar em  Coimbra) a nossa mais antiga universidade e uma das primeiras da Europa, a par da Sorbonne, da de Oxford, e da de Bolonha – esta a  mais antiga das quatro. Tal como a de Tombuctu é uma universidade corânica, onde se ensinava o Alcorão, a lógica, a matemática e a história, as outras eram também escolas religiosas, em que reinava a teologia. Faziam parte de catedrais ou de conventos. O monopólio do ensino por parte da Igreja, particularmente pelos jesuítas, manteve-se até meados do século XVIII, quando recebeu o primeiro grande golpe, desferido pelo Marquês de Pombal. O último golpe recebeu-o da República, ao instituir o ensino laico.

No Brasil, a universidade surge muito tarde. O melhor ensino de que dispunha, sob governo português, era o jesuíta. O mesmo aconteceu em Cabo Verde, arquipélago em que o ensino de melhor qualidade também pertencia à Ordem de Jesus. As outras colónias – Guiné, S. Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Macau e Timor viviam em condições ainda mais pobres. Portugal não tinha interesse em educar as populações: quanto maior o conhecimento, tanto menor a capacidade de tolerar regimes despóticos. O erro do colonialismo brando nesta matéria foi crasso e manifesta-se hoje no elevado grau de analfabetismo e falta de língua materna unificante na maior parte destes jovens países. Na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique, só uns dez por cento da população falam português, e quase só nas grandes cidades. Os líderes políticos, quando precisam de se deslocar às regiões do interior para falarem com os habitantes, fazem-se acompanhar por intérpretes.

O primeiro estabelecimento de ensino superior no Brasil, instituído em 1792, é atualmente a Universidade do Rio de Janeiro, criada com este nome em 1920. Constituía-o a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, que desaguou na Escola Politécnica. São inúmeras hoje as universidades brasileiras, criadas segundo o modelo da primeira.

D. Dinis lançou os fundamentos da cultura portuguesa, não só devido à criação da universidade mas também porque legislou para que os documentos oficiais abandonassem o latim e passassem a ser escritos em português. Nesse tempo as línguas europeias de raiz latina ainda não se tinham diversificado nas línguas românicas, pareciam-se entre elas, a ponto de, no nosso caso, se falar do galaico-português. Língua comum à Galiza e a Portugal, nela se esboçaram os primeiros passos da nossa literatura, os cancioneiros trovadorescos – cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio ou maldizer. Ora D. Dinis também era poeta e ainda hoje são admirados os seus poemas. Na maior parte cantigas de amor, de delicada beleza, bem podiam ter sido inspirados pela esposa, D. Isabel, mais conhecida por Rainha Santa, protagonista do milagre das rosas. Mas parece que não, invoca-se mais Aldonça e outras amantes de quem o rei poeta recebeu, conta-se, cinquenta filhos bastardos.

Observa Rodrigues Lapa, no prefácio à Crestomatia arcaica, antologia em que recolheu umas dezenas de textos medievais, que o espólio de D. Dinis é o mais rico da época trovadoresca. Deixou-nos 138 composições poéticas, em que estão representados todos os géneros do lirismo do seu tempo. Dessas 138, 76 são cantigas de amor. À semelhança de seu avô, D. Afonso X de Castela, cognominado O Sábio, consta ter composto um livro de cantigas em louvor da Virgem, que se perdeu. Vale a pena lembrarmos a poesia de D. Dinis, bem como o registo de língua em que escreveu, uma língua que é nossa, mas num estádio de desenvolvimento ainda embrionário. Remato assim este ensaio sobre a universidade com uma das mais conhecidas cantigas do rei fundador da nossa cultura de língua portuguesa, aquela em que a donzela pede às flores dos pinheiros notícias do seu amigo, provavelmente marinheiro. D. Dinis, cognominado O Lavrador, também promoveu a agricultura e impulsionou algo que já vinha de reinado anterior, de suma importância para fixar as areias do litoral, consolidando assim a linha costeira – os pinhais. Importados dos países escandinavos, os pinheiros muita madeira forneceram para a construção das caravelas. Entre todos os pinhais, o mais famoso é o de Leiria (Azambuja), dado o seu protagonismo numa obra literária de referência para o romantismo português, as Viagens na minha terra, de Almeida Garrett. A cantiga de amigo de D. Dinis que refere as flores de pinheiro é por isso emblemática.

 

Cantiga de amigo de D. Dinis

—Ai, flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo?

       Ai, Deus, e u é?

 

Ai, flores, ai flores do verde ramo,

se sabedes novas do meu amado?

      Ai, Deus, e u é?

 

Se sabedes novas do meu amigo,

aquel que mentiu do que pôs comigo?

      Ai, Deus, e u é?

 

Se sabedes novas do meu amado,

aquel que mentiu do que m'á jurado?

      Ai, Deus, e u é?

 

[— Vós preguntades polo voss' amigo?

E eu ben vos digo que é san' e vivo.

      Ai, Deus, e u é?]

 

 

Vós preguntades polo voss' amado?

E eu ben vos digo que é viv' e sano.

     Ai, Deus, e u é?

 

E eu ben vos digo que é san' e vivo,

e sera vosc' ant' o prazo saído.

      Ai, Deus, e u é?

 

E eu ben vos digo que é viv' e sano,

e sera vosc' ant' o prazo passado.

     Ai, Deus, e u é? 

 
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