Revista TriploV de Artes, Letras & Ciências .
ns . nº 53 . agosto-setembro 2015 - índice



LUCÍLIO MANJATE

Da nova geração de escritores moçambicanos

à ideia de qualidade literária

  1. Introdução

O que é qualidade literária?

Estamos cientes de que propomos uma reflexão sobre uma ideia deveras cara à literatura, aos escritores, aos estudiosos de literatura, aos editores e aos leitores de uma forma geral, e que determina os méritos e os deméritos de determinada obra literária ou escritor. Estamos cientes, por conseguinte, da controvérsia a que tal reflexão se presta.

A relevância desta abordagem reside na possibilidade de trazer ao de cima o que chamamos de vícios discursivos, quando se pretende conferir qualidade a determinada obra, vícios que não creditam esse conceito com capacidade de conferir à obra literária o estatuto que tácita e socialmente se lhe confer (1).

Almejamos certo rigor e objectividade necessários a um juízo de que depende um percurso artístico inicialmente individual, mas resultante dessas inúmeras e historicamente diversificadas leituras, uma resultante colectiva no que ele pode levar consigo de manancial cultural e intelectual de dimensão nacional e até internacional.

Propomo-nos falar da qualidade literária de obras moçambicanas produzidas a partir de 1990. Estamos cientes do volume de trabalho e dos riscos que significa tratar de mais de 20 anos de literatura e com base num conceito polémico como é o de qualidade literária. Por isso, delimitamos a presente abordagem aos domínios seguintes:

i)  Génese da nova geração de autores moçambicanos;

ii)  A metalinguagem literária e seus vícios;

iii) A ideia de qualidade literária.

A escolha do primeiro domínio justifica-se pelo facto de a nova geração de autores moçambicanos começar a preparar a sua estreia em livro na década 90, facto que nos permite entrar em contacto com a ideia de qualidade literária de forma particularmente actual e, quiçá, mais problemática (de acordo com a lógica segundo a qual, regra geral, é na sequência da publicação de obras literárias que se produzem metalinguagens, textos cuja missão é analisar e avaliar o que se publicou) e considerando a ausência da crítica em relação ao conjunto de obras/autores de que aqui se trata.

Em relação ao segundo domínio, a sua escolha tem a ver com o interesse não sobre as obras literárias em si, de forma directa, mas sobre os juízos a que já nos referimos e que foram emitidos à medida que os novos autores foram publicando os seus livros.

Finalmente, resulta da leitura dessa metalinguagem a ideia de qualidade literária que aqui se propõe e que, certamente, há-de ser preciso questionar.

  1. Génese da nova geração de escritores moçambicanos

A década 90 é o tempo de preparação de uma nova fase na literatura moçambicana no que diz respeito ao surgimento de novos autores.

De Xai-Xai, chegam-nos destacadas as vozes de Andes Chivangue e Dom Midó das Dores, co-fundadoras do Núcleo Literário Xitende, criador da Revista Literária Xitende onde aqueles publicaram os seus textos (2).

De Inhambane, chegam-nos, pelas páginas do Caderno Literário Xiphefo (criado em 1987), as vozes de Rogério Manjate (3) e Guita Jr. (4), partilhando as mesmas páginas com autores já consagrados como Sebastião Alba, Luís Carlos Patraquim ou o francês Victor Hugo.

Em Maputo, surgem duas revistas, a Lua Nova e a revista Oásis – Jovens pela Literatura. Criada em 1988 pela Associação dos Escritores Moçambicanos – AEMO, a Lua Nova ainda pôde testemunhar o surgimento de nomes como o já mencionado Rogério Manjate, que chegou a ser editor da revista, Aurélio Furdela (5), Clemente Bata (6) e Ruy Ligeiro (7), todos partilhando o mesmo espaço com escritores consagrados como Eduardo White e Mia Couto.

A revista Oásis, metáfora da esperança na revitalização ou fortalecimento da nossa literatura, foi fundada em 1997, em meio a obstáculos e/ou dificuldades de publicação. Por isso mesmo, ela foi o espaço privilegiado de um fervilhar de emoções e desencantos de parte dessa geração ávida de ver os seus textos publicados e os seus autores reconhecidos como escritores. A este propósito, vale recordar um excerto do editorial do primeiro número da revista e sublinhar o seu tom irónico e inconformista perante certa obsessão de entidades de cujos vaticínios (infalíveis?), supostamente escudados numa temporalidade existencialmente irónica ou castradora dessa possibilidade de se vir a ser escritor/obra, seriam sinais reveladores de que os mecanismos que dificultariam a revelação das então novas vozes tinham sido accionados:

Profeta – Só daqui a meio século, ou mais…

Oásis – Calma aí… o pensamento é a essência da existência, e eu penso.

Profeta – Pensar não é existir meu filho. Não sejamos idealistas subjectivos, o vulcão só é quando há erupção. Uma coisa é existir, e outra é ser.

Oásis – Não me confundas. As coisas não acontecem por si próprias, fazemo-las acontecer. Também não sou vulcão para usufruir da erupção. Eu sou o fim último de um rio subterrâneo num deserto…

Profeta – Estás a ver… subterrâneo… deserto. Decididamente não existes. Só daqui a um século…!

Oásis – A sua profecia é inconsequente. Melhor é comprares um cronómetro, o espírito do rio já perfura o perfil do deserto... (8) 

A revista Oásis era propriedade da AEMO, cumprindo assim a Associação um dos seus desígnios estatutários, designadamente, o incentivo ao surgimento de novos autores. De resto, nomes como Aurélio Furdela, Ruy Ligeiro e Chagas Levene (9), que veriam mais tarde os seus textos publicados em outras revistas (como as já mencionadas) e em livro, publicaram inicialmente na Oásis. Outros, que mais tarde também sairiam em livro, militaram na Oásis, casos de Dinis Muhai (10), Helder Faife (11) e Sangare Okapi (este sob pseudónimo de Orpa Oripa de Barca) (12). Importa destacar que a maior parte destes autores, por alturas da década 90, já publicava textos em jornais como Savana e Domingo.

  1. A metalinguagem literária e seus vícios

Eco e reflexo de diversas militâncias literárias, como já se disse, o ano de 1997 testemunha, em termos de publicação em livro e sob os ditames da poesia, o surgimento da nova geração de autores, com a obra O Agora e o Depois das Coisas, de Guita Jr.. Este impulso foi repercurtido, em 1999, com a publicação das obras Os Segredos da Arte de Amar, de Adelino TimóteO (13),  e Abutres do Amor, de Jorge MatinE (14), as primeiras duas chanceladas pela AEMO. A referência a Jorge Matine ou a Oásis suscita mais uma observação.

Segundo entendemos das palavras do poeta Sangare Okapi, Jorge Matine não pertence ao grupo de autores que deu os primeiros sinais da existência de uma nova geração de escritores – referência ao Movimento Oásis, como ficou chamado. De facto, uma leitura ao texto consagrado ao Movimento, da autoria de Sangare e publicado no Memorial que assinala o 25.0 aniversário da AEMO, permite perceber que a questão está longe de ser consensual: 

O projecto Oásis tinha no seu leque vários propósitos, dos quais destacam-se os literários, designadamente a intenção alcançada de publicar uma revista literária; … Também havia um manifesto desejo de publicar duas antologias, uma de contos e outra de poesia. Até aqui vê-se claramente que os objectivos estavam acima de quaisquer interesses individuais. Mas porque, e socorrendo-me de um certo escritor que a memória ofusca, “a escrita é um acto meramente individual”, (há ainda quem a tenha como um autêntico voto à solidão), esta intenção colectivista estava fadada ao insucesso.

Daí que o caminho para a afirmação individual desenhou os seus contornos, sendo a primeira tentativa de publicação de uma obra individual dada pelo jovem Jorge Matine. Tentativa porque o livro foi uma publicação de poemas de Jorge Matine e desenhos de um artista plástico português, isto num território estrangeiro, Portugal. Esta publicação, em terras lusas, caiu como uma espécie de traição à causa colectivista. Afinal, o Oásis congregava também jovens artistas plásticos. Mas o jovem Matine talvez tivesse as suas justas motivações para lançar o seu primeiro livro, o primeiro livro da Oásis, fora do grupo. 

Não se trata aqui de discutir a justeza das acusações que o poeta Sangare Okapi faz ao poeta Jorge Matine, acusações pejadas de uma ironia contundente sobre o anti-colectivismo e anti-nacionalismo de Matine, tão pouco se trata de fazer um estudo sobre o Movimento Oásis. Interessa-nos, isso sim, assinalar o surgimento de uma nova geração de autores num período passível de ser demarcado em função da origem de boa parte de seus autores (movimentos e/ou revistas literários) – e aqui reside o facto que nos impele a falar de «nova geração» de autores. De qualquer forma, se os marcos aqui estabelecidos podem ser questionados, igualmente não se pode argumentar que a produção subsequente ao O Agora e o Depois das Coisas, de Guita Jr., mereceu, por parte da crítica e dos estudos literários, a recepção nos termos que aqui interessa, sobretudo da crítica feita em Moçambique. O silêncio de uma crítica que seja capaz de reagir à medida que a produção vá aumentando a sua quantidade, ao longo destes mais de vinte anos, revela um suposto consentimento em relação à sua qualidade. As nossas hipóteses sugerem que esse silêncio de mais de vinte anos sobre a qualidade da nossa literatura consente que:

i) existam novas vozes, contudo ignorando-as, por falta de qualidade literária;

ii) existindo novas vozes, elas permaneçam desconhecidas para o vasto público, nacional e estrangeiro, sob o risco de se questionar a consagração de uma mancheia de autores cuja suposta consagração está cada vez mais dependente de imperativos colectivistas, de movimentos ou de gerações cujos alicerces podem ser encontrados nas directrizes massificadoras da leitura e do livro (ao nível da educação, por exemplo) no contexto da primeira república;

iii) embora permaneçam desconhecidas para o vasto público, as novas vozes se transformem em evidência (quando mencionadas) de que existe uma geração de escritores consagrados a que a crítica vai dando o «merecido» destaque em jornais e revistas nacionais e internacionais.

Em cada uma destas hipóteses, o silêncio assumiria uma atitude deliberada, ou seja, crítica, (in)consequente, que nos parece compreensível. À semelhança de outros sistemas sociais, o sistema literário não é imune ou à ignorância e inconsciência de si próprio ou, o que é mais grave, ao tráfico de influências e de uma adulação danosa (contratuais ou tácitos), onde a invisibilidade de uns credita o sucesso de outros na rede de relações que se estabelecem entre os diferentes elos do sistema: escritores, editores, livreiros, críticos, estudiosos de literatura, leitores latu sensu (jornalistas, professores, estudantes).

Quantas vezes lemos ou ouvimos posições (in)formadas sobre quais os nomes maiores da literatura moçambicana, tantas quantas são as suspeitas dessas vozes não terem, sequer, lido uma página sobre o passado e sobre o presente da nossa literatura, ou seja, não estarem em contacto com a nossa tradição literária? Quando se referem à nova geração de autores, não vislumbram, essas vozes, por exemplo, as aproximações e os distanciamentos entre, por um lado, um Rogério Manjate, Aurélio Furdela, Andes Chivangue prosador, Dom Midó das Dores, e, por outro lado, Ungulani ba ka Khosa, Mia Couto, Suleiman Cassamo, Marcelo Panguana, Luís Bernardo Honwana; ou entre, por um lado, um Andes Chivangue poeta, Sangare Okapi, Rui Ligeiro, Helder Faife, Celso Manguana, Mbate Pedro, Adelino Timóteo poeta e, por outro, Eduardo White, Luís Carlos Patraquim, José Craveirinha ou Rui Nknopfli.

Este hábito de roubar aos «pobres» para dar aos «ricos» não será a prova inequívoca de que a literatura moçambicana vive uma contemporaneidade particularmente ameaçadora a escritores, editores, jornalistas e críticos que não se permitem debruçar-se sobre o que se vai produzindo de «novo»?  

Cientes deste ostracismo, sobretudo por parte da crítica académica e jornalística (15), os novos autores vão implorando pela leitura dos seus textos, umas vezes a académicos, outras a escritores que se lhes reconhece a consagração. Ou seja, no caso da nova geração de escritores, regra geral, a metalinguagem sobre os seus textos preexiste à publicação da obra, não resultando, portanto, da curiosidade em acompanhar os compassos e descompassos do que se vai produzindo. Não se lê porque é importante que se leia, lê-se porque a formulação de um pedido os obriga a ler. Desta atitude resultam duas metalinguagens distintas e que designamos

                       i. textos dos confrades e;

                       ii. textos dos estudiosos de literatura.

A metalinguagem literária, segundo Aguiar e Silva, está imediatamente vinculada à prática literária de um determinado período histórico por uma função de interdependência e, por conseguinte, deve ser integrada no sistema semiótico literário. Segundo o autor, a metalinguagem literária é uma poética explícita

cuja finalidade é a defesa ou a condenação, a descrição e a análise com carácter mais ou menos marcadamente normativo, das convenções e regras que configuram os códigos literários: artes poéticas, tratados de poética e de retórica, programas e manifestos de escolas e movimentos literários, prefácios, epígrafes, etc. (2000: 112)           

No que diz respeito aos textos dos confrades e dos estudiosos de literatura, eles vão apresentar natural, mas não necessariamente, matizes diferentes. Importa, então, perceber quais são os métodos de abordagem apresentados sob o título de Prefácio, que normalmente acompanham as obras dos novos autores e, para tal, tomaremos em consideração, apenas a título de exemplo, alguns textos (16).

 

2.1  Dos textos dos confrades

2.1.1  O vício do silêncio que não quer calar

Num texto introdutório intitulado «Poéticas», que abre o primeiro livro de Sónia Sultuane, Sonhos, o saudoso poeta Eduardo White apresenta-nos um discurso que, pela interpelação à autora da obra, faz lembrar uma carta. Seria esta uma carta abonatória ao exercício poético de Sónia Sultuane, um panegírico? Não necessariamente, nem tão pouco tem de ser, como se pode constatar:

Sónia: Chega-me à mão um livro de poesia escrito pela própria poesia. Nunca se escreve o que se é. Penso.

E depois detenho-me sobre ele. Leio-lhe os sentidos da forma como se dói. Não se impõe este livro, com certeza, nem tu o ambicionas, como o livro da tua vida, mas ele está, indubitavelmente, cheio de vida. … É belo ver-te tu, autêntica. Tu poesia num país onde a poesia se masculinizou.

E tu, também, frágil como os teus versos, como o lugar donde se deslumbram as canções maduras que adubas para sonhares, amanhã, com o que o poema sonha sempre. Que bom seres bonita para falares de tudo isto, muito embora nem tudo em ti esteja ainda pronto. (Sultuane, 2001: II) 

A obra que aqui se apresenta de poético não tem absolutamente nada. Isto é o que depreendemos deste texto laboriosamente urdido. Entendemos mais, trata-se de uma escrita a revelar-se num futuro, não obstante apresentar-se hoje cheia de vida.

Não se trata, como se vê, de nenhum panegírico. O discurso poético que encobre as verdades que procuramos desvelar é que é melífluo, de uma retórica adiposa e eufemística.

Como «conferir» qualidade literária à obra nestas condições? Este é um vício comum entre nós, o vício do silêncio que não quer calar. Que importa que se diga ao escritor e/ou ao leitor, num texto que abre determinada obra, assumindo ares de texto de apresentação ou de prefácio, que a verdadeira obra está por acontecer? Quantas leituras da obra, e em que tempo e espaço históricos, seriam indispensáveis para se questionar posicionamentos nada abonatórios e assim justificar-se um texto desta natureza? O que é um prefácio? Se a obra deve esperar para ser “amanhã”, o que dizer do seu prefácio?

2.1.2 O vício da irresponsabilidade sistémica sobre os mecanismos de legitimação

Suleiman Cassamo, no “Prefácio Acima da linha d’água”, à obra De Medo Morreu o Susto, de Aurélio Furdela, afirma que a obra é vencedora, não «pela volátil circunstância de ter ganho o Prémio Revelação, da Associação dos Escritores Moçambicanos … Sabemos como são falíveis e subjectivas as deliberações de um júri», mas pelo estatuto de arte que a obra reivindica e que o prefaciador sintetiza da seguinte forma:

Em De Medo Morreu o Susto, desfila um conjunto de estórias embebidas no quotidiano, e no que ele tem de surrealista. Afinal, ao contrário do que se poderia pensar, o fantástico está à nossa porta … A prosa furdeliana é de recorte quase realista, oscilando entre a crónica e o conto. O seu forte não é o labor minucioso da palavra, mas o encadeamento das situações, a cadência, o sentido do balanço narrativo, as saídas patéticas, a coerência do absurdo. … Finalmente, a questão que fica: será que a literatura moçambicana ganhou definitivamente mais um nome com esta estreia?

Fica para ti, leitor, a busca da resposta nas páginas deste livro. (Furdela, 2003: 11-12) 

Mais objectivo na sua abordagem, em relação ao texto “Poéticas”, o texto de Cassamo apresenta-nos, de facto, uma obra, um autor. Quem lê o prefácio sabe que tipo de histórias pode esperar, de facto. Não sabendo, tanto melhor, abre-se uma oportunidade para se entrar em contacto com um mundo de saberes necessários para a leitura e entendimento da obra – sugerido, no caso, pelos conceitos de Surrealismo e Fantástico –, segundo o autor do prefácio. E esta parece-me ser uma das potencialidades dos prefácios ou textos de apresentação, a possibilidade de criar leitores ou habilita-los à leitura.

Dois aspectos parecem-nos importantes salientar da apresentação da obra de Furdela. Primeiro, a forma desconfiada como Cassamo lê os veredictos dos prémios literários; segundo, o facto de, talvez produto dessa desconfiança, preferir remeter o juízo final à responsabilidade do leitor.

A questão da qualidade literária deve ser, de facto, discutida, primeiro, a nível das instituições que criam prémios literários ou pelas individualidades que integram os júris desses prémios. Os critérios que regem a escolha de uma obra vencedora são, não raras vezes, subjectivos, ou seja, tendencialmente, cada membro do júri elege os seus critérios. Desta subjectividade resulta que as deliberações acabam sendo uma espécie de debate sobre que critérios são fiáveis e não sobre a forma como cada concorrente respeitou determinado critério.

Teoricamente, os critérios deliberativos são do domínio dos membros do júri, objectivos, portanto, variando apenas a avaliação que cada membro faz em função de cada um dos critérios. Não admira, portanto, que fora de portas nacionais, haja concursos que façam constar nos seus regulamentos os critérios de avaliação e o peso percentual de cada um dos seus critérios para domínio público. Esta prática reduz significativamente a falibilidade e a arbitrariedade que presidem as deliberações dos júris e ajuda a conferir qualidade à obra vencedora, porque, de facto, como salienta o poeta Filimone Meigos no prefácio ao Inventário de Angústias ou Apoteose do nada de Sangare Okapi, os prémios literários são instrumentos de legitimação e, por conseguinte, conferem qualidade à obra vencedora:

O registo poético de Okapi cabe num arquivo que nos remete aos Salmos. Aliás, o pórtico de Okapi é o Salmo 6, Oração em Tempo de angústia:

“Depois de morto ninguém se pode lembrar de ti. E no sepulcro, quem te louvará? Estou cansado de gemer. Todas as noites choro na minha cama e encho de lágrimas a minha almofada. A dor turva-me a vista e os meus olhos envelhecem, por causa dos meus adversários.”

Eis, pois, a morte, o sepulcro, a lembrança, o cansaço, o gemido, a noite, o choro, a cama, as lágrimas, a almofada, a dor os olhos, o envelhecimento e os adversários estruturando as angústias de Okapi.

Se esta acepção pode ser verdade, não é menos verdade que qualquer um destes termos plasma essa efémera e fugidia existência a nossa, afinal, cosmogonia e escatologia de mãos dadas. Ou seja, o nascer e o morrer, o princípio e o fim acasalados, preto e branco, dia e noite, utopia e distopia na pena do poeta confundindo o real com o onírico de angústia em angústia: Cá está a poesis e o mirandum de Okapi, quanto a mim, modestamente bem conseguidos, para quem se estreia em livro com o beneplácito e a legitimidade que resultam de um prémio literário: Bom começo! (Okapi, 2005: x) 

A entidade “leitor”, para a qual Cassamo remete a responsabilidade de conferir qualidade à obra de Furdela, deve ser estudada no âmbito de uma abordagem sistémica, onde a Educação, em parceria com instituições ligadas à promoção do livro e da leitura, joga papel importante na disponibilização de hábitos de leitura. Trata-se de uma discussão que não nos parece relevante por ora. 

O segundo vício, no caso apresentado no prefácio que o escritor Suleiman Cassamo faz à obra de Furdela, decorre de uma irresponsabilidade sistémica que torna sombrios os mecanismos de legitimação ou pelos quais se confere qualidade às obras literárias. Ou seja, o facto de determinada obra ter ganho um prémio literário, sobretudo tratando-se de um Prémio Revelação, devia ser motivo mais que suficiente para enaltecer as qualidades literárias da mesma. Então, somos levados a pensar que é importante questionar e aferir a qualidade dos membros dos júris. Caberia aos estudiosos de literatura, aos críticos, professores, editores, escritores consagrados e jornalistas devolverem à noção de obra vencedora a responsabilidade que lhe merece (17). Esta lacuna abre um precedente para essa referência (des)necessária à idoneidade de “um júri de reconhecido mérito no panorama literário nacional”, como os regulamentos fazem questão de garantir, a ponto de colocar-se em causa essa idoneidade através de juízos às vezes pouco esclarecedores que corporizam os prefácios de recados, recados que procuram fugir a uma verdade tão necessária ao escritor e ao receptores, como acontece no “Prefácio” à obra O Sentido das Metáforas, do poeta Manecas Cândido: 

Embora não tenha havido muito daquilo que eu chamo de malabarismo técnico, este livro merece, em grande medida, o prémio que granjeou. É, digamos, um começo. O resto, não passa de uma simples necessidade de apuro, e mais labor para quem está disposto a expor-se a todos os riscos que a escrita oferece, quando o propósito é procurar ser um verdadeiro e incansável marceneiro da poesia, à maneira Knophliana. (Cândido, 2007: 4) 

Se o “resto” é o que falta, mais apuro e trabalho, e se a obra não apresenta o malabarismo técnico advogado pelo prefaciador, no caso o poeta Armando Artur, então por que será que a obra ganhou o prémio?

2.2  Dos textos dos estudiosos de literatura

Se é verdade que as abordagens objectivas sobre a obra literária, reveladoras da técnica e sua relação com o que na obra (não) se insinua, não são exclusivas dos estudiosos de literatura – aliás, o prefácio de Suleiman Cassamo à obra De medo morreu o susto o prova –, não é menos verdade que o discurso académico é potencialmente menos floreado e, portanto, mais sincero ou, no mínimo, mais elaborado na forma que encontra para fugir aos juízos de valor. Mas a falta de sinceridade, a fuga à verdade, é o grande problema de toda uma metalinguagem que teima em abrir obras vencedoras ou não. E se calhar é fácil compreender: por um lado, foge-se à tentação de dizer que determinada obra foi mal conseguida, por outro, e talvez a mais importante razão, é que a verdade deve ser demonstrada. José Craveirinha não é nosso poeta maior porque assim os deuses o quiseram, demonstraram-no leituras afeiçoadas, cujo compromisso era com a arte. É evidente que há várias formas de ler e criticar, mas nenhuma dessas formas deve permitir-se negar que ainda que determinada obra não tenha qualidade é necessário demonstrar objectivamente como se opera essa falta.

Não pretendemos com isto dizer que a metalinguagem académica é mais verdadeira que as outras metalinguagens, pois é sabido que ela também pode ser técnica e objectivamente floreada, dúbia e manipuladora, mas é preciso levar em consideração que se trata de um discurso cujas teses são passíveis de verificação, testagem, e, portanto, um discurso mais próximo ao que o texto propõe, um sentido mais adequado à obra, portanto. Chamemos a isso verdade. É essa verdade que permite conferir qualidade literária a determina obra. Cite-se, a título de exemplo, os casos de Ana Mafalda Leite no prefácio à Pátria que me pariu, do poeta Celso Manguana, e Francisco Noa no prefácio às Tatuagens de Estrelas, de Chagas Levene, respectivamente:

a.      Prefácio à Pátria que Me Pariu, de Celso Manguana:

Este conjunto de poemas está organizado em duas partes complementares, mas diversas. A primeira organiza-se com um conjunto de poemas, que poderíamos apelidar de epigramáticos, em que a temática é convertida em Palavras-chave, nelas condensada por uma técnica de repetições. Os poemas articulam sintacticamente proposições simples e directas, que actuam com o desdobramento paralelístico de uma só figura rítmica, e realizam o máximo de intensidade de significação num mínimo de espaço de verso. … Ao fazermos uma identificação das palavras-chaves-temas mais significativas do livro, encontramos no primeiro poema o “programa” que orienta esta escrita: pátria, morte e três lugares substantivos de exílio (amor, memória, loucura). (Leite, 2007: 5-6)

 

b.      Prefácio às Tatuagens de Estrelas, de Chagas Levene 

Como que movido por um rumorejante apelo rítmico e musical, os poemas vão eles próprios cadenciando-se na descontinuidade da mancha gráfica (alternância entre poemas longos e curtos), no resgate dos tons e dos sons, tal o caso das aliterações presentes, por exemplo, num verso como “Pensando bantas pernas esbeltas ao vento” (p. 17), das onomatopeias “dong, dong, dong” (p. 46), “Bum Bum Bum” (p. 66). Afinal, como ele próprio assume, “A minha língua materna/É o som das palavras” (p.29).

A vocação musical da poesia de Levene pode também ser encontrada na reiterada identificação com ritmos: o “Mtsitso” (p. 9), o “kuduro” (p. 22), a “sungura” (p. 24), “timbilas” (p. 67), “Jazz” (p. 76), “Rap” (p. 44); com músicos: “Paul Simon”, “Ray Phiri” (p. 31), “Gabriel, O Pensador” (p. 73) ou com instrumentos: “Mbila” (p. 9), “piano” (p. 76).

Apesar de afirmar que “agora ando ando ando atrás de algo/Que só existe na imaginação” (p. 11), encontramos, nos diferentes poemas desta obra, múltiplas e variadas referências ao mundo envolvente do sujeito e que traduzem um intimismo do quotidiano, ora dialogante ora questionador quando mesmo celebrativo. (Noa, 2007: 6) 

É para esta responsabilidade que pretendemos chamar a atenção, para a necessidade de se conferir objectivamente qualidade à obra literária. Isto passa, como se depreende, por um labor metódico, como o faz Cassamo ao considerar, em síntese, que, “mais ágil o enredo, mais densa a imagem, e Furdela não deixará de nos surpreender”; Ana Mafalda Leite, sobre a obra do poeta Celso Manguana:

O livro de Celso Manguana Pátria que me pariu provoca no leitor um singular espanto em ler, de forma simples, escandida em verso breve, uma certeira crítica social, visível logo a partir do trocadilho que o título propõe, representativa de uma geração desencantada com a guerra civil e as mudanças do projecto do país. 

E, finalmente, Francisco Noa, sobre a obra de Chagas Levene: “A vibração e a sensibilidade juvenis desta obra … indiciam que a literatura moçambicana não morreu, afinal.”

Pode considerar-se que a surpresa é a tónica dominante das abordagens de Cassamo, Leite e Noa, o resultado, a tese das leituras feitas, enfim, a certificação de que a qualidade preside o exercício dos autores, um certificado, uma verdade passível de ser testada.

  1. A ideia de qualidade literária

Pensamos que todo o texto que fale de determinada obra aspira conferir qualidade a essa mesma obra, ou seja, dizer aquilo que a caracteriza do ponto de vista de quem a lê. Obviamente que esta tarefa depende ou é determinada pela qualidade intrínseca da obra, como ela foi estruturada, como ela se constrói. Se insistimos na figura do leitor no âmbito da abordagem à nova geração de escritores é por desconfiarmos que certos juízos não nos permitem situar a sua qualidade, para o bem do próprio autor, dos leitores e da literatura moçambicana, de uma forma geral.

Do que fica exposto, resulta que a qualidade literária é uma verdade provável e, como tal, deve ser descrita e percebida. A qualidade literária é intríseca à obra, mas depende, também, da consciência que lê e do método que preside essa leitura – se sociológico, psicanalítico, estrutural, histórico-literário, etc. –, por isso é que ela é uma verdade provável.

Afirmações do tido “este livro não tem qualidade” devem ser tomadas como redutoras, se não argumentarem o que a obra efectivamente não tem, pois, do ponto de vista do leitor, a qualidade materializa-se racional e culturalmente (tal como o autor criou a sua obra), não podendo, portanto, ser-lhe negada a prova. Podem eleger-se critérios de qualidade, mas tais critérios devem ser passíveis de ser testados.

Depreende-se, portanto, que a expressão qualidade literária é o significante de um método que integra uma certa tradição literária (que impulsiona toda a produção e avaliação), o mundo da subjectividade do leitor e critérios objectivos. 


(1) Se, por exemplo, as obras literárias são o fundamento dos prémios literários socialmente instituídos, há que se lhes reconhecer esse estatuto e relevância sociais, como bem o faz Aguiar e Silva no capítulo consagrado à reflexão sobre a «Pragmática da comunicação literária», da sua Teoria da Literatura. Como afirma o autor, «A Comunicação literária e os seus textos constituem meio e instrumentos privilegiados de conservação e de contínuo renovamento da informação sobre o homem, a sociedade e o mundo, tanto sob a perspectiva da instância de produção como sob a perspectiva das suas inúmeras e historicamente diversificadas instâncias de recepção.» (Aguiar e Silva, 2011: 333).

(2) Andes Chivangue publicou A febre dos deuses – Prémio FUNDAC Revelação 2001 (Conto), e Alma Trancada nos dentes (2007). É Menção Honrosa do Prémio Nacional de Literatura José Craveirinha 2008. Dom Midó das Dores publicou A bíblia dos pretos (2008).

(3) Rogério Manjate publicou a seguinte obra de ficção: Amor Silvestre – Prémio Literário TDM 2001, Casa em flor, 2004, Choveria Areia, 2005, e Mbila e o Coelho Uma história para todas as idades (2007), em Moçambique, edição do Centro de Ensino e Língua Portuguesa da Escola Portuguesa de Moçambique, ou O coelho que fugiu da história, no Brasil, pela Ática, 2009. Rogério Manjate criou e dinamizaou na Internet a revista literária Maderazinco. É actor e cineasta.

(4) Guita Jr. estreia-se em 1997, com o livro de poesia O Agora e o Depois das Coisas (Ed. AEMO – Associação dos Escritores Moçambicanos). Em 2000, publica Da Vontade e De Partir – Prémio FUNDAC Rui de Noronha, 1999) – e Rescaldo – Prémio de Poesia  TDM (Telecomunicações de Moçambique) 2001, pela Ndjira. Lança, em Portugal e Moçambique, em 2006, Os Aromas Essenciais, pela Caminho e Ndjira, e Los Aromas Essenciales, em 2010, pela Ediciones Baile de Sol, Islas Canárias, n.0 1 da Colecção África.

(5) Aurélio Furdela publicou De medo morreu o suto – Prémio Revelação AEMO/Instituto Camões de Ficção (2002), Gatsi Lucere – Prémio Revelação de texto dramático AMOLP/ICA (2002), Prémio Nacional de Teatro UNESCO/Ministério da Cultura (2002), Prémio Revelação da Revista TVZINE (2003), e O golo que meteu o árbitro (2006) e As Hienas Também Sorriem (2013). Está antologiado em La Nuova Narrativa in Língua Portoghese.

(6) Clemente Bata publicou Retratos do Instante – Prémio Literário 10 de Novembro 2009. Foi laureado do Prémio Literário “Instituto Camões” e do Prémio Literário da Francofonia 1997.

(7) Ruy Ligeiro publicou O país do medo – Prémio Craveirinha 80 anos – Poesia (AEMO/MBCI).

(8) Oásis – Jovens pela literatura. nᵒ 1. Maputo: AEMO, 1997.

(9) Chagas Levene publicou os livros de poesia Tatuagens de estrelas (2007) e Porto das Luzes (2014). Está antologiado em Encontro com escritores e em Lusophone Project.

(10) Dinis Muhai publicou Rascunho para uma comunicação improvável – Prémio Literário TDM 2008.

(11) Helder Faife publicou Poemas em sacos vazios que ficam de pé – Prémio Literário TDM 2010 (Poesia). Contos de Fuga – Prémio Literário TDM 2010 (Conto) e Pandza (2011, Crónicas). Foi distinguido ainda pelo Prémio Literário 35 anos do Banco de Moçambique (Conto). Foi Menção Honrosa do Prémio Literário 35 anos do Banco de Moçambique (Poesia) e do Prémio FUNDAC Rui de Noronha 2008 (Poesia).

(12) Sangare Okapi publicou Invenário de angústias ou Apoteose do nada – Prémio Revelação AEMO/Instituto Camões 2005, Mesmos barcos ou Poemas de revisitação do corpo – Prémio Revelação FUNDAC Rui de Noronha 2002, Mafonematográfico também Círculo Abstracto, 2011. É Menção honrosa do Prémio Nacional de Literatura José Craveirinha 2008.

(13) Adelino Timóteo publicou, também, Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique (2002), A Fronteira do Sublime (2005), Mulungu (2007), A Viregem da Babilónia (2009), Nação Pária (2010), Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida – Prémio BCI 2011, Não Chora, Carmen (2014) e Nós, os do Macurungo (2014). Esta antologiado em Poesia Sempre (2006) e Antologia da Nova Poesia Moçambicana (2001).

(14) Jorge Matine foi o Coordenador-geral Adjunto da revista Oásis.

 

(15) A referência à critica jornalística fazemo-la apenas por comodidade, pois, entre nós, ela não existe. Já existiu.

(16) Desengane-se quem encontrar na análise subsequente qualquer tentativa, da nossa parte, de falar de pessoas. Discutimos apenas textos, ou melhor, mais concretamente, ideias.

(17) Assim se justifica a inserção de obras literárias nos curricula nacionais de educação, bem como a sua reedição e/ou tradução, por exemplo.

 

Referências bibliográficas

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 8ª ed. Coimbra: Almedina, 2011.

ARTUR, Armando. “Prefácio”. In CÂNDIDO, Manecas. O sentido das metáforas. Maputo: Fundac, 2007.

CASSAMO, Suleiman. “Prefácio Acima da linha d’água”. In FURDELA, Aurélio. De medo morreu o susto. 2ª ed. Maputo: Imprensa Universitária, 2003.

LEITE, Ana Mafalda. “Prefácio. Como se aplaca este frio que vem do Coração”.  In MANGUANA, Celso. Pátria que me pariu. Maputo: Fundac, 2007.

MEIGOS, Filimone. “Apoteose de angústias inventadas do nada”. In OKAPI, Sangare. Inventário de angústias ou Apoteose do nada. Maputo: AEMO, 2005.

NOA, Francisco. “Prefácio”. In LEVENE, Chagas. Tatuagens de estrelas. Maputo: Ndjira, 2007.

OKAPI, Sangare. “Um projecto literário chamado Oásis – Da existência colectiva à afirmação individual”. In Memorial. Maputo: AEMO, 2007.

WHITE, Eduardo. “Poéticas”. In SOLTUANE, Sónia. Sonhos. Maputo: AEMO, 2001.

 

Lucílio Manjate é escritor e docente de literatura na Universidade Eduardo Mondlane. Tem se dedicado à crítica literária publicada em jornais e revistas. É membro efectivo da Associação dos Escritores Moçambicanos.

    

 Livros Publicados

 

1.      Manifesto (Prosa), 2006.

2.      Esperança e Certeza 2 (Antologia de contos), Co-org., 2008.

3.      Era uma vez... (Antologia de contos), Co-org., 2009.

4.      Os Silêncios do Narrador (Prosa), 2010.

5.      O contador de palavras (Prosa), 2012.

6.      A legítima dor da Dona Sebastião (Prosa), 2013.

 

       Prémios

 

1.      Prémio Revelação TDM 2006, atribuído à obra Manifesto.

2.      Prémio Literário 10 de Novembro 2008, atribuído à obra Os Silêncios do Narrador . 

Neste momento, prepara a publicação do livro Antologia Inédita – Outras Vozes de Moçambique, produzido em co-autoria com o poeta Sangare Okapi.

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