REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 52 | junho-julho | 2015

 
 
DORA GAGO

Há palavras que nos beijam... (*)

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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No fundo do corredor, no quarto 9, Matilde ainda dorme. Sempre gostou de acordar tarde. As persianas estão corridas, mas a escuridão não é total. Um raio de luz banha-lhe os cabelos nevados, acaricia-lhe os sulcos que os anos -os oitenta, chegaram, sem avisar, na semana passada, no último dia de Outubro - lhe lavraram no rosto.

Abre os olhos e contempla com uma serena tristeza a cama vazia, na outra ponta. A morte roubara-lhe a companheira de quarto, com quem não tinha qualquer afinidade: duas estranhas, num espaço estranho. Ficara somente uma vaga pena, como uma sombra distante que se esvai, diluída numa sensação de alívio. Esperava, agora, finalmente ter “um quarto só para si” como diria Virgínia Woolf. Quando pensava na tranquilidade da solidão, sentia um vago remorso pelo seu egoísmo. A verdade é que sempre prezara a sua privacidade.

Só partilhara o quarto com o marido que havia partido, depois de um longo sofrimento, corroído por um implacável cancro. Também a ela a temida doença havia lançado os seus tenazes assassinos, mas vencera-a. Agora era a doença de Parkinson que lhe minava, lentamente, os músculos, parecendo, por vezes, as mãos ganharem vida própria através dos tremores.

Em cima da mesa-de-cabeceira, uma moldura  fixou um momento longínquo de felicidade: ela, na juventude madura dos trinta, o marido, ainda na pujança da saúde e a filha, ainda despreocupada e feliz. Depois, o pano de fundo: o solar antigo que haviam reconstruído e recuperado pedra a pedra, alcandorado numa pacata vila, entre o mar e a serra. Mais tarde, aquela casa fora vendida apressadamente para fazer face ao fantasma da doença do marido. Sucederam-se os tratamentos nos Estados Unidos, todos infrutíferos, pois ele piorava de dia para dia.

Antes tinham vivido alguns anos em Inglaterra, onde José, engenheiro de profissão, exercera funções. Lá, Matilde havia concluído o mestrado e o doutoramento e dera à luz a sua Camila, agora “soror Joana” - Carmelita dedicada, filha distante, inexistente, poderíamos mesmo dizer. Vira-a no mês passado quando a deixou ali, sem mais explicações à excepção de: “A mãe está demasiado velha e doente para viver sozinha”. Respondera-lhe secamente que sempre cuidara de si e que não precisava da compaixão dela para nada, que regressasse ao seu convento, à sua clausura, ao universo onde se refugiara por fé, ou quem sabe, para fugir de algo que ela própria desconhecia.

Em mais de vinte anos de vida monástica, fora a segunda saída de “soror Joana”. Isso representaria para ela a violência de romper com as sete orações diárias em conjunto e com as restantes horas de contemplação e oração solitária. O mundo real era sempre um sacrifício quase desumano. Desde que ultrapassara a barreira etária dos quarenta, parecia ainda mais amarga e fechada. Engordara alguns quilos, embora mantivesse a discreta beleza que o hábito se esforçava por ocultar.

Na noite anterior ao seu internamento compulsivo no lar, Matilde havia caído na banheira, desmaiara e fora a empregada doméstica quem a havia encontrado, inconsciente e gelada. Além da hipotermia, fizera várias contusões num ombro e fracturara dois dedos.

É verdade que aquele Lar era o melhor da zona: asséptico, com um número adequado de funcionários, médico e enfermeira em serviço permanente, sala de informática, biblioteca e até um pequeno jardim, onde o sol inundava, a certas horas,os bancos de madeira vermelhos.

Camila-Soror-Joana deixara-a na sala e saíra apressadamente, sem sequer se preocupar em ver o quarto onde a mãe iria ficar, nem com o facto de o ter de partilhar, contrariada, com outra pessoa. Nunca mais voltara, nem telefonara. Mas sempre fora assim. “O seu reino não era deste mundo”.

Nos primeiros anos, Matilde e José chegaram a percorrer o país de lés a lés para a tentarem visitar. Porém, havia demasiadas grades entre eles e a proximidade geográfica era uma mera ilusão.

Oriunda de uma família aristocrata e abastada do Porto, Matilde completara o liceu num colégio interno de religiosas. Desses tempos não guardava boas recordações. Era uma das alunas privilegiadas, devido à condição económica e ao prestígio da família. No entanto, era tudo muito frio, muito impessoal, demasiado regulamentado. Ela era filha mais velha e a irmã, oito anos mais nova, tinha problemas de saúde que exigiam atenção e vigilância constantes. Por isso, desenvolvera um profundo ressentimento relativamente à irmã, que havia permanecido sempre no seio familiar, enquanto ela se sentira “relegada” para um outro espaço, para um segundo plano, onde cresceu a sua tendência natural para a frieza e para ocultar os seus sentimentos através de uma máscara de indiferença e distância.

Em contrapartida, iniciou um percurso académico brilhante, que começou por ser o seu refúgio, a única muralha inabalável, num mundo desprovido de carinho, de afecto. As suas relações com a família haviam ficado marcadas por uma profunda distância. O último contacto com a irmã acontecera havia muitos anos: os ressentimentos e os ciúmes relativamente àquela que sempre fora a “filha favorita”, rodeada do carinho e da atenção que lhe haviam sido recusados, tinham ditado um corte definitivo de relações.

Embora Matilde continuasse católica –mas  de um catolicismo, por vezes pejado de dúvidas ou mesmo de cepticismo –custava-lhe a  entender a filha. Nunca percebera a dimensão da sua fé ou da sua revolta, nunca a conhecera minimamente – e, se calhar, também porque não se esforçara o suficiente para fazê-lo. Numa altura em que ela lhe solicitara uma maior atenção, Matilde estava demasiado ocupada com a sua carreira académica. Era o marido quem estabelecia, por vezes, a “ponte” entre elas. Isto porque, no fundo, ela considerava-a como um “dado adquirido”: fora uma criança desejada, amada, tinha um bom nível de vida, podia comprar tudo o que quisesse, nunca nada lhe fora recusado, ou seja a sua obrigação maternal considerava-se cumprida.

Quando enviuvara, a solidão pesou-lhe de tal modo, que chegou a pensar em professar e entrar também para um convento. Depois, lucidamente percebeu que lhe seria impossível. Sempre fora uma mulher livre, independente e com um mau feitio que lhe dificultava o relacionamento com os outros. Não fora talhada para viver numa comunidade. Até ali, no lar  só saia do quarto para as refeições, o convívio não a atraía minimamente. Além do mais, considerava-se superior aos outros pelo nível cultural e também devido a uma complexa personalidade algo narcisista e egocêntrica.

Ainda em cima da mesa-de-cabeceira e debaixo do retrato encontrava-se o “postal”. O único que recebera no dia do seu aniversário, como costumava suceder, desde há uns oito anos, altura em que as pessoas mais próximas haviam partido, levadas pela morte ou pela própria vida. Sim, porque para além dos amigos e familiares que perdera, havia outros com os quais se incompatibilizara e que lhe haviam sido roubados pela vida. Embora não tivesse mau carácter sempre fora uma pessoa de temperamento complexo e difícil. A própria relação com o marido, o “homem da sua vida”, fora marcada por diversas turbulências e convulsões, só ultrapassadas pela profundeza do amor que os unia e pela infinita paciência que o habitava.

Tinha uma natureza algo violenta, que a tornava rancorosa, desconfiada, de um perfeccionismo exacerbado que desembocava frequentemente na mesquinhez. Existia nela uma confluência exagerada da busca da perfeição e de uma exigência fria, muitas vezes irracional perante si própria e os outros. Depois, havia a outra face da moeda: a solidariedade, os rasgos de humanidade, de generosidade, por vezes, surpreendentes, uma espécie de protecção tirânica perante os seres amados.

Ao longo da sua brilhante carreira académica, deixara também um rasto de incompreensões, invejas, incompatibilidades, que lhe ditaram um isolamento e uma solidão cada vez mais profundas.

Constatava agora a dimensão que haviam adquirido todas as suas lutas vãs. Já de nada lhe servia o prestígio, muito menos o poder. Naquele local, configurado como uma espécie de ante-câmara da morte, todos eram iguais. Mais tarde, quando fossem “pó, cinza e nada” ainda mais idênticos seriam, visto que, no fundo a condição humana irmanava todos os seres humanos, independentemente do estatuto social ou das ambições concretizadas ou vencidas.

Abriu o envelope e releu o  postal  pela vigésima vez. Há muitos anos que o hábito de enviar postais em papel se havia perdido. Por isso, parecia ter ainda mais valor e podia tê-lo sempre junto de si, ao contrário do que sucedia com os e-mails ou sms. Aquele fora enviado por uma ex-aluna, a Cristina, uma das poucas que se tornara sua amiga, de uma lealdade desmedida. Inicialmente, durante as aulas, quase não reparara nela, era apenas mais um rosto, no meio de uma plateia amorfa e indistinta. Certo dia, surpreendeu-a pelas notas brilhantes, o ar sincero, de uma alegria pura e expansiva. Viera dos Estados Unidos, num intercâmbio, após o divórcio dos pais, e estava sozinha em Portugal. Orientara-lhe o mestrado e a amizade cresceu, sedimentou, com altos e baixos, como é costume nas relações humanas, principalmente nas mais profundas e duradouras. Apesar de todos os espinhos, aquela amizade florira, desabrochara e permanecera, embora ancorada, desde há algum tempo, na distância: Cristina havia regressado aos Estados Unidos, casara e tinha três filhos. Prometera ir visitá-la à nova morada quando viesse de férias.

Querida Professora (sempre a tratara assim) espero que este aniversário se renove por muitos e bons anos, repletos de saúde e de felicidade…”muitos beijos da Cristina. Aquelas palavras ternas haviam-lhe trazido a única alegria, uma réstia de esperança, num dia cinzento e frio. Iluminaram-lhe a alma, acendendo-lhe a certeza de que afinal ainda valia a pena, apesar de tudo, estar viva. Enquanto houvesse alguém  a pensar nela, a enviar-lhe ternura e carinho. Às vezes bastava tão pouco para dar sentido ao verbo “existir”. Na verdade, como escreveu O’Neil, “Há palavras que nos beijam/ como se tivessem boca…”

 

 

Dora Nunes Gago

In A Oeste do Paraíso (adaptado), 2012

 

 


  (*) Alexandre O’Neil, “Há palavras que nos beijam”, No Reino da Dinamarca, 1958.
   
 

 

Dora Nunes Gago  (Portugal) é atualmente Professora  de Literatura no Departamento de Português  Universidade de Macau (China). Doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, Mestre em Estudos Literários Comparados, licenciada em Português-Francês, foi professora do ensino secundário, Leitora do Instituto Camões na Universidade da República Oriental do Uruguai (Montevideu, Uruguai),  bolseira de investigação pós-doutoramento da FCT, na Universidade de Aveiro e “visiting post-doc” na Universidade de Massachussetts, Amherst (Estados Unidos).  Publicou os livros: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (1ºed. 2004, 2ª 2005, em co-autoria com Arlinda Mártires); A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, Campo das Letras, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008;  A oeste do Paraíso, contos, (e-book, emmoby ed. (2012);  As Duas Faces Do Dia (Chiado Editora, 2014); Travessias, contos migratórios (Edições Esgotadas, 2014). Além disso, tem colaboração dispersa em  obras colectivas,  revistas e jornais nacionais, assim como artigos publicados em revistas académicas internacionais.

 

 

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