REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 50 | fevereiro-março | 2015

 
 

 

ANTÓNIO BARROS

Ainda "GerAcção" ou apenas: geração. Gioconda e a Pedra

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Hoje dormi com uma outra. Ou melhor, com uma outra insónia: Geração.

Depois de Wark com a "terceira natureza" - que é também e fundamentalmente um desafio à criação/gestação de uma quarta natureza - "natureza" outra, não tem mais sentido, presumo, falar de gerações. Essa viciosa divisão por castas resulta redutora de sentido e justeza dos conceitos.

Viciosamente fomos programados para formular um automático raciocínio (portador de grandes e plurais patogenias) que nos conduzem, de modo automático, para a convulsiva sucessão de gerações umas após as outras. Sempre no redutor entendimento que sucedem de pais para filhos anulando-se e rivalizando umas com as outras.

 
 

Hoje este entendimento parece-me uma fórmula ultrapassada, e mesmo obsoleta. Valores e qualidades, ou a ausência delas, procuravam ser uma métrica. Sempre faliciosa. Primária mesmo.

Na verdade, cheguei mesmo a obrigar-me a usar esta metodologia, até porque era a ferramenta que a sociedade então me imponha. Questionei-a múltiplas vezes. E agora cansei mesmo. Obrigo-me assim a uma requalificação do sentido e do pensamento. E reprogramo-me no propósito de encontrar uma nova, e outra, formulação: não há mais sentido para raciocinar suportado no entendimento do perfil de diferentes gerações. Ganhou para mim até a palavra geração, a palavra dita - assim dita -, uma certa repugnância. "A minha geração". "A nova geração". "Uma outra geração". Castas diversas e diferenciadas obrigam a uma castração [cast(r)ação] fria das vontades e não permite, tal gesto, território para a gestação de qualquer acto poético.

Hoje não há mais gerações, ou identidade de geração, mas pessoas. A Pessoa e a sua Condição e Sentido. E é aí que a Identidade se formula, agora, numa pretensa definição. Pessoal e individualizada. Depurada. 

Esta consciência premonitória surgiu-me quando estruturei o objecto de reflexão: "GerAcção". Reprogramando a sua semântica. Essa revisita-me agora. Ou seja: proporciona-me hoje contributos procurando razões conclusivas. 

Ernesto de Sousa, que me ofereceu a sua mestria, dizia-me que era preciso surgir uma nova geração capaz de colocar (de novo) os bigodes à Gioconda. E dizia ainda que teria de ser uma geração que acreditasse que a pedra (um dia) daria flor.

Aqui havia teimosamente, ainda, uma narrativa de geração. Uma consciência grupal. Gregária. Mas, na verdade, os malefícios do comportamento gregário rápido fizeram desmontar a legitimidade do fluxo colegial e grupal. E logo dos benefícios da identidade gregária. Assim, num mar de inquietações, desde esse tempo, testei e questionei os propósitos aí enunciados.

"GerAcção" - o objecto pretensamente artitude, formulado em objecto-texto, objecto-livro, poético-visual, que questiona. Questionando. 

Um carro caído na estrada, na sua falência motora, logo abandonado à sua sorte e inércia inapta, mereceu-me atenção pelo seu desenho. Mas também pela sua atitude convocando uma artitude. Tudo obrigava uma resposta ao acto urbano. Confrontei-me várias vezes com o objecto defunto. E logo toda aquela matéria ganhou uma animalidade narrativa. Ganhou vida. Era pedra. Mas começava a dar flor. 

Apropriei-me do animal. Adoptei-o como um animal doméstico encontrado na rua afogado de mazelas. Lambi-lhe as feridas, e passei a habitar nele. Passou a ser a minha casa. A nossa casa em muitos dos momentos, nesse tempo em que vivíamos numa velocidade ciclópica. 

"GerAcção" era um texto que enunciava um propósito. Um sentido de marca e Manifesto. Gerar Acção era a palavra de ordem para a Geração que me transportava, e que eu transportava comigo. A minha Geração, essa que havia recebido um legado perante a Gioconda e a pedra. Mas o tempo desenhou-se em fluxo constante. O tempo mutável, mutante, trazendo consigo uma geração proliferativa e miscegenada com plurais referentes, esses que convulsivamente, a cada momento, chegavam esculpindo uma identidade obrigatoriamente dinâmica. Elástica. Geração que logo fez dissolver os seus mais rígidos alicerces em busca de soltura. Uma geração de soltura é uma não geração. Convoca e enuncia alternativa. É a chegada das pessoas. Da Pessoa. Pessoa sem geração. Logo pertencendo a várias gerações. Pluralizante. Numa miscegenação agora assumida para uma outra natureza - "natureza" outra. Com pessoas - Pessoas. Sem geração. Gerando Acção. 

Um dia cheguei a 'casa'. Cheguei ao carro ["GerAcção"] e ele já não estava. A sociedade tinha levado o livro-casa, obrigando a rua à sua disciplina. Essa disciplina que não ensina. Que não vive. A rua voltou a ser pedra. E a pedra não voltou a dar flor.

 

AB_27.11.2014

 

  António Barros • Nasceu em 1953 - Funchal, Ilha da Madeira.
Estudos: Facultat de Belles Arts, Universitat de Barcelona; Universidade de Coimbra. Vive e trabalha em Coimbra.
Em "Artistas Portugueses na Colecção da Fundação de Serralves", é o director do Museu, João Fernandes, quem enuncia: "António Barros é dos nomes relevantes do contexto da poesia experimental e das artes performativas em Portugal. A obra de António Barros objectualiza e espacializa o texto, explorando novas polissemias originadas pelo cruzamento da textualidade com uma visualidade iconoclasta e irreverente".
De sensibilidade fluxista, a sua obra convoca não só uma arte de situação debordiana, como ainda a Escultura Social de Joseph Beuys, tendo também trabalhado com Wolf Vostell no Vostell Fluxus Zug, Das Mobile Museum Kunst Akademie em Leverkusen.
Se as suas artitudes convocam o situacionismo de Guy Debord ao visitar a poésie directe francesa, Lawrence Ferlinghetti, pioneiro do Movimento da Beat Generation para a poesia - quando destaca a obra performativa "Revolução" em Cogolin, 1986 -, e Julien Blaine - ao publicar "Tradição" e "Escravos" na revista Doc(k)s -, são quem primeiro internacionaliza a arte de António Barros.
Esta última atitude em objecto-texto, é a que em 1984 um júri - integrando Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Carlos de Vasconcelos, Maria Velho da Costa e Manuel Alegre -, destacou no Concurso Nacional de Poesia 10 Anos do 25 de Abril, resultando este texto num elemento identitário do seu percurso "visualista" - onde o objecto e a palavra sinergicamente se insinuam.
A resiliência com que sinaliza os seus gestos de escrita [progestos], leva-o ainda à territorialidade do objecto escultural, vindo a criar, e para além dos seus múltiplos environments  como "Algias, NostAlgias" e "Amant Alterna Camenae", o Prémio de Estudos Fílmicos Universidade de Coimbra, com que foram laureados Alain Resnais, Manoel Oliveira e João Bénard da Costa.

http://barrosantonio.wordpress.com
 

 

© Maria Estela Guedes
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