REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 47 | agosto-setembro | 2014

 
 

 

 






MARIA ESTELAGUEDES

José Emílio-Nelson:
as suas bacanais e falsas portas




Foto por Ed. Guimarães

Maria Estela Guedes (Portugal, 1947). Poeta, ficcionista, cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados.      

 

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Um recente livro de José Emílio-Nelson, Como falsa porta, dá-nos entrada para uma das líricas mais desconfortáveis, digamos mesmo que atrozes, da literatura portuguesa. Quem o tem estudado refere como única a sua obra, e não há motivos para discordar. Luís Adriano Carlos, autor dos textos de badana, define algumas das constantes de José Emílio-Nelson, que logo nos permitiriam rotulá-lo como surrealista abjecionista. Ninguém aprecia os rótulos, eles limitam, são portas que se fecham, mas sem portas não é fácil definir o espaço da casa poética. Assunção do feio como feio e não de algo como o belo horrível do romantismo, primeira porta da casa, segundo Luís Adriano; amplitude polifónica, segunda.

O que é feio? – pergunta-se. Não se trata tanto do feio numa perspetiva estética, visto que ela soube agregá-lo a si, justamente como estética do feio, sim do que, desde a infância e da catequese, nos ensinaram que não deve fazer-se, por motivos de saúde ou de bom comportamento social e moral. Se redigirmos uma lista das más ações, de certeza as encontramos todas, como práticas poéticas habituais, em José Emílio-Nelson. Desde coisas francamente execráveis como a coprofagia até uma teologia negativa a visualizar-se como profanação e desrespeito por Maria, tudo lemos neste poeta, cujo espaço de intervenção política, manifesto no assédio constante à moral burguesa, coincide assim com o abjecionismo. José Emílio-Nelson escreve contra a moral comum, essa que nos leva a emitir juízos de valor a propósito de tudo, incluído o que depende da biologia e não da vontade e em especial sobre aquilo que nem sequer conhecemos.

Sim, José Emílio-Nelson, cujos primeiros livros me recordo de ter recenseado, é uma voz singular na nossa literatura. Essa singularidade vem-lhe da coragem com que enfrenta todos os nossos mais comuns preconceitos a respeito do belo, da linguagem, da vida e da morte, da doença, em suma, do que se pode e não pode dizer, do que se deve e não deve mostrar, e já ia escapando nestas linhas o mais forte motor da obra e da nossa repreensão moral, apesar de o ter escolhido para título deste artigo, a sexualidade, que não podemos desligar da cultura clássica: se Bacchanalia é um termo fortemente dionisíaco, o Banquete, tão presente no livro, é um termo fortemente platónico; por cima de tudo isto, a referência sádica não é de somenos. Poder-se-ia alegar que a dimensão orgânica, o corpo, é mais ampla que o sexo, mas não: se filtrássemos os milhões de livros que a ciência já escreveu sobre o corpo e os corpos, desde os animais aos vegetais, ficaríamos com algo como uma biologia da sexualidade, a esclarecer as dezenas de modalidades da reprodução, pois é isso o que importa ao ser vivo: a permanência da espécie mediante a reprodução. Para o caso de José Emílio-Nelson, quem fala é Hesíodo, e a reprodução toma o nome de teogonia:

“A noite negra, a Deusa.

Cresce na obscuridade

O vasto Céu.

Daí nasce o pássaro alcião,

E a luz rasteira amaina.

Faz o ninho na penumbra.

A emasculação de Urano. Aí se mostra.

Adensa-se, sombrio, o olhar dum moribundo.

O mar alto é estéril.

Do que há-de vir.

Ar e Noite. Mesclam-se./”   

Quanto à polifonia, aliás polimorfismo, “Como falsa porta”, último bloco de poemas do livro, é disso uma ilustração feliz, apesar de a felicidade contrastar com a tonalidade geral mais negra; os poemas desenvolvem-se a partir de um mote de um ou mais versos: “Um céu rente ao chão/ A branca tibieza/ Da pedra parada./” – e isto é estranho, pois cola-se um ritmo popular a cenários gregos e a recursos provocatórios da modernidade. Esta espelha-se num experimentalismo visual que agrega a si sinaléticas de transcrição e comentário (barra oblíqua), e estes dispisitivos congregam por seu turno as alusões à pintura, em especial o dramático Goya. Nada neste bloco, a não ser eventualmente aquilo que refere, é classificável como feio. O poeta dispõe de discurso poderoso, de uma beleza recortada na noite a que o poema recolhe, noite áspera, profunda, aquela que cria e a criação concede. A repetição reina como em ritual e tudo ascende à cúpula da Noite, Nix, deusa da criação cantada por Hesíodo. O núcleo do poema é a emasculação de Urano, mutilação paralela da mastectomia da primeira parte do livro, Bacchanalia, em que o feio aparece na figuração do cancro da mama. Num caso e noutro, os órgãos atingidos dizem respeito à reprodução, ao pavor da impotência de criar.

Nem sempre o feio prevalece, em José Emílio-Nelson. Já se sabe que a repetição é encantatória, quando boa a técnica e a execução, e a ela se deve em parte a beleza cantabile do grupo de poemas “Como falsa porta”. Desenvolve, como já vimos, o tema cosmogónico, com a emasculação de Urano por seu filho Cronos em lugar central. Urano era filho de Gea, a  Terra, hoje mais conhecida como Gaia, por ter emprestado o nome à bem conhecida teoria de ser a Terra um organismo vivo que se autorregula. O aspeto criador do mito surge em José Emílio-Nelson na figura do “pássaro alcião” (Alcedo sp.; Halcyon sp.),  guarda-rios ou pica-peixe, ave de dorso azul, bico forte e longo que faz ninho nas margens de planos de água. O antigo nome Halcyon da espécie remete para a mitologia grega, em especial para o deus Ceix e sua esposa Alcione. Zangado com eles, Zeus puniu-os, transformando-os em aves: Alcione em pica-peixe e Ceix em ganso-patola.

A esta teogonia alia-se a "Teologia culposa", parte central do livro, que reage violentamente contra os preceitos morais da religião católica.

Rico em achados formais - sinalética de localização, com versículos numerados, sinalética de transcrição - o livro apresenta uma falsa porta como principal diversão, que é a de o título de capa não corresponder ao da ficha técnica. Por estes motivos, à proximidade do classicismo e do abjecionismo há motivos para acrescentar o pendor barroco deste excelente poeta, único, sim, na nossa literatura, apesar de lembrar um pouco o seu contemporâneo Alberto Pimenta, que também é um génio da aliança entre a erudição e a modernidade.

Maria Estela Guedes
Casa dos Banhos, 05.08.2014

 
  JOSÉ EMÍLIO-NELSON
Como falsa porta
Edições sem nome: edicoes.semnome@sapo.pt
2014
 

 

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PORTUGAL