REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 45 | abril-maio | 2014

 
 

 

 

ARNALDO SALDANHA ABREU


Transparências

 

Arnaldo Saldanha Abreu (Lisboa, 1966). Licenciado em Sociologia do Trabalho pelo ISCSP/UTL. Em 2012, participou em duas colectâneas com dois contos, um dos quais foi premiado com a realização de um filme para um dos seus poemas. Em 2013, alguns dos seus textos foram publicados numa revista literária. Acabou de publicar Transparências e outros anexos que são os seus exercícios de percepção poética das impressões da escrita.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Transparências

Em cima da mesa uma ampola de sangue.

A criança fervilha de curiosidade para agarrá-la.

Uma luz branca incide no tampo envernizado.

O reflexo percorre a transparência do pai estilhaçando

as delicadas extremidades de vidro.

O homem verte vinho para um jarro e tinge de tintura a água.

A mulher abre um frasco de amor e escurece de vermelho

fatias de pão.

As filhas têm tranças de cabelo azeitona e de trigo dourado.

À mesa todos se riem por ele ter a boca pintada de ameixa.

 

 

Na manhã seguinte quebrou a ampulheta e destruiu

o mecanismo de conta-gotas.

 

O reflexo imobilizou-se no rapaz que cresceu

e que vê pelas mãos à transparência.

 

 

A cidade 

Fazíamos arcos com ramos de eucalipto

esticados por finas cordas de nylon que roubávamos

dos fios-de-prumo.

Os cabouqueiros abriam a pulso valas que enchiam

com cascalho, cimento e areia grossa.

As casas proliferavam semana após semana.

O povoado crescia — anos mais tarde a capital transbordou

e a nossa terra aumentou-se de casas e de pessoas

e ganhou o estatuto de cidade desordenada,

Havia comércio a cada esquina e a vida acontecia muito depressa,

os homens sopravam o pó dos fatos

e as senhoras sujavam os saltos das botas de cano alto

na lama das ruas sem alcatrão.

Os cabouqueiros passaram a guiar máquinas que esventravam

a terra para se alimentarem das raízes dos pinheiros

e dos eucaliptos

e os lavradores plantavam guindastes e enxertavam-se

no cimo de andaimes.

 

Foi há muito tempo.

Mas de um tempo mais antigo são as noites em que tirávamos prumadas às estrelas

e nos dias resplandecentes de sol

tu equilibravas-te num curto vestido de renda

e em troca de um beijo

eu deixava-te desfilar com o meu chapéu de palha.

 

 

Hibakusha 

Paridas rente ao chão sustêm-se

definhadas ervas bravias

balbuciando sede, suplicando

insídias gotas de vida

atónitas por um clarão pérfido,

potente sol, vermelho-vivo

enegrecendo de morte

a imensidade absoluta.

 

Perpetua-se, infinitamente,

o céu plúmbeo nas crias

condenadas à existência

no asfalto liquefeito

correm nuas, ionizadas,

a pele despegando-se do corpo

templo de feridas antigas.

 

Sobrevivendo nos arrabaldes

da sobrevivência corroída

órfãs de terra-mãe

aguardam vez para a unção extrema

réstia de esperança na morte

para quem na vida não teve.

 

 

Palavras 

Rasgam-me a garganta.

As palavras soltam-se.

Como pombas da paz libertas de um tempo infértil

Voam, agora,

Esplêndidas

Precipitam-se a meus pés arfando vida num suicídio anunciado.

Esventradas,

Tingem-se com o sangue imaculado das palavras degoladas.

 

Decepam-me os dedos.

As palavras partem, desenleiam-se.

Renovo-me na carne decepada.

Com os dedos novos que me crescem

Teço reflexos de um reflexo oculto projectado no chão térreo

Viro as palmas das mãos para cima

Tento abarcar a pequenez do céu com a enormidade

de um abraço

Ajoelho-me na terra aquecida pelo sol breve que me trespassa

a espinha.

Curvo-me.

Nascemos para pequenos milagres.

 

Separam-me a língua.

As palavras desprendem-se, revoltam-se, personificam-se, enleiam-se e fornicam

Indomáveis

Fazemos filhos,

Multiplicamos sangue,

Arrancamos a pele e gravamos na carne o tumulto ininterrupto de um rio que saliva palavras.

 

 

Mecanicamente 

Movo-me mecanicamente por impulsos não pensados

Simplesmente não funciono por estímulos da razão

Detestaria que um dia ao ser dissecado alguém dissesse:

«Ei-lo! Emocionalmente insatisfeito e racionalmente realizado.»

Detesto rótulos apostos por gente certinha e pensante

E não quereria ver-me dentro de um frasco catalogado.

 

Acerto apenas duas vezes ao dia

Como um relógio parado numa sala-de-estar vazia.

De manhã estava vivo e acordei

À noite se me deitar é porque vivo estarei

Agora é tarde, mas vivo, pois assim tem de ser

Erro, não acerto, não penso, estou a viver.

 

 

Leite materno 

Palavras proibidas soando roucas

mortas à nascença no canto da boca

como filhos regurgitando fome

no leite materno seca o homem

peca de língua afiada sucumbindo

no peito que dá vida

nascem filhos

alimenta-os

dá-lhes amor e mais porrada

afoga-te na taça de vinho

encarna-te

vende o sangue que te sorvem

do teu suor destila o sal

e humedece a terra

que prenhe de ti

até às entranhas

estende a língua

para te lamber.

 

Blues and Whiskey 

Toquei blues transversais ao tempo

Foi há muitos anos

Antes de eu ser velho

Tocava notas soltas

Dedilhando lamentos repetitivos

em cordas gastas que gemiam anos velhos e gastos como eu.

Tocava blues e bebia whiskey envenenado.

E não morri!

 

O veneno tornava-me a voz arrastada e melodiosa

Diziam que causava um arrepio na espinha

e que os meus olhos brilhavam a melancolia e a tristeza

dos escravos negros traficados pela humanidade que carregamos às costas.

E era esse o peso que eu sentia e que me vergava.

Idolatravam-me e eu sorria.

O meu segredo era o veneno que eu tomava.

E não morri!

 

Tocava blues numa guitarra velha

Assim como eu

E cantava canções tristes

Ritmadas entre espasmos de dor na curva do peito

e orgasmos compassados na harmonia de um vão de escada.

Agora já não toco blues

Ouço apenas

Ficaram gravados em mim

O veneno clareou-me o pensamento

A voz já não se arrasta

E também já não canto melodias tristes

Até porque nunca mais disse palavra.

O meu olhar continua envenenado

Afastam-se de mim

E já não me idolatram

O veneno agora sou eu.

E ainda não morri!

 

 

Criança suicida 

Sabes?!

(Disse-me.)

Tenho a boca a saber a minério.

Desdobrou as mãos grossas e mostrou-me os dedos gretados

pela garimpa.

O médico deu-me seis meses de vida:

(É o que oferecem

— encolheu os ombros —,

estou moribundo e mais não dão por um homem em ruínas.

Mais mês ou menos mês.

Menos vida por vida.)

O mercúrio envenenou-me o sangue.

Foi no que deu dedicar-me à alquimia.

 

Primeiro cegamos, depois vamos perdendo o tacto.

Restam-me lembranças:

o vulto que se arrasta

a lucidez esbatida na lenta memória do corpo.

O teu

perdura na ponta dos meus dedos mortos.

 

Depois?

Depois choramos e as lágrimas esculpem o rosto.

(Que lágrimas choram olhos que não vêem?)

 

Sabes?!

Percorri a estrada de sal.

Amei a serpente.

(Pobre criança suicida!)

Assisti à deposição do último rei da prússia.

Depois,

(Contou-me.)

Transmutei-me num carnaval celta

Travestido de monge turco.

Não toleraram a minha heresia.

Fui condenado a trabalhos forçados,

Deportado para a terra de meus pais.

Lá, onde não tenho ninguém.

 

Se quiseres,

(Continuou.)

Posso falar-te da criação do mundo e da sucessão dos dias

Do deslocamento rotacional dos corpos

E da insignificância da génese cartesiana

Da geometria lasciva do voo do beija-flor

E da revolta dos negros no coração da terra

Do murmúrio inebriante dos sinos pendulares

Para sempre silenciados

Do desmoronamento da torre de zanzibar

Palavra a palavra.

Ficou tudo tão triste, meu amor.

 

Ouve-me, peço-te

Se quiseres fugimos e procuramos refúgio

Na letargia do sono índigo

Ou no entorpecimento da bebedeira de absinto

Na mitigação dos instintos primitivos

Ou na ancestral dormência deste céu atávico

que escorre por cima de nós.

 

Se quiseres posso falar-te de mim, meu amor

Até ao fim do mundo,

até ao fim de tudo,

onde restamos sós.

 

 

Reflexos 

Ele é velho, está velho, já nasceu assim: velho.

Ela é nova, muito nova.

 

Ela caminha num bordo suspenso, equilibra-se naturalmente

e caminha elegante.

Ele dá-lhe a mão a que ela se segura enquanto caminha jovem

e nua no bordo de fora do mundo.

 

As suas formas uniformes são definidas, firmes, delineadas

e belas, muito belas.

Ele é um corpo disforme.

 

Ela vê reflexos espelhados numa face de água

e não vê as lágrimas cristalizadas nos olhos dele.

 

Apenas ele sabe das suas lágrimas. Apenas ele percebe

de lágrimas.

 

Ela conta-lhe do mundo, do mundo novo de todos os dias

e do qual vê reflexos espelhados numa face de água

quando caminha nua num bordo de terra.

Ele surpreende-se com o que ela lhe conta do mundo novo

sem que nele fiquem traços de espanto.

Ela acredita que ele fica espantado.

Ele quando lhe contava, apenas contava mentiras que ela julgava serem verdades e assim ela não sabe que ele mentia

e já nem ele sabe.

 

Ela conta-lhe mentiras mas não sabe que são mentiras.

Ele ainda lhe conta mentiras que julga serem novas

do mundo velho e que a ela já não interessam

por serem de um mundo novo que se faz velho todos os dias

e ela faz um mundo novo todos os dias.

Ela caminha nua num bordo de fogo. Pela última vez conta-lhe sobre os reflexos do mundo. O tempo dele chegou ao fim.

Ela não sabia. Ele contou-lhe. Foi um acto egoísta como todos os actos de amor.

 

De noite amaram-se. Pela manhã morreriam.

 

De manhã ela estava morta, nua, jovem e bela.

 

Ele também cortou as veias e morreu velho.

 

 

Barro 

Disse: pedra. E escreveu mundo.

Disse: água. E jorrou vida.

Disse: criança. E lambeu nos dedos um pedaço de céu.

Disse: homem. E acendeu-se um cavalo no horizonte.

Disse: mulher. E côncavo, aconchegou-se no barro.

 

A intensidade da luz cegou o cavalo-poente e circunscreveu-o

à enormidade da noite.

 

A mulher nunca quebrou o pacto. Um ventre de sangue estoirou-lhe nas mãos e abafou o choro pioneiro do filho

sem sustento acabado de parir.

 

A morte principia onde mãe acaba e o homem começa.

 

Quedava-me a ouvir ao longe as sirenes dos barcos

ao largo na cidade.

Os braços resistiam ao vento que soprava das fábricas.

Sentava-me perto da única janela.

As gotas amoleciam a tarde na vidraça

e os dias pareciam dardos longos que arrasavam o tempo.

No quarto guardava um caderno com desenhos abstractos

que representavam a concretude.

 

Tenho uma cidade inteira prestes a explodir dentro da cabeça.

Tenho uma caixa de lápis de cor que só uso de emergência.

Tenho veneno que chega e sobra para infectar as ruas.

Tenho astrolábios de barcos afundados nas entranhas

de um povo.

Tenho âncoras de pele a despregarem-se do corpo.

Tenho a fuligem do rio turvada nos olhos em sangue rubro.

Tenho um grito mudo escondido por detrás das palavras

da criança no homem que chora e não quer cegar.

Arrumo todos os meus pequenos cantos.

Lápis, canetas, rascunhos,

Livros de colorir, instantâneos sem cor,

Fragmentos, recados para o futuro, tiras de celulóide queimada,

Fitas de nastro esgaçadas pendendo medalhas.

 

Desnudo biombos da memória.

Risco linhas supostamente convergentes.

Esboços de esboços.

Improvisos de letra sobre letra.

Desmorono,

pedra a pedra,

a horizontalidade do naufrágio do filho que reescrevo.

Resgato preciosidades a que me agarro.

 

 

O poeta cego apalpou a nervura da página e enterrou as mãos

no barro.

O desejo aluado estalou de encontro à rasura da pele,

Reduzindo o silêncio ao desespero obsessivo da procura

de palavras.

 

Na geografia da garganta o turbilhão arranha gritos na tábua rasa

e em êxtase o mar revolto galga as margens da cidade dilacerando quem o enfrenta.

 

A criança-homem monta o dorso insubmisso e doma-lhe

o desejo, fincando-se-lhe nas ancas com esticões nas rédeas.

 

Alucinados,

trocam sangue e saliva

e escoiceiam irados os fluidos das paixões violentas.

 

A escrita começa onde o homem acaba e o mundo principia.

 

 

ARNALDO SALDANHA ABREU

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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