Compras pouco sensatas
Estão pela casa
quase sem uso nenhum: o conjunto
das obras
completas de Verdi, por abrir.
O Proust todo, por ler:
As camisas de seda de corte
Francês
que estão penduradas no armário
como fantasmas caros
e me fazem parecer exactamente
com o tipo de homem de meia
idade
que use uma camisa de seda de
corte Francês.
O telescópio de espelho que eu
pensei que desvendaria
os mistérios
dos céus
mas que usei só uma ou duas
vezes
para tentar descobrir algo
celestial
na janela do prédio alto em
frente,
e que agora fixa desconsolado o
tecto
quando podia estar a examinar a
Constelação de Caranguejo.
O curso de Espanhol em 30 dias
cujo texto nunca abri,
cuja dúzia de cassetes continua
por ouvir,
salvo a primeira, onde nunca
soube
se a
Americana delicada
conversando com um empregado
malicioso
num hotel de Madrid sobre a
possibilidade
de conseguir um quarto,
o conseguiu de facto.
Gosto de pensar
que entre eles uma coisa levou a
outra
e que por altura da Cassete Seis
mais ou menos
estão casados e felizes
a
educar uma criança bilingue em Sevilha ou Terre Haute.
Mas nunca saberei.
Apercebo-me de repente
que construí a casa perfeita
para um astrónomo
sexy e falando Espanhol
que lê Proust enquanto ouve
árias italianas,
e interrogo-me se algures nesta
cidade apinhada
vive uma mulher com, digamos,
um florete enchendo-se de pó no
canto
perto do cavalete por usar, um
arco-íris de tintas a óleo
a secarem nos tubos
sobre a mesa onde o violino
que ela comprou
num impulso
jaz enclausurado na escuridão
permanente
do seu estojo fechado
junto ao jogo de xadrez
abandonado,
uma mulher que sonhou sempre
tornar-se
o tipo de mulher que o homem que
eu sempre sonhei tornar-me
sempre sonhou encontrar.
E enquanto os dois discutem
grupos de estrelas
e Cézanne, enquanto esgrimem
delicadamente
em Castelhano ao som da música
do Rigoletto,
ela e eu estaremos na cozinha
cheia de vapor,
preparando um simples
risotto,
apreciando um
cabernet barato,
ao mesmo tempo que discutimos um
dia tão vulgar
que parece um milagre.
Zero
Cinco positivos primeiro, dois a
seguir,
depois uma manhã zero apenas.
Havia uma estranha excitação ao
dizê-lo.
Estão zero graus, disse eu
quando te levantaste.
Estava a deitar-te o café
e de repente a casa toda
adquiriu sentido:
o telhado, as paredes, o
aquecimento
a crepitar no soalho. Até a
hipoteca. Zero,
disseste tu, ainda de roupão.
E caminhaste para a janela e
olhaste
para o manto de neve no jardim
onde no verão passado plantaste
cenouras
e rabanetes, ervilhas de cheiro
e cebolas,
e uma minúscula, densa e chuvosa
floresta de tomateiros
no calor intenso de Junho.
Sim, disse eu, com ar sério e
definitivo,
fixando a cobertura branca de
neve da churrasqueira
que desleixadamente não levara
para a garagem para o inverno.
E segundo o rádio pode descer.
Gosto daquele roupão, branco e
bruxuleante,
com tendência para entreabrir
a não ser que o apertes mesmo
bem.
Os bárbaros não estavam às
portas da cidade.
Cartago não estava em chamas,
nem mesmo era
o Donner Party*. Mas, meu Deus,
estavam zero graus,
e o roupão entreabriu-se.
*Comboio
californiano, cuja progressão foi impedida, tragicamente,
pela neve na Serra Nevada, em
1846.
Despedida de solteira
Talvez, num café distante,
quatro ou cinco pessoas estejam
a falar
com as quatro ou cinco pessoas
que estão a conversar ao
telemóvel hoje de manhã
no meu café favorito.
E talvez alguém aqui,
alguém como eu, as esteja a
observar a franzir as sobrancelhas,
a sorrir, ou a encolher os
ombros
para os seus amigos ou amantes
invisíveis,
gesticulando para serem mais
enfáticas.
E, como eu, sinta a falta do
tempo,
em que falar consigo próprio
era ser maluco,
quando ser maluco era uma coisa
séria,
não um simples acrónimo*
ou algo para que se pudesse
tomar um comprimido.
Eu gostava
de que quando as pessoas estavam
a falar consigo
podiam na realidade ter estado a falar com Deus
ou um anjo.
Respeitávamos pessoas assim.
Não as queríamos matar,
como eu quero matar a mulher na
mesa a seguir
com a luzinha azul na orelha
que tem estado a relatar ao
vazio à sua frente
a despedida de solteira da filha
com um detalhe surpreendente
durante a última meia hora.
Oh pessoa como eu,
sem telefone no teu café
distante,
quem me dera que nos pudéssemos
encontrar para discutir isto,
e talvez me ajudasses
a assassinar a mulher ao
telemóvel,
após o que podíamos beber uma
chávena de café,
uma rosca** talvez, e falar um
com o outro,
cara a cara.
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