REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 41 | outubro-novembro | 2013

 
 

 

 

 

GEORGE BILGERE


Poemas

traduzidos por Francisco Craveiro

GEORGE BILGERE. Poeta americano, nascido em 1951. Ensina na John Carroll University, Ohio, U. S. A. . O seu último livro é White Museum, 2010.

 

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Compras pouco sensatas 

Estão pela casa

quase sem uso nenhum: o conjunto das obras

completas de Verdi, por abrir.

O Proust todo, por ler:  

  

As camisas de seda de corte Francês

que estão penduradas no armário como fantasmas caros

 e me fazem parecer exactamente

com o tipo de homem de meia idade

que use uma camisa de seda de corte Francês.

  

O telescópio de espelho que eu pensei que desvendaria

os mistérios  dos céus

mas que usei só uma ou duas vezes

para tentar descobrir algo celestial

na janela do prédio alto em frente,

e que agora fixa desconsolado o tecto

quando podia estar a examinar a Constelação de Caranguejo.

 

O curso de Espanhol em 30 dias

cujo texto nunca abri,

cuja dúzia de cassetes continua por ouvir,

 

salvo a primeira, onde nunca soube

se a  Americana delicada

conversando com um empregado malicioso

num hotel de Madrid sobre a possibilidade

de conseguir um quarto,

o conseguiu de facto.

 

Gosto de pensar

que entre eles uma coisa levou a outra

e que por altura da Cassete Seis mais ou menos

estão casados e felizes

a  educar uma criança bilingue em Sevilha ou Terre Haute.

 

Mas nunca saberei.

Apercebo-me de repente

que construí a casa perfeita

para um astrónomo sexy e falando Espanhol

que lê Proust enquanto ouve árias italianas,

 

e interrogo-me se algures nesta  cidade apinhada

vive uma mulher com, digamos,

um florete enchendo-se de pó no canto

perto do cavalete por usar, um arco-íris de tintas a óleo

a secarem nos tubos

 

sobre a mesa onde o violino

que ela comprou  num impulso

jaz enclausurado na escuridão permanente

do seu estojo fechado

junto ao jogo de xadrez abandonado,

 

uma mulher que sonhou sempre tornar-se

o tipo de mulher que o homem que eu sempre sonhei tornar-me

sempre sonhou encontrar.

 

E enquanto os dois discutem grupos de estrelas

e Cézanne, enquanto esgrimem delicadamente

em Castelhano ao som da música do Rigoletto,

 

ela e eu estaremos na cozinha cheia de vapor,

preparando um simples risotto,

apreciando um cabernet barato,

ao mesmo tempo que discutimos um dia tão vulgar

que parece um milagre.

 

Zero 

Cinco positivos primeiro, dois a seguir,

depois uma manhã zero apenas.

Havia uma estranha excitação ao dizê-lo.

Estão zero graus, disse eu quando te levantaste.

 

Estava a deitar-te o café

e de repente a casa toda adquiriu sentido:

o telhado, as paredes, o aquecimento

a crepitar no soalho. Até a hipoteca. Zero,

disseste tu, ainda de roupão.

 

E caminhaste para a janela e olhaste

para o manto de neve no jardim

onde no verão passado plantaste cenouras

e rabanetes, ervilhas de cheiro e cebolas,

e uma minúscula, densa e chuvosa floresta de tomateiros

no calor intenso de Junho.

 

Sim, disse eu, com ar sério e definitivo,

fixando a cobertura branca de neve da churrasqueira

que desleixadamente não levara para a garagem para o inverno.

E segundo o rádio pode descer.

 

Gosto daquele roupão, branco e bruxuleante,

com tendência para entreabrir

a não ser que o apertes mesmo bem.

 

Os bárbaros não estavam às portas da cidade.

Cartago não estava em chamas, nem mesmo era

o Donner Party*. Mas, meu Deus, estavam zero graus,

e o roupão entreabriu-se. 

 

*Comboio californiano, cuja progressão foi impedida, tragicamente,  pela neve na Serra Nevada, em 1846. 

 

Despedida de solteira 

Talvez, num café distante,

quatro ou cinco pessoas estejam a falar

com as quatro ou cinco pessoas

que estão a conversar ao telemóvel hoje de manhã

no meu café favorito. 

 

E talvez alguém aqui,

alguém como eu, as esteja a observar a franzir as sobrancelhas,

a sorrir, ou a encolher os ombros

para os seus amigos ou amantes invisíveis,

gesticulando para serem mais enfáticas. 

 

E, como eu, sinta a falta do tempo,

em que falar consigo próprio

era ser maluco,

quando ser maluco era uma coisa séria,

não um simples acrónimo*

ou algo para que se pudesse tomar um comprimido. 

 

Eu gostava

de que quando as pessoas  estavam a falar consigo 

podiam na realidade ter estado a falar com Deus

ou um anjo.

Respeitávamos pessoas assim. 

 

Não as queríamos matar,

como eu quero matar a mulher na mesa a seguir

com a luzinha azul na orelha

que tem estado a relatar ao vazio à sua frente

a despedida de solteira da filha

com um detalhe surpreendente

durante a última meia hora.

 

Oh pessoa como eu,

sem telefone no teu café distante,

quem me dera que nos pudéssemos encontrar para discutir isto,

e talvez me ajudasses

a assassinar a mulher ao telemóvel,

 

após o que podíamos beber uma chávena de café,

uma rosca** talvez, e falar um com o outro,

cara a cara.

   
 
   
 

*TGIC – This Girl is Crazy
** Bagel

 

 

© Maria Estela Guedes
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