REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 40 | agosto-setembro | 2013

 
 

 

 

JÚLIO CONRADO

Manuel Simões -
"A pátria que o pariu"

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Em 1970, ia Manuel Simões pelos seus 37 anos, publicava ele poemas declaradamente neo-realistas, ajudando a desfazer a ideia de precariedade ligada ao “elementar” e ao “utilitário”, linhas de orientação pelas quais a escola correlata é no geral responsabilizada em sentido depreciativo. O próprio Simões atribui a boa qualidade estética da sua poesia desse tempo à tardia incursão pela seara lírica, quando já adquirira um léxico especializado, de figurino universitário, e um capital de leituras escolhidas, que lhe permitiram contornar com desenvoltura estilística os mitos negativos e os estereótipos de diabolização do “social” que sempre pesaram sobre este tipo de literatura não obstante ter sido por largo período proeminente em Portugal.

A produção do poeta neste arco temporal tem formato minimalista, implícita e explicitamente falando – num pequeno livro, Crónica Segunda, de setenta e seis, reunião de poemas escritos entre setenta e setenta e quatro – o que não invalida que por essas páginas perpasse todo o imaginário da angústia que feriu o núcleo mais esclarecido da geração de Simões e a levou a resistir como pôde à nomenclatura vigente: a guerra colonial, a desigualdade das condições de vida na planície do latifúndio, os cinzentos suburbanos, os cantos de mágoa e o “modo vicioso de controlar a fala”. A índole crítica e ética dos poemas gerados no referido “tempo” respondem pelos anos de chumbo da ditadura; a escrita tem por referência/influência um mestre primacial: João Cabral de Melo Neto a que se juntaria Carlos de Oliveira, ambos símbolos de transfiguração do real pela palavra usada como dura ferramenta de disciplinada oficina, na perspectiva da fisicalidade do universo, mas no caso de Oliveira sensível ao belo e ao pormenor extraordinário, à micropaisagem. 

Afortunadamente, Manuel Simões rumaria a Itália em 1971 como leitor de português nas universidades de Bari e de Veneza, e por lá ficaria até 2003 como professor da Universidade Ca´ Foscari, de Veneza, responsável pelas disciplinas de Língua e literatura portuguesa e de literatura brasileira. As obrigações docentes “matariam” o poeta, expulsando-o irremediavelmente para o “ensaio”?, poderá questionar-se. Foi ambiguidade que o escritor teve de resolver por si, não se purgando de uma das aptidões em que manifestamente se sentia capaz de mostrar serviço, mas reagindo à tentação fracturante ao providenciar a coexistência pacífica dos dois géneros num mesmo sujeito produtor.

Uma das maneiras achadas por Simões para resolver o “conflito” consistiu em deixar que a poesia se imiscuísse no seu labor crítico ao ponto de ser ela a base de um notável trabalho como recenseador. A sua fértil passagem pela revista Colóquio/Letras a partir de cujas páginas foi um dos seus mais assíduos e conceituados observadores da arte versificatória é, hoje em dia, verificável por meio de um simples click de computador. Note-se que não eram pequenos textos a despachar mas sim preciosas sínteses que a pretexto da publicação de um livro enquadravam autor, tempo, contexto, memória, no largo espectro dos valores que informam o nosso mais prestigiado género literário. Só à conta deste crivo judicativo foram comentadas obras de Vicente Aleixandre, Armindo Rodrigues, Raúl de Carvalho, E. M. de Melo e Castro, Maria Teresa Horta, José Alberto-Marques, Manuel Alegre, José Craveirinha, Alexandre Pinheiro Torres, Eugénio de Andrade, Senghor, João José Cochofel, Mário Cláudio, Ana Mafalda Leite, Fernando Pessoa, Lêdo Ivo e Umberto Saba, entre outros, e a culminar um consistente ensaio consagrado a Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.

O abnegado esforço na Colóquio era replicado em Veneza, na revista Ressegna Iberistica, que M. S. ajudou a fundar em 1978 e de cujo conselho redactorial foi membro até 2012. O esforço era o mesmo, o objectivo diverso: dar notícia da literatura portuguesa vertida para italiano mas num regime que não impedia o desvio da norma se num caso ou noutro fosse essa a vontade do crítico português. Daí resulta que deva ser prestada a Manuel Simões e à sua presença em Itália, durante todos esses anos, o reconhecimento devido pelo facto de muitos escritores nossos compatriotas terem beneficiado quer da sua disponibilidade para os acolher como “anfitrião” residente, quer do acompanhamento crítico que, por essa razão, sobre as respectivas obras incidiu. Reconhecimento foi coisa que não lhe faltou por parte da Universidade veneziana ao dedicar-lhe o formoso volume L’acqua era d’oro sotto i ponti (2001) em cujas páginas vinte e nove pares homenageiam as literaturas ibéricas e brasileira, sendo um desses textos de análise à sua poesia subscrito por Silvio Castro e, a fechar a recolha, uma antologia bilingue de poemas escolhidos por Giulia Lanciani, mais relacionados com Veneza ou com Itália. Na introdução os promotores exaltam as qualidades de um “caro amigo, sempre disponível, de aprazível companhia e conversação.”

Este lembrete respeita a um intelectual que não corteja o ruído, merecedor da reverência italiana e vítima da pífia indiferença portuguesa responsável por mais um caso de descaso caseiro. Alguém que não escapa ao labéu de “estrangeirado”. Quando se distribuem prémios, comendas e medalhas por aí a esmo, o regimento corporativo regala-se com as suas exclusões. O silêncio hipócrita chancela o ódio ao “expatriado”. Uma questão cultural. 

Os três ou quatro livros de poemas que, a meu ver, marcam a trajectória poética de Manuel Simões, são contextualizáveis através das dedicatórias/epígrafes ou prefácios. Crónica Segunda tem por figura tutelar João Cabral de Melo Neto, Canto Mediterrâneo acomoda Carlos de Oliveira, cantor da metamorfose, fazendo pendant com Mário Cláudio, no prefácio, em deambulações sobre o silêncio da “ilha” e o seu descarnado destino de infortúnio: não existe Veneza, só a sua aparência, dita o poeta, citado pelo prefaciador. Fernando J. B. Martinho, no livro significativamente intitulado Errâncias, especifica, também no prefácio: A nenhum dos dois espaços o poeta alguma vez retorna verdadeiramente. A sua “odisseia” é, para pegarmos nas palavras de Magris, “sem retorno”. E, se assim o é, é porque, para ele, não há apenas uma Ítaca, mas duas, que fazem dele um ser irremediavelmente cindido.” Em Micromundos, título que pode ser interpretado ainda como uma homenagem a Carlos de Oliveira, quem aparece epigrafado é nem mais nem menos Jorge Luís Borges: Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. […] Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem da sua cara. A cara do poeta, através das linhas do mapa de epígrafes e prefácios, é a de um ser dedicado às Letras que moldou o seu discurso literário ao sabor dos mundos que lhe foram dados conhecer e sobre ele exerceram pressões e tensões cuja inclemência nem sempre o poupou.

Se a errância constitui o estímulo causal desta poética, consequente à própria natureza das relações do sujeito da escrita com a pátria, colhe-se dela muito mais do que o simples movimento de itinerância geográfica reflectindo a persistente insatisfação de se estar sempre no não lugar. A evolução do estilo tomou o rumo da certeza formal – ao rés da lição dos mestres – estabilizando em patamares de exigência favoráveis ao comprazimento estético que consegue repercutir no leitor. Agora senhor da arte de guardar distâncias em relação ao apelo imediatista das coisas, a outrora omnipresente realidade, não afrouxa no elogio ao mestre inesquecível a quem louva o génio para fazer delas, coisas, outra coisa.

            Um dia epigrafei-te

e acreditei

            ter escrito à tua maneira

            Estultícia de aprendiz de poeta

 

A referência ao patrono, numa frente reverencial semelhante à do poema de Salvato Telles de Menezes dedicado a Carlos de Oliveira, induz uma ideia de respeito pelo dizer antigo e tutelar dos mestres. Porém, como em Salvato, a voz própria acaba por se impor, independentemente do assimilado por analogia.

Ao subtitular Errâncias de Cartografia da Errância, como se o título fosse insuficientemente alusivo, Simões arrasta o leitor até à superfície plana pontuada por sinais luminosos ou baços, indicadores de alegria ou de pesar. A cartografia aparece como instância de repouso do já descoberto, registo, sedimento, perímetro de emoções que só o são numa actividade reminiscente buliçosa. Resolvido o problema da certificação / localização, no mapa, do(s) lugar(es) onde as coisas aconteceram, perpassam brisas nostálgicas num trilho iterativo marcado pelo adjectivo “antigo / antiga”, aproveitado para requalificar o aprendido: um bloco de madeira antiga / a antiga e aguda sapiência /segredo transgressivo como cal antiga / rumor antigo / o fogo antigo que sobre a pedra arde / a antiga intuição do vento.

Uma ideia de saudade dos saberes perfeitos protocolada à volta da superioridade do “antigo” sem manifestamente hostilizar o moderno mas que não deixa de envolver uma comparação valorativa, sobressai, pois, numa linguagem toda ela equilibrada em função dos “quatro elementos”, chamados ao reforço metafórico da caligrafia comunicativa. Uma vez ao largo do cais da memória, os poemas mostram-se porosos a descargas sensoriais de cunho vitalista, em que o fogo, os ventos, a terra, a água, têm desempenhos protagonistas na criação do sentido da estrofe. Se a inevitável melancolia da paisagem lagunar ou os horizontes pequenos do subúrbio lisboeta decorrem do olhar e da sensibilidade disfóricos do emissor, a compensação vem das intensidades cromáticas (a luz vermelha, o verde das colinas, o azul incrível) e de associações de júbilo existencial como “Torna de novo com o secreto fogo do teu corpo” em que as litanias boas do mar, a força dos ventos e as energias crepitantes se juntam para frear a tentação do esmorecimento e da passividade detectável nalguns fragmentos de nexo intimista e crepuscular. Também a confidencialidade do que se refugia no “segredo” é quebradiça, fendida aqui e além pelo ágil voo das sensações libertadas.

Em Micromundos prevalece o código da errância utópica mas a errância real está arrumada em dois compartimentos estanques: Sobre as margens do Mediterrâneo e Litorais Atlânticos. O autor fixa a sua “cisão” em território já explorado e refina nesses dois “cortes” a cordialidade com que frequenta os respectivos mitos, sejam os dos argonautas, sejam os dos nautas das Descobertas. O coração repartido abre ao afecto da palavra poética espaços culturais que permitem a vizinhança sem fronteiras: uma evocação emotiva de Carlos Paredes e dos seus “Verdes Anos” ou o fascínio da “incrível geometria etrusca” da colinas de Voltera declinam a mesma vontade de  encontro no “lugar aberto à escrita da água”. Simões consegue-o com o rigor e a exactitude de um ser racional refém dos demónios do sentimento mas que soube resolver as suas dicotomias com espírito conciliador e uma clara atitude de respeito pelo produto poético como obra de arte.        

O ofício docente impõe a Manuel Simões um aperfeiçoamento de saberes (e de linguagens) a que ele se submete com o afinco do intelectual consciente de nessa aquisição de conhecimento estar o melhor ferramental para dar corpo e voz a um ambicioso projecto: a digressão ao fundo dos papéis antigos que descrevem os passos primordiais da Errância maior que nos é ancestral. E assim o convite à viagem em ensaios sustentados por um léxico banhado de erudição académica (longe da limpidez clássica da escrita poética, mais cingido à gíria universitária) traz à actualidade interpretações de textos coevos das Descobertas sobre os quais, muitas vezes, recaem a dúvida e a polémica, ou apenas a inércia de quem antes lhes negligenciou a mensagem, como são, por exemplo, os casos da “relação do Piloto Anónimo” no achamento do Brasil, da epistolografia jesuítica, com especial ênfase na do padre José de Anchieta sobre como catequizar o índio brasileiro, ou nos desvios à norma, de Fernão Mendes Pinto, analisados enquanto sátira ao “outro” como “máscara”. (O Olhar Suspeitoso).

Ao utilizar o aparato técnico-académico comprometido com uma esfera vocabular codificada e com um horizonte referencial de alto padrão, MS expatria voluntariamente da vulgarização a sua ensaística, e no entanto como ela seria útil se formalizada em termos de accionar a “função divulgativa” até atingir a fronteira do receptor comum. Da recepção possível, no limite. Mas a viagem prossegue, indiferente ao modo como o pivot da investigação vai sacando das malhas que o império tece os motivos que a dado momento deixam de ser da ordem do domínio administrativo-militar (do ponto de vista do colonizador/ocupante) para passarem a ser emergências do  da língua comum como herança a proteger. E assim o ensaio de Simões propaga ecos de Jorge Amado, Adonias Filho, Clarice Lispector, Drumond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Agostinho Neto, Luandino Vieira, José Craveirinha, entre outros, no que se afigura uma continuação lógica do trabalho dos pioneiros, um segmento da viagem pós-instauração da Língua como factor de unidade nacional nos diversos países de idioma oficial português, alicerce de luxo da sua hegemonia territorial. (Outras Margens) Neste sentido, apesar da sedução da brisa mediterrânica e do seu bafo amigável, o viajante não se detém ante a urgência em acudir aos mundos familiares que para a sua itinerância apelam: cumpre generosamente esse desígnio sem esquecer, bem entendido, aquela que Mário Cláudio com uma ponta de humor sardónico lhe reservou, chamando-lhe “a pátria que o pariu”. Vemos, lemos, então Simões a discorrer ensaisticamente sobre os autores portugueses num quadro interpretativo sem idade, “percorrendo” demoradamente Fernando Pessoa mais José Rodrigues Miguéis, José Saramago, Gil Vicente, o padre António Vieira, Lopo de Almeida, Violante do Céu, Matias Aires, Eça de Queirós, entre outros. (Tempo com Espectador).

Por este apontamento se percebe quão entusiástica foi a entrega de MS a essa nobre tarefa de divulgar a literatura portuguesa e os seus artífices, cá como em Itália, e como o designativo de “confidencial” que sobre esse labor pesa encobre o travo agridoce das dedicações mal recompensadas. 

Nos oitenta anos de Manuel Simões nem toda a “pátria que o pariu” esqueceu o que fez por ela.

 

S. João do Estoril, Agosto de 2013                             

   
 
  Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal) 
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português
 

 

© Maria Estela Guedes
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