REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 40 | agosto-setembro | 2013

 
 

 

 

 

FLORIANO MARTINS 

Poemas

Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br) e colabora semanalmente com o DC Ilustrado com uma série de entrevistas que futuramente reunirá em livro intitulado Invenção do Brasil. Contato: arcflorianomartins@gmail.com.

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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RELATO DUVIDOSO DO QUE SE PASSOU CERTO DIA DO QUAL NINGUÉM RECORDA UMA SÓ PALAVRA

 

A história foi toda escrita ao contrário.

Só assim resultaria permanentemente desacreditada.

O tempo se arrasta como um símbolo perdido.

Um pássaro aplicado à linguagem tentando descobrir uma função para o excesso de aspas.

Púlpitos são comprados em brechós.

A memória jamais deixou de ser abundante e perversa, como uma escada largada na garagem.

Aos que não vivem sem um oráculo, consultem a escada, consultem os brechós.

Há uma longa distância a atravessar entre o que vemos e o que não conseguimos tocar.

Querem mesmo saber o que houve naquele dia?

Tudo parecia despertar deslizando na matéria de nossa percepção.

As dádivas da perda se associando às lágrimas como um dragão dominado pela assimilação demoníaca.

Como nunca, eu desejei ser o abismo do mundo.

O que vi foi a minha filha expirada em mim, a minha vida tomada como uma alusão volátil, um rio de sangue e mais nada.

A eternidade nunca faz parte da cena.

A vida mói o espírito, o princípio e até mesmo os anjos não adaptados.

Eu teria me desfeito em sangue por ela.

Deus algum saberá até onde eu fui.

Nem importará sabê-lo, pois não importa o mais implacável de todos os destinos.

A minha filha se foi dentro de mim, consagrada ao vazio como uma espécie perdida.

Os dias felizes são tangíveis. 

 

O ENIGMÁTICO SONHO DE ROSALÍA DE CASTRO NO ALPENDRE DE SUA CASA EM TEMPOS VERDES 

Parte do que fomos jamais conheceu uma outra versão de nossos abismos.

A noite percorria com inquieta intimidade um labirinto de sonhos que teimávamos em decifrar.

Uns pássaros rascunhavam na escuridão a imaginária linha do horizonte, até que o calor de teus lábios testemunhasse nossos corpos reescrevendo suas formas.

Atrás de uma pequena coluna, cada abraço parecia abranger um mistério propício.

Apenas o teu sonho colecionava metáforas entre satisfeitos gemidos.

Tudo isto quando o alpendre da casa recortava teu sorriso e com ele compunha uma trilha de inquietudes, teu olhar finalmente decidido a incendiar-me as miragens.

Metade de teu corpo ficou presa na cama em que nos encontrávamos.

Eu nunca pude entender como voltávamos um para o outro e recomeçávamos a partir do que havia sobrado da noite anterior.

A outra metade acumulando sombras antes que o sol desaparecesse. 

 

A NOITE EM QUE UM ANIMAL FABULOSO RENASCE NO NINHO DE TUAS MÃOS 

As tuas mãos tateando verbetes em minha pele.

Descobrindo onde dormia o verão. Despertando um balé profano em minhas vértebras. Anunciando um beijo a cada sensação de desmaio.

As tuas mãos são o meu gerúndio preferido.

À noite escuto apenas o rumor das ondas de meu mar interior.

E uma voz que reconheço ser minha deslacra outro abismo com sua gramática imprecisa: Eu sou tua, você me roubou, seu diabo!

Os meus mamilos se multiplicam e desarvoram a paisagem salpicada de lábios.

A sombra de tuas mãos imersa em minhas águas primordiais simula a dissolução de tudo quanto fui.

Eu me recupero em tuas nascentes. Como semelhante de teus sonhos.

E não vim nem mesmo para ficar. Tu me revelas a descrição de uma lenda esquecida.

Decerto a ela retornarei. 

 

O OLHO DO CREPÚSCULO CONTEMPLA A PAISAGEM COM SUAS FLORES CARNÍVORAS SOBRE OS OMBROS DA TORMENTA 

Dedilho teu seio possível como um castelo de larvas que preparam meu renascimento.

A terra enlouquecida geme como uma orgia de nuvens adentrando as confidências do tempo.

A luz deságua seu vidro de essências fantasmais e reabre as feridas para lhes ensinar alguns motivos esquecidos.

O horizonte despista as fontes que querem bebe-lo de uma só vez ondulando uma linha de insetos que festejam o truque como uma lâmpada em delírio.

O abismo se refaz das primeiras quedas e descreve o dilema do labirinto embebido no ouro de óleos em cujas gotas ainda é possível entrever um bosque desmatado em silêncio.

Eu penso em ti como se ainda fosse possível voltar a perder-te, como se inquietos oásis flutuassem sobre a queima dos carnaubais.

Eu penso em teus lagartos camuflados sob o ossuário do que fomos.

Eu penso e as trevas ricocheteiam como disparos desperdiçados.

Não espero que me acompanhes enquanto renasço, embora deixe uma trilha de miolos de meu espírito, caso queiras sobreviver à luxúria da tormenta. 

 

UMA TARDE O ESPELHO DESATOU SEUS NÓS E A ESCURIDÃO COMEÇOU A DEDICAR-SE À CRIAÇÃO DE OUTRA RESSONÂNCIA DE SI MESMA 

A tua luz me antecipa e chega mesmo antes que percebas.

Não havia outra luz, reconhecem todas as frestas.

Embora o criado-mudo ainda conserve amassado teu ofegante manuscrito: o amor não existe.

Haverá um que escape à retina das sombras.

Um ninho sem progresso, em que as idades avançam alheias ao tempo.

Este é o gráfico em que isolo as fórmulas gastas do destino.

Um ideograma de abismos onde toda forma de beleza é incomparável.

A tua luz tece um mundo desconhecido cuja simetria eu tateio na volúpia de uma silhueta amorosa.

Morte ou incesto, nenhum arcano nos afasta ou consagra, nenhum asceta ou ermitão transcreve os circuitos de nossos instintos.

A tua luz reparte o centro de meu ser, alimenta a caixa escura de minhas obsessões.

Eu me desenraizo para que me refaças.

Eu me revelo para que me ocultes.

A tua luz é a única forma familiar do que ainda não vivi. 

 

DEVANEIO CÍCLICO DO TEMPO ACENTUADO PELAS DESCONFIANÇAS DO ACASO 

Todas as línguas estão manchadas de memória.

Os livros derivam de sombras sorrateiras que picharam o enigma por dentro.

Casulos com três ou quatro pedras alojadas entre a perfeição e a beleza.

Eu me oriento pela transparência de teus lábios.

Tu te esquivas dos presságios.

Quando nos vimos pela primeira vez há muito já nos conhecíamos.

As nossas letras secretas, os vultos do verbo, a penumbra dos gemidos, de incontáveis modos o mundo estava preservado e se agitava em nós.

Segundo a lenda não somos senão essa imagem obrigada a vagar pelas encostas do desejo.

Porém tudo o que me disseste antes de nosso encontro não era o sopro de um signo disposto aos caprichos da harmonia divina.

Talvez fôssemos a fagulha das letras emblemáticas que não couberam no livro santo.

Porém não queríamos senão voar.

Ante a petrificação da paisagem com suas ordens mitológicas e seus papiros carcomidos de virtudes, tudo o que queríamos era voar.

Eu me debato entre a fome e a saciedade de teu espírito.

Tu te recuperas dos vapores da regeneração.

Todas as línguas são consumidas pela memória. 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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