REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 39 | junho-julho | 2013

 
 

 

 

 

LUÍS COSTA

Trechos do Caderno de Buridan


Com uma imagem de Sofia Ribeiro


Luís Costa (1964, Portugal). Tem vindo a editar trabalhos em revistas e sites digitais como: revista Conexão Maringá, revista Zunái, site Triplov e revista Agulha.
Blogue pessoal: http://oarcoealira.blogspot.com/ . l.Costa@web.de

 

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DA MÚSICA

 

Hoje de manhã, quando caminhava pelas ruas embranquecidas e geladas desta

cidade medieval,  vi deus sentado ao canto de uma esquina, chorando a sua própria

inexistência.

 

e houve uma pessoa que perguntou: “o que é que se passa com ele? “

 

e houve outra que respondeu: “falta-lhe a música. “

 

*

 

DESPERTAR

 

Hoje, o sol arrastou-se por entre a neve e bateu-me à janela do quarto e entrou

e acariciou-me os cabelos ainda molhados de sonhos. ah como mundo floresceu dentro

de mim!  com um sorriso, abri os olhos:  – encontrava-me à altura dos animais:

a vida estava ali, nua,  sem teologias, teorias, ou véus imagináveis. encontrava-me

no centro da criação.

 

*

 

NESTES dias, por vezes, quando olho através da janela, vejo as ruas, as casas, as

torres medievais e o castelo, como que parados no tempo, enrolados num lençol

branco, o cinturão dos bosques ( ainda glabros ) e , ao longe, os lagos, os lagos

brilhando sob a luz já alta mas fria, e o clamor das crianças sobre os lagos... e nos

microfones do gelo sussurra a hibernação:

 

Despertar.

o mundo é uma armadura possante.

 

branca.

o delírio branco ferve-me nos olhos.

 

árvores glabras.

crianças patinando sobre os lagos gelados.

 

*

 

TENHO vindo a reparar que em muitos dos aforismos de Nietzsche e Cioran há mais

potência poética que na obra de muitos ilustres poetas.

 

*

 

UMA palavra desventrada por onde se respire o voo das aves. por vezes é preciso

inventarmos as palavras com a exactidão de um nobre assassinato.

 

*

 

A VIDA  e a morte parecem duas rapariguinhas gémeas , correndo pelos campos de

mãos dadas. uma delas é a luz, a outra a sua sombra. uma coisa é certa: um dia a

sombra engole a luz.

   
 
  Sofia Ribeiro, «Ciência»
   
 

DUAS MULHERES

 

UMA cama redonda , toda negra. no tecto , um espelho opulento.

no lado esquerdo da cama, o minotauro, erguendo a taça do vinho

novo. do outro lado, um jovem fauno, risonho, brindando com o

minotauro. entre eles , uma mulher . do lado esquerdo do

jovem fauno, outra mulher.

duas mulheres que não são bonitas (pois mulheres bonitas

há muitas) mas que sabem ouvir o cântico do sol ao meio da noite.

 

*

 

DA BELEZA

 

Warum bin ich vergänglich?

o Zeus! so fragte die Schönheit,

Macht dich doch, sagte der Gott,

nur das Vergängliche schön.

                            Friedrich Schiller

 

 

Também  há gente que diz que a beleza é eterna. como se houvesse

coisas eternas. isto é de facto o cúmulo da cegueira para não usar outro

termo. a verdade é esta: mais tarde ou mais cedo tudo tem um fim;

sejam as coisas belas ou feias. pois se assim não fosse, pobre daqueles

que são feios.

e depois não devemos esquecer que há as coisas feias belas, como por

exemplo , na obra de um Baudelaire e d'outros que souberam extrair

beleza das coisas horríveis e feias.

 

*

 

CALIPSO ( uma falsificação poética )

 

Calipso já não sentia o corpo de um homem há muitos anos. foi então

que Ulisses,  o náufrago, lhe apareceu como uma dádiva do Olimpo. e,

durante 7 anos , Calipso  e Ulisses amaram-se. certo dia, porém, Odisseu

sentiu saudades da sua terra , Ítaca,

 saudades dos braços da sua família: Penélope e Telémaco. então, virou-se

para Calipso e disse-lhe que desejava partir. Calipso, apaixonada como

estava, queria que Ulisses  ficasse e prometeu-lhe todas as delícias e

prazeres da terra e até a eternidade olímpica,  sim, a eternidade. porém,

depois de sete anos vividos em delícias e harmonia, Odisseu  descobrira que

também a eternidade pode ser uma coisa tediosa, feia, mesmo  enfadonha. 

e assim preferiu continuar  mortal. pois só quem morre, sofre e chora,  

pode, de facto, desfrutar das  pequenas coisas da vida: a alegria, o riso, o sol,

o perfume de uma flor, o sexo selvagem, a madrugada de cada novo dia...

enfim, a aventura  que é a vida  com os  seus altos e baixos. e era exactamente

por isso, sabia Odisseu, que os deuses invejavam os homens.

 

( mas antes de Ulisses partir, calipso pediu-lhe que a amasse por uma última

vez. e Odisseu  foi benigno para com ela e amou-a, amou-a por uma última vez,

por uma última vez com tal ferocidade que Calipso acabou por se transformar

num astro. hoje, quem olhar o firmamento a certas horas e pensar em Ulisses,

conseguirá  avistar, bem lá no alto, uma estrela de nome Calipso )

 

*

 

AMO  aqueles que sabem ver como Tirésias: para lá dos olhos. dos outros que

pensam  que vêem muito, ou que conseguem ver tudo, mas que lá no fundo não

vêem nada, porque  ainda não conseguiram descobrir que se encontram dentro

da luz da cegueira, desconfio...

 

*

 

ANTES os bárbaros. antes esses.  onde o sangue ainda ferve com a brutalidade

das vinhas puras.

 

*

 

CIÊNCIA

 

Cavalos resfolegantes que com suas fabulosas

ventas destelham o céu

o cântico dos mortos que se erguem e caem

para que a rosa floresça

e a criança dos olhos azuis

à procura da infância roubada

suas mãos abertas como navalhas

feridas pelo orvalho dos frutos negros

 

ah, esta arquitectura de escombros!

tatuagens antigas

o lume dos hieróglifos na íris que projecta o mundo

contra as clareiras nocturnas

a violência de um coração

nas vísceras

e a ampulheta dos insectos

onde inscrevo o teu nome

a busca de uma máscara que te sirva

 

ó grande aventura!

esta é a odisseia da palavra nunca dita

 

– ciência do sangue

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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