REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 38 | abril-maio | 2013

 
 

 

NICOLAU SAIÃO

Casa & outros mistérios 

 

 (Dedico este bloco a Giorgio Tsoukalos, Erich von Daniken, Linda Howe e reverendo Michael Carter)

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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POEMA             

1.  A antiga casa    não lhe mexam. Não procurem

     desfazer-lhe os sinais que as sombras

     lhe deixaram. Os canteiros

     que fiquem com pedaços de cacos,  velhas

      rugas sob os alicerces. Plantas

      que o silêncio gerou anos e anos

      às telhas se misturem.

      Os dedos,  não lhos marquem

      com óleos,   tintas,   cores

      em toda a frontaria e nas traseiras

      E as nódoas de musgo, a cansada ferrugem, as

      flores quase desfeitas

      abandonem-lhas. Não lhe pintem

      também a luz

      que o tempo debaixo do cimento faz ficar

      - o sol,  o vento,  a chuva -

        mágoas e alegrias dum século

        mais que incolor e vago.

 

        Absorto e parado

        que tudo sempre idêntico

        sepultado nas crostas sem limites

        fique    como os minutos da terra,  assim desfeitos.

 

        A brisa,  como em sons

        de vida e morte

        nas janelas abertas    passe

        - lamento reflectindo a memória

        lenta das vozes.

 

        Que as asas lhe resguardem a quietude. Que o sol

        a vele e adormeça sua paz final. Que o Outono

        lhe acalente a ausência:  porque  já nada pode

        agora transtornar

        a velha moradia

        - os campos,  em redor,  são o disfarce

        de milhares de coisa já perdidas -          

        aranha minúscula subindo

        os tempos invisíveis

        laços para sempre desmanchados, porta

        que se entreabre e une   finito e infinito.

 

   2.  Não nos falta o sentido

        que entre inúmeras casas se tresmalha

        um Agosto   ou um Fevereiro   supostamente

        fugaz

        quando o cansaço cinge o Mundo

        e encerra

        em si mesmo

        o feroz nome que os outros meses têm.

 

        A guarida final

        conserva o vestígio das mãos

        e das figuras

        que as casas erguem    ponto a ponto.

 

 

    3.  A rua é mais a Sul

          e tem por dentro recordações

          - velhos lugares que um sopro desvelou -

          o mar, pessoas, pedras

          acumulação de signos e raízes

          que de mineral têm

          apenas a ausência. No ar se firmam

          num quarto   ou numa sala

         como recantos cedo destroçado

        algures e em qualquer

        latitude e longitude

        como outrora   entre a turba

        alguém a quem amámos.

 

        As ondas   na manhã

        nenhum som ou sinal

        erguem em nós

        na terra que começa

        - amora opalescente

        até ao horizonte

        entre pedras e folhas   entre

        meridianos cruzados -

        e a promessa que os troncos

        anunciam

        desfaz-se

        (um bosque bem real

        mas que desaparece

        como em “flashes” sucessivos)

        como, no Inverno, uma ave que passa

        como uma notícia num jornal antigo.

 

       O dia vai partir, parte

        finalmente. O negrume parece

       um negrume disforme  (  e é apenas

       uma penumbra excessiva

       como um soluço, como

       o  velho choro que os Pais

      sempre conhecem). As sombras, na manhã

      - nessa manhã que a memória nos oferta

       para que mais soframos, ou então

         para que o riso frio se apresente -

        renovam-se e repousam

        sobre os muros desgastados. (No Café

        que havia a uma esquina

        alguém crava num tabique

        um prego onde alguém pendurará

        o retrato de alguém ou calendário

        de dias que alguém terá).

 

        A noite, ir-te-ás tu? Provavelmente sonhas

        com as chamas que sobre os rostos ruflam

        diurnas crispações   

       de claridade   ou de recordação

        e ao longe

        como fotografia

         que a um canto sobreviveu

          o mar faz  pressentir

          a mágoa que docemente aflora

          os nossos dedos queimados.

 

      4.  Assim, que ninguém trema. Digo

             entredentes e apalpo

             os papéis onde luzes, corpos que zumbem, um combóio

             cobram existência. Um moscardo, mais leve

            que a sua própria efígie

            recomeça, na noite, o seu branco

            ondear. O suor

          

            mancha os lençóis, a camisa

            que usávamos a esmo   e que tão bem

            acompanhou visões e pensamentos. A cal  é como um

            desejo aberto, os muros

            prolongam o silêncio, como um dorso numa cama

            apaziguado. Como um corpo entre duas

            cidades, aguardando em silêncio

          

            o tempo que não veio, o tempo

            entre ruas esperando para sempre.                          

 
   
 

CARTA DE SAMYAZA RAFACALE AO SEU AMIGO AZAZELO EYQUEM DE REICHNAU, DUAS SEMANAS APÓS TEREM POUSADO NO PLANETA NÚMERO TRÊS A QUE CHAMARAM EUROBOROS E ANTES DA MUDANÇA DE ESTAÇÕES A QUE DEPOIS SE IRIA CHAMAR INVERNO/PRIMAVERA 

Caríssimo: 

Não é preciso dizer-te que isto a princípio foi monótono: amarração, desprendimento, notação de azimutes, um pouco da Teoria dos Contínuos, muita indecisão entre ficarmos mesmo na ilha ou irmos até ao continente que se divisava, horas altas, para além das montanhas com as suas cúpulas de neves eternas que pareciam sair da neblina que a certas alturas do dia cobria o mar.

O comandante Theos Gallipoli (tu sabes, o tal que depois foi nomeado pelo Conselho logo a seguir ao conflitozinho com os de Inergaum o que se calhar até foi por cunhas mas não vamos agora por aí) deu ordem para que a princípio ninguém saísse, o que constituiu uma estucha que tu nem calculas. No entanto, a breve trecho teve de se deixar de coisas, até porque depois de tanto tempo de navegação a malta estava realmente atormentada. Um dia vi materializar-se, mesmo na minha frente, a figura de meu tio Asmodeu, como sempre com um copo de boa pinga na dextra enquanto recitava pausadamente a partir dum velho manuscrito que balançava na sinistra: “A vós, os embusteiros, que o infinito passou a provérbio / direi apenas que havereis de ver / num canto do jardim e às escondidas / uma simples cadeira / um artefacto / para as mais formosas, aquelas / que melhor irão dançar. Nos anos a vir / vos serão revelados /os certos e justos condimentos sobre as mesas: / só sangue numas / só terra noutras mais / E por isso havereis de as mãos passar/ sobre as colchas das alheias camas / em quartos serenos e alegres. Havereis de saber / que a vossa imagem está por detrás / só de branco ou de negro vestida / Como vosso pai venerável / num outono ou num verão /sem intervalos nem sonhos.”. Pareceram-me palavras proféticas, mas não o vou jurar. Em todo o caso posso garantir que não se tratou dum holograma nem mesmo duma projecção mental daquelas que o velho Mummu Tiamat, disfarçado de deus do Caos, nos propiciou para nos chatear aquando da nossa viagem a Bifrons, quando eu ainda era tenente e tu um oficial geómetra. (Belos momentos ali passámos, lembras-te meu colhudo, cala-te já!). Jamais te mostrarei, asseguro-te, a fealdade do mal, falam-me em que há por aqui uns cabelos negros um pouco encaracolados e é verdade, uns olhos assim deste tamanho, ai ai, dizendo com o espírito que encontramos nos melhores momentos, em resumo traduzo-te sem querer ter graça e é garantido: o Samael está a perder as penas da asa direita, mas adiante. Ia eu dizendo que as Obras do Tempo nos fizeram passar de um plano a outro, então eu fui ter com o comandante e resolvêmos que iria eu e vinte e seis outros, a princípio, apalpar o ambiente. Tudo gente de gabarito, estupenda tripulação, o Lucy à última da hora também se propôs ir connosco eu tinha entrado no vaivém e lá foi ele num ápice a buscar o escafandro e o capacete de esmeralda, afinal não iria fazer falta a aragem engole-se que é um regalo. Era já noite entrada quando aterrámos. Uma lua de intensos raios iluminava tudo. Ouviam-se risos para noroeste. Um som de flauta, um zumbido intraduzível que te posso apenas sugerir, falta-me jeito para profeta de certos mesteres triviais, mas crê que era tudo uma nova volúpia. No écran da esquerda nada se via. O da direita ficara iluminado a valer. Como sabes sempre enjoei um bocado a altas velocidades, mas o que se divisava era duma beleza inigualável: jornadas de trinta mil quilómetros, upa, sou capaz de me aguentar daqui até lá sem beber água, quando deixámos de pairar sobre as vagas as flores vieram todas, como doidas, pousar-nos nos cabelos e de repente achei-me sem ar, sem negrume, sem apetite, rodava como uma bola de vidro, entrava na velhice, coçava-me sem dar por isso e de repente tudo acabou. Tínhamos chegado.

Eram tendas, tendas e cabanas de tijolo. Perto, um ribeiro repleto de canaviais, salsa e hortelã, outras ervas banais e benignas, ovelhas e cabras, um ou outro cavalo, meia dúzia de burros. E seres a que depois chamámos homens.

De modo que cá estamos vai já para três semanas e, crê no que te digo, ainda nem sequer apresentei relatório. Como, bebo, até me parece que engordei um bocado. Das sete às nove leio sobre a teoria das coisas plásticas. Eles acreditam em feitiçarias, banham-se de manhã nas águas mais profundas, uma das morenas até me vai ensinar a pescar. Pelo meu lado, ensino-lhe a ciência dos cosméticos. É taful, mexe-se que é um regalo e gosta de me ouvir contar-lhe balelas. O pai é cameleiro e nunca viu mais mundo que o que termina no horizonte. O seu antepassado, um tal Enkidu, ensinou-lhe a fazer vinho e a tecer a lã, eu já lhe dei umas noções de ourivesaria e creio que dará um bom ferreiro. Vamos a ver.

O Beemoth vi-o ontem: ia de braço dado com uma garina esbelta mas de boa peida, olhos rinchões, tás a ver. Veremos o que isto dá. Logo comunico com o lar pelas ondas alfa, dá certo conforto ver o pontinho de luz lá no alto, mesmo sendo um sacripanta o comandante irá gostar disto aqui, insisti com ele para que descesse. Há por estes sítios gente com interesse, têm muitas virtualidades fora a inocência, não sei ainda se daqui a uma semana iremos passar para as terras do lado de lá do deserto.

Há bocado ofereceram-me um assado de pavão real. Acompanhei-o com um moscatel que não te digo nada. Sinto-me cheio de genica, o Iblis vai retransmitir isto em diferido.

Abraça-te sem sofrimento, mesmo levando em conta a ausência, o teu velho

 

                                                                  Samyaza, o língua ágil

   
   
 

UMA TARDE COM OS MARX BROTHERS

 

O transferidor, dizia, vai de mão a mão

com inúmeras recordações dentro: cadernos

listas de gente com telefone, pequenas

e inúteis resmas de algarismos

transformados. Suponhamos que sobre uma face

apoiamos um dedo, a ponta

dum dedo indicador: a imagem cresce

e ocupa o nosso horizonte, depois

tudo cessa. Nem figura nem número

nem ruídos repentinos e fotografias finais.

Onde estão as lembranças

dizia o outro, quais

as definitivas lembranças minhas

tuas, do que primeiro ocupou

este compartimento? Risca-se

da terra do norte à terra do noroeste

- um borrão, contudo, chama-nos à

realidade solene, de quem

acumula degradações. Recordo, de Giotto

a crucificação entre edifícios não de

todo naturais: é sempre

possível comparar, amar inteiramente

o vazio. Bandeiras

véus fugidios, tudo enfim

como se de dentro a estrutura saísse

e fosse nuvem, fosse transparência

interminável, deslocando-se incerta

 

multiplicada. Um bolo

e uma sandes de queijo, um livro

sujo e perdido

- prováveis como alguém que telefona

que conhece se vai ou não vai chover

que sabe usar o sim e o não

fora e dentro das manhãs. A régua

o compasso, o lápis

que carece de ser afeiçoado

- a realidade dos minutos insuspeitos.

 

Mas - como alguém disse um dia -

os lábios vão sangrando

imersos em negrume

sob as árvores do parque. A mão, contudo

enrosca-se

num lenço ensanguentado ou num

papel sem linhas.

Algures  entre corredores

entre pontos e traços, entre

sinais perpetuamente aparecidos e desaparecidos

os risos soltam-se

ressoam, ressaltam

 

e desfazem-se em ecos desenhados.

                                                                                           ns

   
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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