REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 38 | abril-maio | 2013

 
 

 

 

 

MADU DUMONT

Até que a morte nos separe

Maria do Carmo Dumont (Diamantina, Brasil). Poeta, ficcionista.
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  

Revista InComunidade (Porto)

 
 
 
   
 

Quando Deus distribuiu a feiúra, ela entrou na fila três vezes, e em todas foi agraciada com o maior quinhão.

Maria não era uma mulher que se podia chamar de feia. Era horrorosa...

Não media mais que um metro e meio de altura. Tinha os cabelos muito negros, mas terrivelmente anelados. Acima da boca possuía um buço escuro, vulgarmente conhecido como bigode. Onde as outras pessoas têm pintas, ela tinha verrugas, grandes, cabeludas. A do queixo então...

Não é que Maria arrumou um marido?!

Ninguém entendeu muito o que Antônio viu de interessante nela, mas alguma coisa devia ter.

Ele, por sua vez, não era nenhum galã, principalmente se levarmos em conta o bócio que tinha no pescoço. Mas de uma coisa ninguém duvidava, era a própria encarnação de Satanás.

Chato, implicante, ranzinza, não dava paz a ninguém, muito menos à pobre Maria, que tornou-se sua vítima preferida.

A mulher vivia lavando, passando, cozinhando, arrumando e mesmo assim o danado acabava achando um motivo para lhe atazanar as idéias. Vasculhava a casa em busca do malfeito, era o vinco da calça, o botão da camisa meio solto, passava o dedo em cada cantinho dos móveis buscando uma poeirinha esquecida. Qualquer motivo servia para acabar com a vida da infeliz.

Até os filhos, quando o viam chegar, se escondiam na tentativa de escapar ao seu mau humor.

Era uma vidinha de cão a que se levava naquela casa.

Maria, para esquecer um pouco a sua dor, passou a se deliciar com a dor alheia. Era só Antônio sair e ela correr para a janela a buscar informações que alimentassem sua língua ferina ou, se tinha um tempinho maior, se refugiava na igreja.

Acabou se transformando na maior e melhor beata fofoqueira da cidade.

O pároco não suportava mais o rosário de lamúrias e maledicências que Maria desfiava todo santo dia no confessionário.

É claro que as lamúrias estavam relacionadas a Antônio, o carrasco, o Satanás feito gente, o filho do demo que veio direto das profundezas do inferno com a única intenção de acabar com seus dias de vida. Certa vez chegou, em uma escorregadela, a confessar ao vigário seu secreto desejo de ver Antônio morto.

E era assim, o tempo passando, a vidinha na mesma, o ódio de Maria crescendo e Antônio cada vez mais irascível. Cada um se acomodava por seu lado sem deixar de alimentar e fazer crescer o rancor de um pelo outro. Mas as palavras nunca foram ditas e, com os anos, a mulher chegou quase a ignorar o marido. Praticamente não lhe dirigia a palavra, a não ser em casos de absoluta necessidade ou quando tinha que lhe atender os caprichos de cama e mesa.

Nem mesmo Maria percebeu que seu ressentimento havia se transformado em ódio, ódio velado, maior ainda que o ódio propriamente dito, ou sentido.

Sem quê nem porquê, durante uma das tantas noites iguais, em que Maria cumpria suas penitências no genuflexório, Antônio acordou com fortes dores no peito. “É ar,” sentenciou a mulher. E com muita má vontade foi lhe buscar um copo com bicarbonato trazendo junto um leque de repreensões.

“É sempre assim, come como um condenado e depois ronca como um porco, só podia passar mal mesmo, não tem idade para essas extravagâncias. Torresmo antes de dormir é veneno certeiro.”

Mas Antônio não melhorava. Primeiro ela achou que era fingimento, mas a certa altura resolveu acreditar no mal do marido e apelou para a água benta, este sim era o remédio santo, que todos os males. Nada. Antônio morreu naquela noite mesmo, coração.

“Que chateação, assim, no meio da semana, sem aviso prévio nem nada, ia ser uma amolação...” Mas isso ela só pensou...

As coisas acabaram se resolvendo com rapidez, chamou os filhos, avisou aos parentes, pois agora a autoridade ali era ela. O velório seria em casa mesmo, na sala.

Enquanto Maria esperava chegar o caixão, fechou a porta do quarto para se preparar para a ocasião. Então pela última vez, se viu sozinha com o marido morto. Com pudor lhe cobriu o rosto, para que ele não a visse se trocando.

Vestiu seu melhor vestido preto, muito discreto, calçou as meias, o sapato preto de trecê. Colocou os brincos de coco e ouro, davam uma certa classe, apanhou na gaveta da cômoda um lencinho de cambraia e o colocou dentro do sutiã, apesar do cheiro de naftalina. Jogou sobre a cabeça seu véu preto e deixou na cama, ao lado de Antônio, um grande xale de lã.

Tirou o lençol do rosto do marido e saiu. Seria preciso passar um café, fazer uns biscoitinhos, quem sabe uma broa...

A cozinha já fervilhava de mulheres, as vizinhas, as amigas, as parentas, prestavam solidariedade à viúva e preparavam as quitandas do velório. Recebeu com humildade as manifestações das amigas, mas assumiu o controle do fogão.

Quando voltou para a sala o corpo de Antônio já se encontrava dentro do caixão, sobre a mesa, velas acesas, terço na mão, conferiu o sapato do morto, tudo estava a contento.

Naquele momento Maria tocou as mãos de Antônio com uma certa ternura, sentiu que ele estava gelado. Estava morto mesmo. Mortinho da Silva.

Tudo estava na maior ordenança, o café, as quitandas, o entra e sai dos amigos, da família, as conversas ao pé de ouvido...

E Maria ali, firmona ao lado do caixão. Às vezes lhe corria pelo rosto uma lágrima furtiva.

Eram duas horas da tarde quando o padre chegou para celebrar a missa de corpo presente, depois o enterro. O padre ficou atento à sua ovelha mais dedicada, que parecia administrar tudo com um olhar arguto. Ele tentava adivinhar-lhe o pensamento, mas ela era impenetrável naquele momento.

A verdade é que depois de morto todo mundo vira santo, pensou o vigário.

“Coitado, um homem tão bom, morreu como um passarinho, Deus sabe o que faz...”. E lá vão as maiores falsidades...

Afinal chegou a hora do enterro. A caminhada até o cemitério era longa, cansativa, os amigos se revezariam na alça do caixão.

E lá ia o cortejo rua à fora, o padre na frente, puxando a ladainha, e a viúva atrás seguindo e chorando. Era a própria imagem da dor.

A cerimônia transcorreu sem transtornos. O caixão baixou sepultura e Maria jogou a primeira pá de cal. Depois foi a vez dos dois filhos.

Acabou. Nada mais a fazer ali. As pessoas saiam devagar e falavam baixo em sinal de respeito, falavam de tudo, política, moda, maledicências, menos do defunto, esse estava morto e enterrado. E, claro, devidamente esquecido.

Agora só Maria chorava. Caminhava lentamente e as lágrimas lhe turvavam a visão. Agora chorava de verdade, um filho lhe apoiava o caminhar.

Na porta do cemitério Maria parou. As pessoas olhavam para ela. Ela olhava a sepultura do marido. Naquele rosto as marcas de tantos anos juntos, mais a certeza do dever cumprido.

De repente, abriu a pequena bolsa de miçangas pretas que trazia nas mãos, guardou o rosário e o lencinho, e ainda sem tirar os olhos da sepultura do marido, arrancou de dentro da bolsa, um rojão, um foguete de três tiros.

Não teve dúvidas, riscou o fogo e, diante do pasmo geral, comemorou ali mesmo a morte desejada há tantos anos. 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL