REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013

 
 

 

 

 


PEDRO FOYOS

Antunes da Silva e a busca impossível

de um sinónimo para "Liberdade"


Pedro Foyos (Portugal). Jornalista e romancista.
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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TEXTO INSPIRADO NUMA CRÓNICA DE GALOPIM DE CARVALHO

NOS QUINZE ANOS DA MORTE DO ESCRITOR ANTUNES DA SILVA, EM DEZEMBRO DE 2012

 

Entrevistei Antunes da Silva quando, muito jovem no ofício, dava os meus primeiros passos no diário República. Estávamos no início dos anos sessenta e a conversa decorreu numa salinha contígua à Redação. Antunes da Silva apareceu afogueado, pedindo desculpa pela meia hora de atraso, pois viera de muito longe. O homem que tinha à minha frente, retintamente alentejano e com o Alentejo em todos os seus escritos, era um humilde "caixa" numa grande empresa fabril. Autor de perto de uma dezena de livros, alguns traduzidos no estrangeiro, mas tão discreto que muitos camaradas de trabalho desconheciam-lhe essa outra vida de poeta e ficcionista. A iniciativa de o entrevistar justificava-se porque o seu primeiro romance, Suão, um livro de uma espantosa dimensão humana, esgotara-se em pouco tempo e fora lançada entretanto segunda edição. Tarefa espinhosa para o entrevistador, exigindo astúcia e arte em sopesar, na redação final, cada frase, cada palavra. Os censores, lida a primeira vintena de linhas, supunham uma perda de tempo prosseguir e numa só bruta penada cortavam de alto a baixo. Predisposição tanto maior quanto era sabido que Antunes da Silva já sofrera penosas esfregas nos cárceres políticos e um seu livro de poesia, Esta Terra que é Nossa, fora apreendido poucos anos antes.

De pouco valeram as previdências. A entrevista escapou ao gume a eito, todavia a Censura não deixou de desfigurar-lhe as entranhas. Medonho. Apesar disso, o diretor Carvalhão Duarte e o chefe de Redação Artur Inez manifestaram-se a favor da publicação do texto sobrevivo, o que se fez após anuência de um atordoado Antunes da Silva, soprando à minha frente palavras inaudíveis. Foi necessário reformular o título original, porque o corte parcial no mesmo (um trecho que incluía a palavra "liberdade", de impossível sinonímia) adulterava o sentido da declaração. De entre os documentos da Censura que conservo, reencontro um verbete rabiscado sobre esta entrevista, revelador da especial embirração dos censores pela palavra "liberdade". Apetecia desembestar assim: «É que não há sinónimo! Então não veem?! Não há!». Desse modo, quando Antunes da Silva declarava «...um escritor digno não pode nunca desinteressar-se da liberdade do seu povo», o censor manhoso substituiu o vocábulo "liberdade" por "problemas". E o que o público leu, em resultado desta martelada, foi: «...um escritor digno não pode nunca desinteressar-se dos problemas do seu povo». De notar que o próprio preceituado legal atinente ao "modus operandi" censório (o célebre Decreto-Lei nº 26589, de 1936) não permitia intromissões ou alterações redatoriais por parte do censor. Letra morta, como bem testemunharam durante décadas os jornalistas democratas. (Há um caso assombroso que um dia revelarei com a respetiva prova tipográfica: o censor reescreveu todo um período de seis linhas, narrando o acontecimento "à sua maneira"...).

Tempos depois, o historiador Augusto da Costa Dias, que desempenhava a gestão literária de uma editora de referência — a Portugália, indissociável da senda política de acolher «autores portugueses socialmente comprometidos» —, disse-me pesaroso que novo livro da casa havia sido apreendido: Terra do Nosso Pão, de Antunes da Silva. Mais um.

Afligia saber que um autor com dois ou três livros proibidos transitava para o limbo de "autor proibido". As editoras não o publicavam. E se alguma tivesse a audácia de publicar-lhe uma obra, qualquer que ela fosse, sofreria nas livrarias uma vida efémera: um, dois, três dias. Com alguma ventura poderíamos adquiri-la junto de livreiros intimoratos, exímios na prestidigitação do escondimento e oportuna desocultação de livros malditos encafuados como mercadoria pestilenta nos esconsos da loja. Parecia magia. Um espontâneo feitiço. Era-o de certo modo. Prefiro, contudo, chamar-lhe coragem. Antunes da Silva e muitos-muitos mais mereciam essa coragem.

   
 

 

© Maria Estela Guedes
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