REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 28 | junho | 2012

 
 

 

 

MADU DUMONT

 

Adivinha-me

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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  ADIVINHA-ME
 

Adivinha-me.

Adivinha-me porque faz frio.

Dá-me a sua mão desconhecida

que a vida está me doendo.

Dai-me mais que momentos.

Desamparada lhe entrego tudo.

Estou buscando o entendimento

do extremo gesto de amor,

para construir uma alma possível

sem a anestesia da noite.

Sinto falta como quem morre.

Quero ser apenas uma semente

sem estrelas para me guiar,

apenas sua mão me levando

ao lento passo do medo.

 

  RECOMEÇO
 

Só a mudez me faz companhia.

Estou caindo em uma tristeza sem dor

Reivindicando o direito ao grito.

O que aprendi, já esqueci,

mas tenho certeza que ficou em mim.

Há um grande silêncio

esse silêncio é a força de meu grito mudo.

Irei até onde o ar termina,

no espaço louco da luz escancarada

da mudez aberta.

Conhecendo o inferno da paixão pelo mundo.

Um suspiro de saudade

certo luxo de alma...

A procura da palavra no escuro

É verdade que não me imaginei,

eu existo.

Tenho em mim mesma

meu próprio fim

meu próprio recomeço.

 

  PERDAS
 

Irei sozinha,

sem minha alma.

Sem ter coragem de já ter,

o suspiro de uma conclusão.

Recomeçarei a correr

em direção ao fim do mundo.

Meu coração morre de sede.

Preciso repartir o que sinto.

É uma dor sem palavras,

de tão funda.

Chorar a vida é uma resposta.

Meu sabor me vem todo a boca.

Meu vazio é a minha medida.

Aceito a vastidão

do que não conheço.

O fantasma de mim mesma.

O martírio de quem está protegendo um sonho.

O erro se tornou meu caminho.

 

  REVOLTA
 

Devoro com fome e prazer a revolta.

No disfarce das palavras

a solidão de não pertencer.

Há um ponto em que o desespero

é uma luz

um amor

assumindo a cor das sombras

e dos verdes.

Provoca meus sentimentos

meus pensamentos.

Uma porção de coisas

sempre vistas

nunca vistas.

Só tenho um corpo e uma alma

preciso mais que isso.

Não há senão faltas e ausências.

Um certo pavor que é secreto.

Tenho fome de ser outra.

Agora apago-me de novo.

 

  ESPERAS
 

Sinto que não desisti.

É como se o corpo todo

viesse de um sorriso suave.

Minha esperança renasce

fico forte de novo.

Um modo mais leve

e silencioso de existir.

A hora de rir há de chegar

Não se perde por esperar

não se perde por não entender.

Quero as esperas,

as mais delicadas esperas

de uma doçura próxima às lágrimas.

Não tenho dor a consolar.

O amor pelo mundo me transcende.

Não há porta fechada

nem janela sem luz.

 

  ANJO SÁBIO
 

Como posso detê-lo?

Um homem livre como uma frase de Bach,

de olhos muito, muito escuros,

tem o dom de extrair a essência,

a quintessência do sentimento.

Agora compreendo que o anjo é sábio.

Despertou meus sonhos,

perdi minha alma para a sua.

Uma luminescência que jamais provara.

Como a faca que corta o ar,

a música que me chama,

o céu que ilumina meus olhos.

Retirou-me do caos negro com seu cinzel.

Apresentou-me a coragem de viver uma vida sem temor.

Hoje sou como Ícaro sem asas,

o desejo de voar é forte em mim.

As aventuras que a minha imaginação deseja.

Assim que ele apareceu

guardião de outro mundo,

soube que sempre o amaria.

 

  INCERTEZAS
 

Não dizia nada,

expressava apenas sua própria lucidez.

O vento, quando era desafiado,

rachava sua face.

A carne mudou de natureza.

O corpo tomou outro nome,

mas sequer pensava em chorar.

Iria perder-se também,

com todo o resto,

no grande abismo do nada.

Seu coração aí mergulhava,

e perdia o germe de todas virtudes.

Não desejava delirar,

mais do que já delirara.

Basta.

Flutuou em incertezas.

 

  UM FINAL
 

Perdi a bússola.

Dentro de mim há silêncio demais.

Não me conhecer exige coragem.

Minha coragem me amedronta

tenho um arrepio de medo.

Espírito aflito nos olhos.

A noite veio para mim

cobrindo-me de mistérios.

Deveria caminhar a frente do tempo

e esboçar um final.

Quero sentir o sopro do meu além

enroscar-me em mim mesma

conformar-me sem me resinar. (resignar?)

Ser obrigada a procurar uma verdade

que me ultrapasse.

Sentir saudade do futuro

seguida de silêncio

E chuva caindo.

 

  ESCURIDÃO
 

Quero a escuridão

que me agasalha e me cobre.

Capto no ar o perfume

de alguma coisa esquecida,

desenhando a lembrança de um sorriso

nessa zona sombria

entre o irregular e o indecoroso.

Banhar-me-ei toda em raios lunares,

ficarei infinitivamente límpida,

neste silêncio que não deixa provas.

Meu corpo não me pertence

Nasci com o pecado mortal.

Tenho medo de mim

Tenho medo de Deus.

Sou um espírito,

antes de ser uma mulher.

 

  SONATA
 

Nada morre senão aquilo que nasce

como o sol declinando sobre a montanha.

Nosso coração aí mergulha

e perde-se.

A vertigem arrebata os sentidos

a atmosfera aveludada,

silenciosa.

Apenas o ecoar da água

sobre as folhas da árvores

sobre a relva

e a terra úmida

como poucas notas esparsas

no último momento de uma sonata.

 

  TARDE DEMAIS
 

Muito cedo na minha vida

ficou tarde demais.

Subitamente vejo-me como outra

e como outra serei vista.

Este rosto novo

eu o conservarei.

Será meu rosto

de um envelhecimento brutal.

Vejo-o apossar-se de meus traços,

um a um,

escondidos na profundeza de minha carne.

Ficou tarde demais.

Tarde demais também para as lembranças

como é tarde para esquecer.

Nada posso contra mim mesma.

As lágrimas consolam o passado

e o futuro também

na ferida viva e fresca

que acabo de abrir.

 

  FADA DO BOSQUE
 

Nunca disse que era proibido

entrar no reino das fadas:

disse apenas, que era perigoso

por medo de descobrir vestígios de um passado

ou indícios de um futuro.

E quando encontrar a fada,

encontrará também a força de sua pulsão de vida

como uma chuva de estrelas cadentes,

igual a centelhas agonizantes de fogos de artifício.

Surgirá uma grande cortina luminescente

movida por um sentimento único de amor

aninhado pela luz poente

que deixa entrever a beleza de sua alma

ora seca e profundamente suave,

ora como um fogo atado a seu corpo.

Em um mundo transparente,

feito de luz

pensamento

poesia.

 

  GRATIDÃO
 

Eu Adivinho a liberdade.

Minha mudez é casta.

Cheguei ao limiar de portas

que estavam abertas.

Deixem-me morrer de liberdade.

Aceito cada momento

como se fosse o último.

Procuro em mim mesma

a nebulosa que me ilumina.

Caminhando de inesperado

a inesperado,

de olhos entrefechados de felicidade,

grata à mão que me ama

e me liberta.

 

  CAMINHOS
 

Meu caminho não sou eu

é o outro

é os outros.

Uma maldição que salva.

Tenho raiva de sentir tanto amor

e não posso perdê-lo

sem me perder.

Sei que às vezes sangra.

Procuro a salvação no risco,

minhas fugas para o humano

que me sufoca brandamente

de tanta ventura e aventura.

Sinto que viver é inevitável.

Não consigo acertar o passo com o universo.

Preciso da doçura de existir

A doçura contagia.

Também me aquieto

doce.

Como se uma flor tivesse nascido em mim.

  VIDA
 

Paixão

embriaguês

loucura.

De que servem as palavras

se cessar a agitação do sangue?

Podia ser feliz

se não fosse insensato.

O homem é sempre o homem.

Esquece o mundo e não ouve

não vê

não sente

senão a loucura.

Só a ela deseja:

transforma sua esperança

em certeza.

O coração transborda

continua a marcar seu ritmo

elegante

furioso.

Não sente mais nada

É preciso encarar a morte

para se sentir vivo

abandonando-se à loucura do amor.

 

  ASPIRAÇÕES
 

Tem fortes tentações,

fortes desejos.

Seu fervor é mudo.

Sabe mais silêncios que palavras.

Cria sonhos acordada.

Respira o infinito.

Vive muitas vidas.

Olhando para o céu,

fica tonta de si mesma.

O que desconhece lhe ultrapassa.

Porque quer,

teme,

carinho,

gratidão,

raiva.

Vai obedecendo-se,

desabrochando-se em coragem.

Mas um dia há de ir,

sem se importar,

onde o ir a levará.

 

  INTIMIDADE
 

Não poderei dizer que não fruí

as alegrias mais puras desta vida

desfrutando o mais íntimo de mim mesma

arriscando a aventura.

A vertigem arrebata meus sentidos.

Leio minha alma

nela adivinho um destino

favorecido pela noite.

No fundo dos meus olhos

uma palavra muda

enquanto meu universo estreito se expande

intenso como um grito.

Estou à altura da eternidade

só o impossível me importa.

Eu sou o meu perfume,

a grande liberdade de não ter modos

nem formas.

Irei morrer secretamente,

como secretamente vivi.

 

  SER
 

É preciso seguir os desejos

mais profundos do ser,

uma mistura de medo e furor

onde se desdobra um céu

de estrelas e mistérios.

Aventuras e amores épicos

tão delicados como a própria vida.

Uma intuição fulgurante

subir cada vez mais alto

ou descer cada vez mais baixo.

O surgir de uma nuvem

no deserto do coração.

Sentir que a vida lhe foge entre os dedos

sinal de alguma coisa que sabe,

mas esqueceu.

Nenhum fragmento de suas próprias idéias,

sem forças para amar além do medo.

Como ultrapassar essa dor que nos espreita?

É assim mesmo a vida:

ser já é fazer.

 

  NOITE
 

Cada dia é um dia roubado da morte

tatuado em marca de fogo na carne viva.

Impresso de gravidade.

Preso no mais íntimo do ser

não como virtude

mas como um vício.

Falsa lucidez da maturidade.

Dar um sentido fresco à vida murcha

como uma rosa

louca de beleza,

mas mortal.

A tragédia vivificante.

O cotidiano que aniquila.

Cada noite é particular

tem a sua própria duração

até a consumação do espaço

do tempo da noite.

 

  O SÁBIO
 

O sol já declinava sobre a montanha

Flutuava em esferas celestiais

uma ao redor da outra,

desfrutando o mais íntimo de si mesmo.

Arriscando-se na aventura

de abraçar o mundo inteiro

jogando com o vazio

manipulando-o

riscando o céu estrelado de seus sonhos.

Pensando nas certezas dos homens

e em suas dúvidas

Tremia de medo de sua alma imortal.

Esperava encontrar um navio

um mar

e um vento.

Sonhou com o contorno de seu corpo

com a luz infiltrando em seus desejos.

Sabia tudo

sem nunca ter perguntado nada.

Não tinha mais lágrimas a derramar

apenas solidão e olhos secos.

Vivendo a dor

sepultou o saber

em uma mortalha de esquecimento.

 

  SENTIMENTO
 

Sucumbo sob a força de visões magníficas.

Minha alma inunda-se

de uma serenidade maravilhosa.

O sopro de todo amante

faz-me flutuar

mundo de ternas delícias.

O sol desvenda a impenetrável floresta

que era minha alma.

Concentro-me.

Encontro o mundo em mim mesma.

Caminho suave

ao acaso, sobre a pele da terra.

Reconheço o que é belo

ouso expressá-lo,

O som harmonioso de sua voz

o fogo interior que brilha em seus olhos.

Abandono-me à alegria de viver.

Sinto junto de mim um coração

tornando-me tudo aquilo

que serei capaz de ser.

 

  MAGIA
 

Será este o nosso destino

flutuar frágil,

não fixarmos em nada.

Debruçar sobre o nada.

Jamais um centro, um caminho, uma trilha.

Ir ao sabor da vaidade

e do vento.

No limiar onde começa o silêncio.

no fundo de nossos olhos,

uma palavra muda

uma intuição fulgurante.

À flor da pele e da consciência.

Favorecidos pela noite

uma mistura de medo

e furor.

Ao mesmo tempo trágico e luminoso.

Aquela noite de todas as magias nos pertencia.

Havia em nós o lugar para o desejo

à espera da alvorada.

 

 

 

 

Madu (Maria do Carmo Dumont). Nascida em Diamantina, Brasil.
Obras publicadas: «Maria com muito gosto» (1997), «Para ser mulher» (2007).
madudumont@hotmail.com
http://madudumont.blogspot.com/

 

 

© Maria Estela Guedes
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