REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 22

 

Com obra tão extensa quanto múltipla, esse artista, que nasceu no Ceará, tem exposições em países como Alemanha, Espanha, França
 e Estados Unidos


Floriano Martins
Especial para o Diário de Cuiabá

 

 

FLORIANO MARTINS

Hélio Rola
e os matizes da arte

                                                                  

O artista plástico Hélio Rola (Fortaleza, 1936), dentre inúmeras outras atividades, é um dos heróicos remanescentes da chamada arte postal, com a particularidade de não havê-la cultivado da maneira anódina como era praticada nos anos 70, e que logo desaguaria em um grafismo sem substância alguma. Plasticamente, Hélio deu a essa arte postal a condição de um diálogo constante com as demais técnicas (guache, xilogravura, nanquim, escultura etc.) às quais segue recorrendo para expressar sua visão de mundo. Com obra tão extensa quanto múltipla, esse artista tem exposições em países como Alemanha, Espanha, França e Estados Unidos. A presente entrevista permite uma aproximação de várias etapas de sua vida e criação, aspectos que se confundem revelando uma afortunada inquietude.
 

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FLORIANO MARTINS: Tua formação, excetuando a extensa parcela de autodidatismo que a caracteriza, inclui aulas na Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), em Fortaleza (anos 40), e no Art Students League, em Nova York (anos 60). Os dois cursos distam 20 anos entre si. Como exatamente se inicia o artista Hélio Rola e qual importância teriam esses estudos na definição de uma estética?

 

HÉLIO ROLA: Após refletir um pouco sobre a questão do autoditadismo, concluí que o autodidatismo em estado puro não existe. Aprender qualquer coisa é um ato social, penso. Senão vejamos: nasci em Fortaleza em 1937 e me iniciei nas artes plásticas criança ainda quando riscava, desenhava nas calçadas da vizinhança com outras crianças. Também sofri de influência de D. Eneida, mãe de amigos meus, que desenhava, com perfeição , artistas de cinema e caras bonitas encontradas em revistas e jornais. Estava eu às voltas com o hiper-realismo. Fazia arte pública, grafites, e logo desenhos a lápis, seguidos de desenhos a tinta nanquim, guache etc. Passei então a fazer guaches combinando com tinta nanquim de cenas de meu cotidiano. Fui levado a conhecer Jean-Pierre Chabloz e fiquei encantado com seus desenhos. Meu pai era garçom de um bar que também tinha cinema. Para lá iam todos - políticos, advogados, médicos etc., e também artistas. Meu pai, Antonio Rola, era amigo do poeta Sidney Neto, do cronista Caio Cid, do artista R. Kampos, dentre outros. Acho que de tanto propalar que tinha um filho pródigo, que desenhava e pintava, alguém lhe disse que me levasse para conversar com algum artista. Só me lembro que foi o Antonio Bandeira - no Salão de Abril, na antiga Assembléia, no centro da cidade - quem viu meus desenhos e me aconselhou a freqüentar a SCAP, e assim se deu. Depois passei no vestibular em primeiro lugar e me formei em medicina, seis anos depois, em 1961. Fiz pós-graduação, voltei para Fortaleza e me tornei professor de bioquímica na Faculdade de Medicina da UFC. Em 1967, fui para Nova York, fazer pós-doutorado, onde fiquei até 1970. Em meio aos afazeres científicos, um dia recebi visita de um casal que queria me conhecer por ser brasileiro, pois pretendia saber como localizar literatura sobre bandoleiros do Nordeste, especialmente Lampião. Por conta das conversas sobre arte, com esse casal, e não somente sobre ciências, retomei a emoção de minha infância e voltei às artes plásticas. Passei a frequentar museus e galerias. Ainda em Nova York, fui influenciado por um amigo brasileiro que me iniciou em fotografia, que foi extremamente oportuno e importante para mim, em meu fazer artístico.

 

FM: Em 1987 participas da criação do Grupo Aranha, cuja proposta era uma mescla de arte coletiva e mural. Gostaria que me falasses um pouco da formação do grupo e de suas interferências na paisagem urbana de Fortaleza. Que destino encontraram os painéis de pintura mural coletivos pintados naquele momento? Onde eles estão atualmente?

HR: Eu e minha família começamos a pintar muros na Praia de Iracema, bairro onde morávamos, para acabar com o lixão que existia na esquina da rua Potiguares com Tremembés. Muitos amigos participaram das pinturas que aconteciam nos finais de semana, inclusive o Sérgio Pinheiro. Anos depois, em 1987, quando de nosso retorno de Paris, Sérgio e eu, é que ele teve a idéia de organizar um grupo de artistas para pintar muros, inicialmente apenas no mesmo bairro. Daí surgiu o Grupo Aranha, que era formado por mim, Sérgio Pinheiro, Eduardo Eloy, Kazume e Alano de Freitas, dentre outros. O grupo não era fechado e nem sempre tinha a mesma composição nas performances. O ateliê, depósito de tintas e material de pintura, era na minha casa. É claro que conciliar essa diversidade de artistas não foi tão simples. Primeiro começamos pintando cada um a sua coisa. Dividíamos o muro em quatro partes iguais (democracia?) e cada um pintava a sua. O resultado, apesar do lado a lado, era um painel de individualidades. Depois evoluímos, passando a pintar todos o projeto de alguém. Pintamos o muro de uma mercearia seguindo um projeto de Kazume. Lembro-me que o Eduardo Eloy estava no Uruguai e não participou, mas teve seu retrato incluído na pintura. Bom, a evolução veio por conta dele mesmo, Eloy, que defendia uma pintura solta/ação, que envolvesse a todos. Como nesses termos eu já me entendia com ele - havíamos pintado a quatro mãos em outra oportunidade -, fiquei entusiasmado. O tipo de pintura daí surgida, revelava uma diluição de autoria e fazia com que afluísse um autor coletivo. Havia resistência por parte dos demais, que temiam - segundo penso - que aquela maneira de pintar viria a afetar sua própria arte. Os murais na Praia de Iracema deram o que falar. Como fazíamos carga contra a poluição sonora e a ocupação indevida dos espaços urbanos - tendo isto coincidido com o movimento SOS Iracema -, passamos a ser notícia nos jornais locais, enquanto sofríamos as retaliações do mercantilismo corrosivo (travestido de turismo) que ali se implantava.

FM: Em 1996 te encontras ligado uma vez mais a uma atividade coletiva, o grupo Tauape, cuja exposição Tauape Xilogravuras percorreu cidades como Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Berlim. Todas as críticas acerca dessa exposição referem-se ao essencial resgate empreendido por vocês no tocante à tradição da xilogravura. O próprio perfil estético dos seis artistas, a distinção existente entre eles, já assinala uma condição nova e consistente na utilização de uma técnica. Que mudanças observas no tratamento da xilogravura desde aquele momento até os dias de hoje?

HR: Acho que no momento isto não é mais do que uma observação feita por poucos. O que se constata é uma verdadeira inflação (no bom sentido) de artistas, iniciantes ou não, que se dedicam à xilogravura em Fortaleza. As diversas manifestações mostram que a prática da xilogravura foi resgatada e perdeu as amarras com a idéia de uma arte-cabra-da-peste, e com a subordinação santeira habitual e ganhou o mundo, do museu Portland (EUA) até os confins da Cracóvia…

FM: Em 1999 participas de uma exposição sobre arte construtiva. O conjunto de tua obra (pintura, muralismo, gravura, escultura, arte postal), no entanto, não possui um único componente que a aproxime do construtivismo. De alguma maneira, isto me recorda a definição de estilo dada por René Crevel: “segredo de costureira, arte de arranjar os restos”. Seria movido por uma concordância com Crevel que aceitas participar de uma exposição em torno do construtivismo?

HR: Meu envolvimento com a arte construtiva veio por influência direta do Zenon Barreto. Depois que voltei de Nova York, em 1970, quase que diariamente visitava o Zenon e daí, de conversa em conversa, sobretudo vendo o que ele fazia, tudo isso aliado às influências de Paul Klee e Volpi, saí de uma pintura de conotação expressionista para um jogo de cores, geométrico, de repetição de um módulo criando um equilíbrio entre cheios e vazios. O módulo de repetição era uma casinha de porta e janela. Em 1975, retornei a Nova York onde passei dois meses de férias e pude apreciar e curtir de fato trabalhos dos americanos Mark Rothko, Frank Stella, Barnet Newman e outros. Ampliei minha sensibilidade, minimalismo e expressionismo abstrato ou figuratico etc. Em relação à minha participação recente em uma mostra do MAUC/CE, ao lado de artistas construtivistas da Europa, em face do que expus acima não tem nada de estapafúrdio, pois me foi possível produzir uma série de trabalhos que geraram alguns interesses.

FM: No catálogo da exposição Tauape Xilogravuras na Alemanha, em texto assinado por Heinrick Stahr, se faz referência a uma relação entre caos urbano e imagens caleidoscópicas no tocante às tuas xilogravuras ali apresentadas. Idêntica leitura se poderia fazer de série de guaches apresentadas em individual em Fortaleza (2001). Até que ponto o que é denúncia se confunde com saudosismo em tua leitura das sociedades contemporâneas?

HR: Você bem sabe que a maneira de fazer faz a arte, faz a vida. Os guaches e as xilogravuras daquela época se encontram na sobrecarga de imagens. Só que o humor das xilos é agressivo e inquietante, enquanto que o dos guaches, por conta das cores, é feliz e brincalhão. Perdão, porque sei que tudo é dito por alguém ao outro alguém que pode ser ele mesmo. No caso, eu mesmo. Depois de sua pergunta refleti e arrisco a dizer que saudosismo e denúncia são a mesma coisa.

FM: De volta ao lamaçal dos conceitos: por mais que se fale em expressionismo figurativo para situar tua amplitude estética, penso que realizas uma arte afeita à intranqüilidade, mágica ou fantástica, no sentido de uma inquietude permanente. Gérard Legrand observou a fusão entre consciente e inconsciente levada a termo por Max Ernst. Talvez pudesses falar um pouco de tuas identificações com outros artistas. Bem sei que trabalhas movido por uma volúpia, que te deixas perseguir incansavelmente por uma idéia, uma suspeita, um estalo. De onde vem isso, que afinidades encontras com teus pares e o que pretendes?

HR: Aprecio muitos e muitos artistas. Sofrer influências não tem um fundamento racional. Tudo não passa de um encaixe emocional. Eu, como você sabe, e por conta de não viver da arte - apesar de viver fazendo-a -, é que me dou a liberdade de tentar coisas em várias direções. Em Paris, no Centro Cultural de Val-Fleury, em 1981, fiz uma exposição múltipla de pinturas, desenhos, objetos, fotomontagens etc., intitulada Artesanato do cotidiano . Entretanto, desde o reinício em Nova York e depois do natural entusiasmo por Van Gogh, Matisse, Picasso etc., o que me chamou atenção mesmo foram os expressionistas alemães. Mas nunca me contive diante de uma pintura do inglês Francis Bacon. Para uns pode parecer incompreensível o fato de me tocar muito a pintura dos estadunidenses Frank Stella, Kenneth Noland, Barnet Newman etc. É claro que morando em Nova York tive a chance de ver bastante coisa. O problema, na definição do artista, são as interdições advindas do mercado e da crítica. Não fica bem para um artista fazer uma coisa hoje e outra amanhã, segundo dizem. Por que não? Meus parabéns para os artistas especialistas, que vão a fundo em suas buscas.

Bem, em relação a meus pares e afinidades. Antes da influência do Zenon Barreto, tive as influências de Nova York. Picasso, Matisse, Paul Klee etc. O Zenon me fez experimentar na arte construtiva. Também fiz uma boa parceria com o Sérgio Pinheiro em Paris, entre 1979 e 1980. Enquanto ele desenvolvia uma linha abstrata,a la Mondrian, eu me dediquei a tirar figuras da caixa, algo na linha de Pandora, tirar da caixa o que ela pudesse oferecer. Para mim, o resultado foi interessante e as esculturas de hoje são fruto de um trabalho - a lógica da caixa que começou em Paris nos anos 80. Já os guaches vêm das influências que recebi do Eduardo Eloy e da pintura do Grupo Aranha em sua fase de pintura ação. Tanto admiro, como já disse, uma pintura como a do Barnet Newman como a de um Oskar Kokoshka.

FM: Humberto Maturana nos fala de “uma cultura alienada no mercantilismo”, síntese que abrange competitividade, inveja, falsidade ideológica, desprezo pelos valores comuns. A normatização do lucro - e seus derivativos de massa (casa lotada, prêmios, capas de revista etc.) - ilude facilmente uma consciência artística em estado embrionário, como no caso brasileiro. O mercado de arte passa a ser visto como contraventor e o artista como vítima. Recordo o sentido de religare dado à criação artística em si. Até que ponto a arte nos separa, tendo se tornado desagregadora?

HR: A arte nos une na procura e no encontro do novo em todas as dimensões de nosso viver. Mas o pano de fundo, cultura (patriarcal) da competição, nos desagrega e nos rouba o sentido do humano que é a solidariedade. Não há solidariedade no mercado. A arte, ou o que quer que assim seja chamado, não é uma entidade com existência fora do nosso fazer humano. A arte surge quebrando consensos, mas acaba por se tornar consenso (é quando ela morre para renascer quebrando o próprio consenso antes estabelecido). Você vai dizer que na ciência e em qualquer outro afazer humana é a mesma coisa. É mesmo!

FM: Tua opção por uma arte postal possui uma distinção essencial em relação a uma maioria absoluta de recorrência ao meio: o intrínseco valor artístico. O discurso inócuo e sobretudo a pirotecnia formal desgastaram um promissor veículo de idéias. Hoje resulta fastidioso deter-se em veleidades como poema visual, arte postal e corruptelas similares. Observo tudo isto pensando na equívoca idade das formas. Perdemos o sentido do diálogo? Há uma lei de mercado que estabelece relação promíscua entre forma e conteúdo? Por que tanta sub-arte bate à nossa porta?

HR: É uma pena que a força da arte postal tenha arrefecido ao longo do tempo. Não é mais fashion. Mas, para mim, atende às minhas emoções. Faço um desenho, escrevo algumas coisas, ou cometo uma poesia, e envio para várias pessoas. Assim amplio meu raio de ação. Não tenho email, mas o cartão postal vai longe. Por exemplo: faz tempo que eu envio o Rol@net, que é como chamo minha arte postal, para muita gente, inclusive críticos de arte como Jacob Klintowitz, Paulo Herkenhoff, Olívio Tavares, Lisbeth Rebolo... Concordo, perdemos o sentido do diálogo e o artista atual, meus pares, não parecem muito preocupados com esta questão. Acho que o que você chama de relações promíscuas entre forma e conteúdo é o resultado de se ver e ter a arte tão-somente como uma mercadoria.

 
 

FM: Qual a cidade ideal para o Hélio Rola? Todas as obsessões de tua obra estão vinculadas a um compartilhar situações, ou seja, ninguém mora sozinho em tua visão de mundo. Com tanta maquiagem borrada, haverá uma possibilidade do artista recuperar sua condição de indicativo de algo?

HR: Minha cidade? Uma cidade para mim? Aquela na qual artistas fossem todos e não se tivesse o abuso social nem a degradação ecológica. Basta de campanhas humanitárias, vamos viver a igualdade e a legitimidade do outro ser. O único indicativo de algo, segundo penso.
 

 

 

 

 

Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br) e colabora semanalmente com o DC Ilustrado com uma série de entrevistas que futuramente reunirá em livro intitulado Invenção do Brasil. Contato: arcflorianomartins@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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