REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

   

 

Um primeiro olhar sobre a obra de Ozpetek remete-nos de imediato para uma das pedras-de-toque da nossa cultura: a relação dos fenómenos com a linguagem e o consequente processo de universalização que desemboca na clarificação dos conceitos. Esboçada já na Antiguidade – lembremo-nos das críticas dos Cínicos ao Platonismo -, a questão dos Universais dá o seu primeiro grande passo na Idade Média - é Roscelino, século XI, quem peremptoriamente afirma: as ideias abstratas não passam de flatus vocis (sopro de voz): instaurando-se assim definitivamente o Nominalismo que Guilherme de Occam, no século XIV, viria a desenvolver e a aprofundar. Sem nos determos na relação que Occam estabelece entre o conhecimento intuitivo e a experiência, digamos tão-só que é baseando-se nesta última que este filósofo afirma a individualidade do real enquanto tal, criticando assim com acerbidade todas as teorias que concedem ao universal um qualquer grau de realidade (cf. In Sent I, d. 2, q. 7 S).

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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   VICTOR  OLIVEIRA  MATEUS

Imagens da sexualidade na obra de Ferzan Ozpetek

         (A problemática da orientação sexual na filmografia do século XX)

                                                                  
 

Para o que nos interessa neste artigo acrescentemos que Occam não nega a realidade do conceito, mas vê-o apenas como algo mental, tendo, por conseguinte, uma consistência exclusivamente subjectiva, determinada e… singular, com uma função puramente significante; o conceito é um signo das coisas, algo que está em lugar delas e é deste modo que o usamos nos juízos e nos raciocínios. À luz destas posições (e sem desenvolvermos como muitas das teses nominalistas irão depois reaparecer em Russell e Wittgenstein) percebemos como, apesar do termo sexualidade do nosso título, se possa dizer que na obra de Ozpetek – e, aliás, na linha do que muitos sexólogos vêm actualmente defendendo – não existe um padrão unívoco da heterossexualidade, mas sim heterossexualidades, nem tão-pouco um arquétipo da homossexualidade, mas antes homossexualidades. Uma posição deste tipo não nega as derivações interpretativas centradas no primado do genótipo e/ou do hipotálamo, antes as integra, mas recusa-se a ver o comportamento sexual dos humanos determinado exclusivamente por uma orientação originária, mecanicista e inamovível.

A tendência para abrir o leque, ao nível da observação e da análise, dos vários comportamentos humanos de tipo sexual – desembocando muitas vezes no âmbito da bissexualidade – aparece, de forma nítida, mas ainda num pequeno número de filmes da cinematografia europeia da segunda metade do século XX, são disso exemplos três dos maiores realizadores desse período: Pasolini com o seu Teorema (1968), Fellini com a sua adaptação do Satyricon de Petrónio (1969) , Visconti adaptando também a novela de Mann, Morte em Veneza (1971), e, no seu penúltimo filme, Violência e Paixão (1974), entregando a Burt Lancaster o papel do velho professor que, retirado e rodeado de livros e obras de arte, se vê subitamente envolvido com um grupo de novos vizinhos, vindo a desenvolver um relacionamento ambíguo com um deles. É evidente que a função primordial de qualquer destes filmes não é aquela que aqui estamos a referir – por exemplo, em Teorema e em Violência e Paixão o objectivo é antes a desmontagem de alguns valores intrínsecos à burguesia bem comportada, bem como a algumas instituições nomeadamente a família. Aliás, e como mero parêntesis, digamos que é nesta preocupação de dissecar o quotidiano dos bem comportados que entroncam também alguns filmes já do século XXI, como por exemplo o “Tudo pode dar certo” de Woody Allen (2009), onde o pai de Melodie corre para Nova Iorque na busca da mulher e da filha e acaba envolvido com alguém que não é filha nem sequer mulher, ou ainda o radical “Transamerica” onde a actriz Felicity Huffman é soberba na interpretação daquela transexual, a quem a sua compreensiva psiquiatra não concede a autorização final para a mudança de sexo, enquanto este ele não disser toda a verdade ao filho (Kevin Zegers) que havia feito a uma colega de faculdade e que a vida acabara de colocar no seu caminho. Parecendo ser apenas um filme sobre a mudança de género, “Transamerica” (2006) é também uma grande aula de psicanálise, sobretudo se nos pusermos a dissecar a relação das agora duas irmãs com a mãe. Mas, e recuando às duas últimas décadas do século XX, a História do Cinema conheceu um verdadeiro boom com autênticos estudos de caso que irão entrecruzar: orientação sexual/ valores dominantes e contingência, e esse boom invadirá quer o drama quer a comédia; relativamente a esta última não nos podemos esquecer da lésbica de Belle Époque ( filme de Fernando Trueba, 1992), exemplarmente interpretada por Ariadna Gil, que, a certa altura, se sente atraída pela personagem de Jorge Sanz, sobretudo quando o descobre fantasiado de criada. É fazendo rir que Trueba demonstra que a imaginação e a fantasia desorientam o que até então era tido como A orientação sexual, assim como altera um percurso que se julgava de pendor fixista e fá-lo através de outras variáveis ligadas à aprendizagem e ao social. Até a violência, sobretudo a física, pode desencadear essas mudanças comportamentais, essa desorientação da orientação, como na cena de pugilato no Oito Mulheres, de Ozon, quando Catherine Deneuve e Fanny Ardant se amarfanham pelo chão de uma enorme sala. A prostituição masculina, que Andy Warhol já tinha exibido na sua célebre trilogia (Flesh, Trash e Heat), mas de que se fala hoje muito mais do que há algumas décadas, traz para a luz do dia outro tipo de variáveis ligadas agora ao sócio-económico, ao estatutário e ao desejo do novo e do fantasiado; todavia, se um acompanhante heterossexual se pode colocar ao serviço de mulheres, como Josiane Balasko muito bem retratou no seu filme “Cliente” com uma esplendorosa interpretação de Nathalie Baye (não nos esqueçamos do papel de lésbica que Balasko tão bem levara a cabo, no filme “Gazon Maudit”, chegando ao ponto de seduzir a heterossexualíssima personagem desempenhada por Victoria Abril, que, na película, acabará dividida entre o marido e a inesperada amante), o que é um facto é que esse mesmo indivíduo poderá também colocar a sua orientação sexual à disposição de homens (Cf. devassos no paraíso de João Silvério Trevisan, sobretudo as páginas 410-414, onde se referem entrevistas de alguns desses acompanhantes casados e que contam com o apoio das próprias mulheres, ávidas de um qualquer suplemento remuneratório que lhes suavize o quotidiano, aliás, esta derivação de tipo económico é também enfatizada no filme realizado por Balasko; todavia, este território está ainda pouco estudado, principalmente na parte que leva a que esses indivíduos, muitas vezes, se apaixonem pelas suas (ou pelos seus), clientes e, fenómeno igualmente já constatado neste meio, que leva ao estabelecimento de um elo preferencial de tipo afectivo-sexual entre dois elementos dessa mesma profissão). Seja de que maneira for parece-nos que algum do cinema feito nas últimas décadas, bem como muito do ensaísmo e da investigação científica parece apontar para a ideia de que a orientação sexual não é coisa de enjaular em espartilho de laboratório ou de compêndio, nem de funcionar, ao modo de uma qualquer implicação lógica, como tabela de branco e preto.

Herdeira de toda esta tradição, a obra cinematográfica de Ferzan Ozpetek chama-nos a atenção para o papel que o quotidiano e o adquirido têm sobre o desejo que sentimos pelo outro, pela outra ou por ambos. Oiçamos a filósofa Martha C. Nussbaum: “Desire, in short, is in good part “in the head”. Here, of course, is where culture and cultural variation play a major role. Society shapes a great deal, if not all, of what is found erotically desirable and social forms are themselves eroticized. We see this quickly in the tremendous variety of what is found erotically appealling in different societies and, of course, by different individuals in different societies: different attributes of bodily shape, of demeanor and gesture, of clothing, of sexual behavior itself. Social constructions of an attractive sexual object vary enormously, and with these, the social meaning of sexual arousal and interaction themselves. “ ( In Sex, preference, and family – essays on law and nature, p 26). Mas a sociedade e a cultura não modelam somente o desejo e o objecto deste, elas actuam do mesmo modo relativamente a outros sentimentos e emoções decorrentes da concretização, ou não, desse mesmo desejo, nomeadamente a vergonha e a culpa, como bem defende Jesús Ferrero: “ La verguenza y la culpa son las pasiones más determinadas por la cultura en la que vive el sujeto que las padece y por sus normas sociales y morales.

Básicamente se podría decir que sentimos verguenza y culpa cuando nos descubren haciendo algo prohibido, o cuando descubren que lo hemos hecho. La violencia que proyecta la mirada de los otros ante nuestro delito penetra en nosotros como la púa de una cerbatana, y nos odiamos a nosotros mismos y quisiéramos desaparecer bajo tierra: enterrarnos. Pero solo sentimos culpa como un efecto de la mirada acusadora de los otros? Desde luego que no. Todos llevamos una conciencia llena de normas morales. La mirada interior puede proyectarse sobre nuestros actos com más severidade y más rigor que la mirada de los otros.” ( In Las experiencias del deseo, Eros y misos, p 133). É impossível lermos este texto de Ferrero sem nos lembrarmos de um capítulo de “L’étre et le néant” de Sartre – “Le regard”,e, por outro lado, sem concluirmos que se o olhar do outro nos rotula, nos torna “en-soi” como diria o filósofo francês, de um modo directo, também é verdade que a minha auto-imagem é mediatizada por esse mesmo olhar que me é alheio. Assim, a sociedade e a cultura em que me encontro inserido tendem a orientar-me o desejo, o objecto que esse desejo visa e ao périplo de paixões e emoções inerentes a todo o processo, encontrando-me assim eu no seio de uma aporia fundamental: a minha orientação sexual, que, por sua vez, subjaz às minhas atitudes e aos meus comportamentos também de tipo sexual, é ela própria – apesar da inscrição genética – orientada por condicionantes que lhe são externas.

Como corolário das posições defendidas poder-se-á dizer que elas desembocam necessariamente na forma como os parceiros sexuais se procuram uns aos outros e entre si estabelecem todo um universo convivencial. Hoje, na nossa sociedade, os modelos vigentes, e os únicos legalmente aceites, são a monogamia heterossexual e a monogamia homossexual, contudo, uma observação minuciosa do reino animal, concretamente no caso dos mamíferos, poder-nos-á elucidar se essas formas de convivência derivam de potencialidades inscritas no património genético, ou se, pelo contrário, ela nos mostra outras evidências onde, uma vez mais, uma orientação exterior (ética, moral, religiosa, jurídica…) ao que somos nos tende a orientar noutros sentidos. Acerca disso atentemos às investigações de David P. Barah e Judith Eve Lipton: “Quando se trata de mamíferos, sabe-se há muito tempo que a monogamia é uma raridade. De 4 mil espécies de mamíferos, não mais do que algumas dezenas formam ligações de par confiáveis, embora em muitos casos seja difícil caracterizá-los com certeza porque a vida social e sexual dos mamíferos tende a ser mais furtiva do que a das aves.” ( In O Mito da Monogamia, Fidelidade e Infidelidade entre pessoas e animais, p 26).

Eis-nos, então, chegados a um ponto crucial desta proposta de leitura da obra cinematográfica de Ferzan Ozpetek: os factores genéticos e biológicos não são condicionantes exclusivos, nem prioritários, da orientação sexual (e seria interessante até discutir a pouca cientificidade deste último conceito, adoptado pela comunidade científica para substituir a balbúrdia teórica que o antecedeu: preferência sexual, opção sexual e outras enormidades deste estilo!) nem do modo como os comportamentos sexuais ocorrem; as diferenças – a vários níveis – dentro da heterossexualidade e da homossexualidade são abissais; os modelos de convivência e/ou de acasalamento monogâmicos podem funcionar para alguns seres humanos, mas as “ligações verdadeiramente confiáveis” são raras; os sentimentos, as emoções, os fracassos e os sucessos de uma vida afectivo-sexual podem ser gravados em nós, mais pelo olhar do outro, do que por aquilo que, nos nossos momentos de solidão e de auto-questionamento, apreendemos no mais fundo de nós. E, como cúpula desta visão, a subtil mecânica do jogo: umas vezes alienante e turbilhonar, como no caso dos “gays loucos” de Mine Vaganti; outras, lúcido e desgastante como na avó da mesma película.

Sabemos, todavia, que algumas tendências dentro da psicologia e da psiquiatria têm vindo a substituir o conceito de orientação pelo de identidade sexual, parecendo-nos até com a finalidade de salvaguardar o território da imutabilidade e do genético. Tais posições, varrem assim de cena a bissexualidade, eliminam de imediato do ser e do idêntico toda a veleidade de um qualquer ir-sendo e, por fim, ver-se-ão na necessidade de defender que essa identidade do ser humano foi o que, nalguns casos, nunca apareceu, tendo assim o eu vivido aquilo que não era em-si, enquanto que a sua verdadeira identidade sexual (?) acabou por nunca despertar, isto é, segundo esta linha teórica é perfeitamente possível, o indivíduo, ao nível sexual, ir sendo aquilo que não é, enquanto que o que ele é verdadeiramente continuará não sendo até ao fim. Esta posição que reduz orientação e comportamento sexuais ao quadriculado de um qualquer balancete genético não é a adoptada por Ferzan Ozpetek, daí a atracção de Michele Mariani por Antónia em Le Fate Ignoranti e, em Mine Vaganti, Tomaso (Ricardo Scamarcio), apesar da relação fortemente apaixonada que vive com Marco, não consegue esconder o fascínio que sente frente a Alba (Nicole Grimaudo). Dito de outro modo: nos filmes de Ozpetek muitos são os casos contemplados pela objectiva do realizador, mas no seu todo predominam as influências do quotidiano, da aprendizagem entre grupos, dos esquemas de género sexual aberto e do jogo; jogo esse que, nesta obra, jamais tem uma função oportunista ou de destruição do outro, antes se identifica com o cativar de Exupéry e com o platónico desejo de complementaridade: busco no outro aquilo que me falta, para que ele colha em mim o que lhe aprouver e achar por bem.

Partamos, então, desse conceito de jogo. No início de Le Fate Ignoranti (2001) Ferzan Ozpetek mostra-nos uma mulher vendo uma exposição. Ela está frente a um busto de Antínoo. Um homem aproxima-se e tenta seduzi-la, critica aquele que a deixou ali sozinha, já que menosprezou a sua beleza. Pela indumentária, pelo discurso e pelo ritual de sedução o espectador percebe que está frente a um par da burguesia média-alta. A perseverança do homem não cessa. Ela continua sorrindo. E é só quando ele a abraça pela cintura que nós percebemos que aquela etapa do jogo terminou – estamos frente a marido e mulher; e mais: estamos frente a dois seres cúmplices e que conseguem partilhar coisas importantes. Antónia, a mulher, é médica, e dias depois, quando sentenciava um dos seus doentes de uma situação de seropositividade, recebe o fatídico telefonema comunicando o atropelamento, e morte, desse tal homem com quem vivera em harmonia perfeita. A partir daqui a acção adquire um outro ritmo: Antónia ( Margherita Buy), mexendo nas coisas do marido, encontra um quadro que tem uma dedicatória por trás: “A Massimo, pelos sete anos passados juntos. Pela parte de ti que me falta e que eu jamais terei. Por todos os momentos em que me disseste “não posso” e por todos os outros em que me disseste “voltarei”. Poderei chamar à minha paciência amor? Mariani.” Toda a consistência do universo de Antónia se estatela nessa casa onde ela vivera, a dois, aquilo que não entendia já. Procurando Mariani, a outra, Antónia vai ter a um apartamento onde coabitam os mais diversificados tipos de pessoas: uma gentil e doce cinquentona que vive com um negro, uma transexual, uma empregada de um super que nunca acerta nos namorados, um casal de homossexuais masculinos… Mas Antónia insiste. Quer conhecer a Sra. Mariani. Volta e volta àquele apartamento e… acaba encontrando um rapaz, Michele Mariani (Stefano Accorsi). A relação que se acaba estabelecendo entre Antónia e Michele não cabe nos canhenhos dos inventariadores de orientações sexuais que se baseiam apenas no genético para determinação destas, contudo – algo obsessivamente – ela tenta saber se o marido ainda tinha mais alguém: “nem homem, nem mulher – diz-lhe Michele. – Ele só nos teve a nós dois.” E assim ficam presos um ao outro pela perda, pela memória, pela poesia de Hikmet e talvez por algo mais, como se percebe no final do filme, pois, se havia entre eles a crença de que sempre que se partia um copo era alguém que também partia, após a tentativa de fuga de Antónia, Michele atira um copo ao chão, mas… este não se parte.

Em 2003, com La Finestra di fronte,  Ferzan Ozpetek parece-nos querer homenagear Hitchcock pela semelhança adoptada com um título de 1954 deste último realizador: também aqui a janela indiscreta é o elemento primeiro e coadjuvante de todos os mistérios que se irão tecendo. Ozpetek constrói uma narrativa entrecruzada: a) uma acção passada em Roma, nos ínicios dos anos 40, quando nazis e colaboracionistas decidem caçar os judeus da cidade; b) uma outra, que se desenrola com um casal da pequena burguesia vivendo pacatamente com os seus empregos, os seus filhos, as suas domésticas desavenças e aspirações. Todavia, e mais uma vez, o meio vem jogar aqui a sua cartada quando a mulher começa a espiar o vizinho da janela em frente, é então que se percebe que a linearidade das vidas ritualizadas tem muito mais no seu fundo do que à primeira vista se julgava ver, até porque o observado já vinha sendo também observador. Os dois níveis da narração acabam confluindo a partir de certa altura: o jovem que, em 1943, tivera de matar o patrão delator, que o mantinha vigiado, para ir a correr salvar todos os outros judeus, é hoje um velho demenciado que vai parar a casa de Giovanna (Giovanna Mezzogiorno) e Filippo (Filippo Nigro) que, por sua vez, tentam, entregá-lo à polícia, embora sem sucesso. Lorenzo (Raoul Boya), o vizinho da janela em frente, é também sugado para dentro da estória deste velho cujos passado e presente passam a invadir todas as personagens, descobrindo-se, finalmente, a sua identidade: Davide Veroli (Massimo Girotti), aquele que em 1943 salvara tantos dos que o apontaram e, por essa necessidade de demonstrar a sua dignidade a quem o marginalizara, já não fora a tempo de salvar Simone, o seu amigo e companheiro. Este é um dos filmes de Ozpetek onde as preocupações sociais e políticas são mais vincadas, mas não descurando nunca a abordagem das questões psicológicas, afectivas e relacionais, por vezes até com alguma ironia, como quando uma das colegas de Giovanna a espicaça para uma aventura extraconjugal, dizendo-lhe que o casamento dela, com quinze anos, era quase incesto. É aqui que o golpe de mestre de Ozpetek atinge um dos seus pontos mais altos, cruzando a estória homossexual de Davide e Simone com a estória heterossexual de Giovanna e Lorenzo através de uma cena emblemática: Lorenzo, d’a janela em frente, narra a Giovanna uma crise demencial de Davide a que acabara de assistir: “Amar-te-ei sempre… Temos de nos amar em segredo…” Dissera Davide a Simone e diz também agora Lorenzo, pelo telefone, de janela para janela, a uma Giovanna que ele não deixa de fitar e que também o olha entre o êxtase e o pânico, pois sabe que pode ser surpreendida pelo marido a qualquer instante. Esta sobreposição dos planos remete-nos para o início deste artigo: o que é universal (a frustração ante a perda, as concretizações sub-reptícias, a mágoa de jamais se poder ser em absoluto, etc.) é transversal a todos os seres humanos, assim, é sendo englobante que tem a importância que tem, e que – eventualmente - até poderá ser muita, no entanto, o que dói verdadeiramente é o processo de singularização, é ao nível do concreto, é o modo como cada um vive essas experiências, e aí cada qual é o seu mundo, não dependendo da cor, do credo religioso, do género, da etnia, da orientação sexual ou ideológica. Há inúmeras cenas nos filmes de Ozpetek (ligações inter-raciais, operárias chinesas, domésticas budistas, burguesas caucasianas com amantes ocultos, etc.) que fundamentam esta ideia do primado do particular, território verdadeiramente real e objectivo, espaço a respeitar porque único, irrepetível e não sujeito a permuta.

Com Mine Vaganti (2010) a intriga torna-se muito mais complexa e o tipo de personagens mais diversificado, no entanto, manter-se-á a fluidez narrativa bem como a clareza dos propósitos, o que nos leva a continuar à distância do rocambolesco precipitado de Almodovar, e talvez mais próximos da técnica, da verosimilhança e do bom gosto de realizadores como Téchiné e Chéreau. O palco deste filme é a burguesia industrial e financeira de Lecce com os seus valores, as suas normas morais e, sobretudo, com o seu temor do olhar do outro. A película circula sempre entre o rigor da análise e a, aparentemente anódina, desmontagem do grotesco. Tudo começa quando Tomaso ( Riccardo Scamarcio) diz a António, o irmão, que durante o grande jantar dessa noite irá revelar à família a sua homossexualidade, ali, sem anestesia, percebe-se de imediato que o que está em causa não é bem o problema das orientações sexuais, mas a despótica figura paterna. E isso é confirmado durante a refeição, pois quando Tomaso pretende tomar a palavra, aquele mesmo António decide antecipar-se, e faz ele a confissão da sua sexualidade, afinal tão idêntica à do irmão. Tomaso recua e a violência verbal que se segue desemboca na expulsão de António, pelo pai, do seio familiar. Este jantar, com visitas – Alba e a família -, disseca toda uma panóplia de personalidades, trabalho esse que será continuado durante um outro jantar, já após a vinda de Marco e de alguns amigos de Tomaso. Naquela casa cruzar-se-ão as mais diversificadas formas de cada um desempenhar a sua orientação sexual, por conseguinte, poder-se-á perguntar: o que há de comum entre a heterossexualidade de uma mãe apagada e submissa e a da sua cunhada ávida de experiências e desajustada em relação àquela ordem repressiva? Nada! O que há de comum entre a homossexualidade viril de Tomaso e Marco e as superficiais tontas vindas de Roma? Nada! Ozpetek usa esta família como em Sociologia, ou em Psicologia Social, se usam as amostras, para a verificação de uma qualquer hipótese, e a observação, aqui nitidamente provocada, tem por função dissecar algo dinâmico e multidireccional: o funcionamento e os efeitos do processo de normalização. Ozpetek, durante uma entrevista que concedeu, tem mesmo o cuidado de substituir, corrigindo, o conceito de normalidade pelo de normalização.

Quais as plataformas de estabilidade possíveis durante um processo de normalização que é ele acidentado e aberto ao imprevisto? Apenas dois exemplos: uma das loucas de Roma não caça o tio de Tomaso porque a mulher deste está sempre atenta; Tomaso não investe mais em Alba porque a sua relação com Marco funciona plenamente, contudo aqui mantém-se sempre uma certa ambiguidade, ilustrada pela cena da praia quando Marco e Alba cabriolam na rebentação das ondas, e Tomaso, do alto da duna, olha ambos com o ar de um homem que tem ante si tudo, e nada mais pode desejar, aliás, o ele decidir juntar-se às brincadeiras dos dois tem uma simbologia bastante clara.

É evidente que Salvatore, o tio de Tomaso, se mantém com a mulher; é evidente que Alba não destrona Marco, mas o que aparece claro no cinema de Ferzan Ozpetek é que são várias as formas de cada um vivenciar a sua orientação sexual e não parece que os mecanismos de índole genética sejam os únicos responsáveis pela orientação da orientação, ou da identidade sexual se se preferir este caminho. Claude Aron, na sua função de académico mas também de fisiologista da reprodução, fala assim das experiências de Hamer com gémeos homossexuais: “(…) mais Hammer reconnut lui-même que d’autres facteurs sont nécessairement impliqués dans le déterminisme de l’homosexualité puisque certains sujets expriment cette orientation sexuelle en l’absence du gene qui chez d’autres en serait responsable. Ce gene restera d’ailleurs hypothétique jusqu’à ce qu’il soit cloné et donc identifié; et surtout retrouvé dans d’autres enquêtes familiales. Je conçois mal les mécanismes d’action d’un gene de l’homosexualité. S’éxprime-t-il dans l’ INAH3? Quelle vision simplificatrice à l’égard de la complexitè des mécanismes de la bisexualité chez l’animal! Je raisonne en physiologiste et non pas en psychanalyste. Pourtant je me refuse à un reductionisme biologique qui ferait une part moins belle chez l’Homme que chez l’ animal aux facteurs de l’environnement dans les conduites sexueles.” ( In La bisexualité et l’ordre de la nature, pp 271-272. Ao longo de toda esta obra Aron chama a atenção para inúmeros factores bio-fisiológicos que estão na base da orientação sexual, ironizando mesmo – nas páginas 281/2 sobre o gene da heterossexualidade – e na página 282 é irredutível: “Le concept de bisexualité de la gonade a été le fruit de longues et patientes recherches embryologiques. Celui de bisexualité comportamentale a des racines mythologiques.” Numa perspectiva sociológica é também importante a leitura de “Dupla Atracção” de Martin S. Weinberg, Colin J. Williams e Douglas W. Pryor, sobretudo, na edição portuguesa, das páginas 183-186. Se se pretender – nesta tentativa de se recusar a exclusividade do genético na determinação mecânica da orientação sexual – encetar uma abordagem a partir da História, são importantes as obras de autores como John Boswell e William Naphy. Pesquisar também, na net, o artigo “Heteroinquisidores” de Debora Diniz – antropóloga, investigadora e professora na Universidade de Brasilia -, é um texto muito interessante sobre a interdição do corpo do pai ao filho – fenómeno que não acontece na relação mãe/filha – e que orientará o modo como a maioria dos homens passará a ver/ sentir o corpo dos outros homens, aqui seria importante comparar depois o modo como o afável Lorenzo de La finestra di fronte abraça/acolhe o velho Davide e como, por oposição, em Mine Vaganti, o tirânico pai se refere ao corpo masculino, sobretudo no monólogo da confeitaria).

À tese de Tomás de Aquino, depois retomada por certos movimentos estéticos nomeadamente o neorrealismo, de que a arte tinha por função a imitação da natureza – no segundo caso da natureza humanizada na sua vertente social, económica e política – acrescentou-se hoje a noção de que a realidade imita ela o cinema, sendo assim, e um pouco na linha de Claude Aron, cabe-nos a estupefacção de que um comportamento tão complexo, como é o sexual, de que uma função tão determinante como é a orientação sexual possam, para alguns, ser submetidos a um processo explicativo afinal tão simples e primário, com toda a conotação pejorativa que o termo transmite, como aquele que tem sido defendido por alguns investigadores mais ligados ao campo da biologia e da genética. Talvez não fosse despiciente um olhar para os trabalhos de outras ciências, para as reflexões de tipo filosófico e – porque não? – para o que acontece mesmo ao nosso lado, nas ruas e… no cinema.            

   
 

 

 

Victor Oliveira Mateus (Lisboa, Portugal) 
 Publicou até hoje: Nas Águas a Luz suspensa, 1998; Movimento de ninguém 1999;
 A Noite e a Voz (Universitária) 2001; Quando Voltares (Coisas de Ler) 2002;
 Pelo Deserto as minhas mãos (Coisas de Ler) 2004; A Iressistível Voz de Ionatos
 (Labirinto) 2009; Regresso (Labirinto) 2010. Traduziu para português: Safo,
 S. João de Cruz e Voltaire, e para francês Do Intangível de Pompeu Miguel Martins.
 Co-organizou a Antologia Luso-brasileira de contos: Um rio de contos (Tágide) 2009
 e organizou a Antologia de Poesia Luso-brasileira: O Prisma das Muitas cores (Labirinto)
 2010. Tem poemas, contos e artigos de cariz ensaístico publicados em Portugal,
 Brasil, Espanha e Itália.
 
www.adispersapalavra.blogspot.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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