REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

 
 

 

 

 

 

FLORIANO MARTINS

Ruínas exaustas

 

                                                                  

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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  1.
 

Dores de memória confundindo o vazio.

Rostos queimando enquanto te esforças para lhes recordar os nomes:

Lucíola

Anete

Eugenia

Aspectos deformados de furtivos deleites,

tardes entregues aos lábios da pálida Eugenia,

dorso entrecortado de beijos,

Anete cantarolava enquanto um pezinho me percorria toda,

aos pulos a alegria acendia os olhos de Lucíola ao caminharmos pelo bosque,

limite fortuito do amor,

por terra caem as folhas da mais esplêndida primavera.

Jamais compreendemos o alcance do mundo visível.

Um dia a língua de Lucíola despojada em minhas coxas

e depois sabê-la espancada até a morte pelo irmão.

O triunfo da realidade será sempre mórbido?

Toques abrasados das mãos de Eugenia extraviando-se em mim:

não é o fim, meu anjo, bem aqui onde suspiras, não é o fim,

dizia-me com olhar travesso,

tardes inúmeras com Anete em uma banheira de hotel,

enlace de entregas,

sagrado beijo pubiano,

amava-me com tal exasperação a cada orgasmo renascendo mais do que qualquer uma de nós.

O marido lhe pôs o cano da arma na boca várias vezes.

Sem coragem para o disparo se punha a chorar a pedir-lhe perdão por ser tão ciumento.

Anete e Eugenia estiveram juntas comigo uma vez só:

três crianças esquivando-se do mundo em uma tarde de gangorras,

vivíamos uma fantasia primitiva,

os corpos de Eugenia e Anete foram encontrados nus e amarrados um ao outro,

único disparo em cada fronte:

Eu estava certo que ela me traía com outro homem -

foi tudo o que disse aquele homem que me privou de dois amores de uma só vez.

Não adianta indagar-se sobre as formas do fogo.

Nada nos custa tanto quanto o instante,

mas em nada se explica ou requer consonância.

Talismãs e ruínas são imagens distorcidas de uma enfermidade do espírito:

o que desejamos acaba se convertendo no que perdemos.

 
  2.
 

Tinha-me em seus braços na escuridão insinuante de um quarto de hotel às duas da tarde,

eu lhe pedia socorro entre almofadas e lençóis,

nossos corpos mordendo-se de desejo.

Agarrava-lhe os cabelos com desespero ao sentir a língua mergulhando em mim.

Rasteava-me -

por aqui passaram feitiços divindades simulacros

tua carne é um fósforo

nela encontro fiadas as imagens de um renascimento -,

Eugenia não via em meu corpo nada de apócrifo,

lia em seus liames secretos a veemência com que estive com homens,

o mito extraviado desse amor comum:

põe a língua bem aqui é tudo o que desejo…

Chamava-me heroína,

um risco duplo de saber a qual obscuridade se pertence,

atenta que o acaso não vem em nosso auxílio.

Mesmo alguém que não seja privado de nenhum sentido deve saber a quem sacrifica:

uma mulher me espia pelas fendas mais secretas de meu desejo torna minha pele um pergaminho repleto de passagens secretas momentos cifrados talhados por estímulos que vão além da alucinação línguas como plumas que me descerram a cortina de um teatro de sacrifícios as súplicas por feridas mortais hábeis interjeições lamentos infalíveis uma multidão de línguas tocando o revés de qualquer sofreguidão

ah minha putinha…

Eu disse a ela que nada acabava ali,

mas nunca soube o quanto essa paródia se insinuava em nossa vida,

nem sei se tivemos uma vida.

A memória recolhe momentos marcados por todo tipo de ilusão.

Eugenia me dizia que eu era uma suspirosa,

presa a leituras extravagantes do mundo,

uma mulher fascinada pelos caminhos entrecortados subterfúgios enigmas.

Não tenho como lhe dizer agora que estava certa, tão esquiva que sempre fui,

tão-somente morta não me escutaria.

   
  3.
 

Lia meu corpo confundindo-lhe as estações,

acertava caminhos sem vestígio algum,

atava-me e pedia licença para um beijo na fronte.

A todos os seus caprichos tornava-me compassível,

astuta e bela com uma língua a desenterrar-me recônditos desmaios,

em meu corpo concebia todas as táticas persuasivas do desejo,

tornava-me seu projeto inesgotável de luxúria:

o que sentes quando te toco bem aqui?

A voz de Lucíola vinha coberta de viagens,

tesouro acumulado no estampido de abismos,

voz de enigmas que duelam entre si.

Encontrar-lhe o corpo recusando o cativeiro da morte despedaçou-me toda:

o irmão lhe havia batido tanto,

eu quase podia ainda ouvi-la:

prova em meus dedos o sabor de tua ventura,

Lucíola escapando-me por entre frestas da inquietude.

Sabia fazê-lo,

preparar uma ceia de desvarios.

O corpo agora sem dissuadir-se da tragédia.

Tão quieta, impossível ser a mesma:

jamais quero ver a vida por uma última vez.

Lavo-me o rosto reconheço a idade de algumas rugas no espelho tenho andado a tomar vitaminas sinto-me cansada de mim…

Há rotina demais no mundo,

postos de justificação para tudo.

   
 

4.

 

Alcançar a penumbra que o leva até sua casa,

sombras mudas molestadas pela noite furtiva,

noite que não busca senão ausentar-se de si.

Um corpo ou outro a testemunhar apenas dor,

inflexível queda desfalecida na farsa do sudário.

Levamos conosco todos os corpos anunciados.

acompanho-me até o que pretendo venturoso:

acaso não andará Deus por toda a casa a tecer

uma malha de dilemas, excursão de angústias,

olhos plantados nas dobras insuspeitas do ser?

Quais vítimas ou mensageiros darão pela arte

o que ela presume ser a essência dessa vida?

Olhares desfigurados, sigilos de rara habilidade,

que estamos prevendo senão o que já vivemos?

 
 
  5.
 

Não sei o que diabos pode ter havido comigo,

talvez esteja apenas cansada de tanta perda,

vigiar a fadiga por vezes desorienta.

Os bastidores da agonia gozam de prestígios bem pouco originais.

Os amores que fui perdendo não me ensinaram nada.

Suplicantes generosas, não pude dar a elas muito de mim.

Não me foi fácil vir a ser a mulher que desejavam.

Necessitaria uma escolta de deuses para manter-me a mesma.

Mas haveria algum deles libertino interessado em meu ofício de indecisões?

   
  6.
 

Corpos transfigurados dissolvendo-se na própria dor,

visões abandonadas simulando um rumo distinto,

toda espécie de requintado divórcio entre ser & coisa,

imagens desvalidas,

braços púbis calcanhares,

o relógio da dor molestando o enigma rebentado dos corpos,

fragmentos casuais de Anete Lucíola Eugenia,

porções de terra divisadas no manancial da neblina…

Agarro-me a tais fatias como quem se entrega a um refúgio,

mas desprendem-se do nada,

são a complexão ilusória do vazio.

Vejo-me então com esse espólio espatifado de meus amores,

omoplatas carcomidas polegares coxas,

imagens destinadas à persuasão da agonia.

Rezo para que sejam alucinações.

Não são.

Precipitam-se como peixes importunos que extraem do mar toda sorte de profanações.

Não vejo mais nenhuma delas.

Apenas a feitiçaria desafiante dos bagaços de seus corpos.

A memória não pode ser a casa de ninguém.

Recolho alguns desses despojos:

mamilos devotos frontes perfuradas pulsos silenciosos,

são pistas de meu tormento,

guardam em si não o segredo do que vivi mas antes os vislumbres de um porvir sentenciado:

a memória lapida os pormenores da conseqüência,

prepara cadáveres para as honras mortuárias.

Sinto-me uma vítima de seu inesgotável capricho.

 
  7.
 

Um dia amei Eugenia amei Lucíola amei Anete.

O curso de uma vida secreta não teme senão o malefício do preconceito.

Somos todos devotos da normalidade,

uma sala de ruínas que guardamos como o bem mais precioso da espécie humana,

a plenitude sob custódia,

incorruptíveis os ofícios que orientam essa vigília,

pendentes as máscaras judiciosas quando acorremos à fidelidade do conceito.

Apenas a dor anima o homem,

a dor transfigurada na impostura da desforra,

qualquer que seja a condenação que celebre.

Na dissertação desse ofício haverá sempre um responsável pela minha dor.

Jamais serei eu mesma a culpada.

As mulheres que amei foram mortas por estarem com outra mulher.

Ninguém suporta a idéia de ser preterido pelo mesmo sexo.

Novos ofícios ambientados no jogo caseiro de ventura e desventura.

As três foram violentamente assassinadas:

Lucíola Eugenia Anete.

Devo agradecer que me tenham deixado viva?

 

 

 

Floriano Martins (Fortaleza, 1957, Brasil). Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige, juntamente com Márcio Simões, a Agulha Revista de Cultura. Criou e coordena o Projeto Editorial Banda Hispânica. Dirige, juntamente com Soares Feitosa o Projeto Editorial Banda Lusófona. Coordenou (2004-2010) a coleção "Ponte Velha" de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Atualmente coordena a coleção "O Começo da Busca" das Edições Nephelibata (Santa Catarina). Organizou algumas mostras especiais dedicadas à literatura brasileira para revistas em países hispano-americanos: "Narradores y poetas de Brasil" (Blanco Móvil, México, 1998), "La poesía brasileña bajo el espejo de la contemporaneidad" (Alforja, México, 2001) e "Poesía brasileña" (Poesía, Venezuela, 2006). Também organizou a mostra "Poesia peruana no século XX" (Poesia Sempre, Brasil, 2008), ao mesmo tempo em que foi co-responsável pelas edições especiais "Poetas y narradores portugueses" (Blanco Móvil, México, 2003), "Surrealismo" (Atalaia Intermundos, Lisboa, 2003) e "Poetas y prosadores venezolanos" (Blanco Móvil, México, 2006). Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Peru, Portugal e Venezuela. Trabalha ainda com fotografia, colagem e design, tendo realizado exposições e capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009) e do Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Eduardo Langagne e Pablo Antonio Cuadra. Autor de livros como O começo da busca. O surrealismo na poesia da América Latina (ensaio/antologia, Brasil, 2001), Tres estudios para un amor loco (poesia, México, 2006), Duas mentiras (poesia, Brasil, 2008), Teatro imposible (poesia, Venezuela, 2008), Sobras de Deus (narrativa, Brasil, 2008), Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América (ensaio/antologia, Venezuela, 2008), A inocência de Pensar (ensaio, Brasil, 2009), Fuego en las cartas (poesia, Espanha, 2009), Autobiografia de um truque (prosa poética, Brasil, 2010), Delante del fuego (poesía, México, 2010), e Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica (2 tomos, entrevistas, Venezuela, 2010).

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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