REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

 

Entrevista ao poeta Álvaro Alves de Faria, quando se prepara o lançamento do seu novo livro de poesia em Portugal, “Três Sentimentos em Idanha e Outros Poemas Portugueses”:

 

Álvaro Alves de Faria é, sem dúvida, uma das vozes mais conceituadas da Geração 60 da Poesia Brasileira. Autor de mais de 50 livros, que vão do romance às novelas, livros de entrevistas literárias, ensaios, crónicas, além de peças de teatro, incluindo adaptações de textos seus ao cinema. Recebeu inúmeros prémios, quer seja ao nível da poesia, do teatro ou do jornalismo cultural, onde já obteve dois Prémios Jabuti. Desde 1999, publicou oito livros em Portugal, sete de poesia e a novela, “Cartas de Abril para Júlia” (2010). Diz que veio para Portugal em busca da poesia que lhe falta actualmente no Brasil. Agora que se prepara, neste mês de Setembro, para editar em Portugal mais um livro, intitulado, ““Três sentimentos em Idanha e outros Poemas Portugueses”, é a altura ideal para lhe ter feito a presente entrevista, até porque como afirma no poema OCO: Tenho pensado em desatinos,/como por exemplo/matar todos os poemas/de todos os livros do mundo,/palavra por palavra,/sílaba por sílaba,/deixando só uma coisa oca no lugar,/o poema mais perfeito.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Agulha Hispânica  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
O Contrário do Tempo  
   
 

ÁLVARO ALVES DE FARIA

entrevistado por

JOÃO RASTEIRO

 

  Álvaro Alves de Faria                                                                  João Rasteiro

   
   
 

1.João Rasteiro – Álvaro, porquê e qual foi o clique ou imperativo que te levou nos últimos anos a publicar cerca de uma dezena de livros em Portugal, começando por esse belo livro “20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra”, agora que preparas nova publicação, com o livro, “Três sentimentos em Idanha e outros Poemas Portugueses”? 

Álvaro Alves de Faria - A história é longa, porque implica, também, em história da vida fora da literatura. Mas tudo começou quando participei do Terceiro Encontro Internacional de Poetas, na Universidade de Coimbra, em 1998, a convite de Graça Capinha, que havia me conhecido em São Paulo. Fui apresentado a ela pelo jornalista amigo Paulo de Tarso. Nessa época vinha juntando decepções brasileiras em vários setores, envolvendo o país como um todo, incluindo a Literatura e dentro disso, particularmente a produção de poesia. De repente, este país foi se afundando numa mediocridade assustadora. Os chamados suplementos culturais mostravam-se preocupados apenas em promover futilidades, inventando nomes de “poetas” da noite para o dia, nomes que desapareciam, também, do dia para a noite. A situação política também ajudou. Sempre fui um militante político. Sei quais os dissabores e desesperos que essa militância me trouxe. E diante disso, vivi a decepção de ver pessoas que traíram a própria vida e a própria biografia. Foi todo um conjunto de fatos que me levou a procurar a poesia que me faltava no Brasil. Isso aflorou definitivamente ao participar do evento em Coimbra e depois que dei uma entrevista ao poeta Floriano Martins, de Fortaleza, Ceará, para a revista Agulha, que ele editava com o poeta Cláudio Willer, de São Paulo. Em outras palavras dizia que estava partindo para Portugal, única maneira de continuar a ser poeta. No início isso foi levado como uma espécie de gracejo. Mas com o tempo isso mudou. Mergulhei na poesia de Portugal e comecei a produzir livros que nada tinham a ver com a poesia brasileira. É preciso ser, mas também fazer a ressalva das exceções, sem generalizar as coisas. Mas a poesia brasileira, de alguns anos para cá, tomou um rumo que poeta que se quer sério tem de ficar distante. E coloco sempre o jornalismo cultural nisso, porque é esse jornalismo que promove as maiores aberrações literárias deste país, um jornalismo feito por uma gente assexuada e sem compromisso com nada. Como me disse, certa vez, o poeta Ferreira Gullar: “Estou cansado de ler textos sobre Baudelaire escrito por gente que nunca leu um verso de Baudelaire”. E com o tempo, somou-se a essa decepção literária, a grande decepção política de gente traidora mesmo, gente sem escrúpulo algum, que passou a fazer exatamente aquilo que se combateu a vida inteira. Ou eu fugia da mediocridade ou me enfiava nela. Sempre fui um jornalista combativo. No Jornalismo ocupei todos os cargos que existem. Mas sempre me dediquei ao jornalismo cultural, à defesa do Livro, de escritores, de poetas, trabalho aliás bastante reconhecido. Mas eu sei o que essa verdadeira militância me fez sofrer. Então diante desse cenário desolador nasceu o livro dedicado a Coimbra e daí para diante nunca mais deixei de escrever poesia que tem Portugal ao fundo, meu pai Álvaro, que nasceu em Angola, de minha mãe Lucília, de Anadia. Foi quando então anunciei que não era mais poeta brasileiro, dizendo sempre que isso não tinha significado nenhum. O que não tem mesmo. Mas o significado disso está em mim. É o que me vale. 

2. J.R. – Frequentemente costumas aludir à linguagem da poesia portuguesa. Ela é assim tão diferente da poesia que se faz hoje no Brasil, e falo essencialmente da poesia do eixo Rio de Janeiro – São Paulo? 

A.A.F. - O famigerado eixo Rio-São Paulo é o que de pior existe neste país, onde vive toda a festividade em todas as coisas brasileiras, incluindo de maneira especial as artes em geral. O Rio de Janeiro continua a ser, digamos, a capital cultural do Brasil. Brasília é uma ilha cercada de corruptos por todos os lados. A capital política. A capital financeira é a Avenida Paulista, em São Paulo. A desolação maior da cultura está nesse eixo Rio-São Paulo, onde se cultivam as maiores inversões de valores. Onde se cultiva todo tipo de desonestidade. Tudo é uma grande festa inconsequente. Está nesse eixo o que de pior existe neste país. Aí está a raiz da mediocridade enaltecida pelo jornalismo cultural, com algumas figuras que dominam quase tudo, incluindo a universidade. O Brasil é um país que não tem ministro da Cultura há nove anos. Primeiro foi o compositor e cantor Gilberto Gil, mais preocupado com ele mesmo e acabou participando ativamente do movimento do Governo-Lula contra a liberdade de expressão, censura mesmo. A mesma censura da ditadura militar. De repente, Gilberto Gil estava lá defendendo ideias inadmissíveis em qualquer regime democrático. Saiu para cuidar da sua vida e ficou no seu lugar alguém de quem sequer sei o nome. Agora a ministra é Anna de Holanda, cujo único predicado é ser irmã de Chico Buarque de Holanda, que também já não vê as coisas como as coisas são. Colocou uma venda nos olhos. Respondendo, então, ressaltando sempre as exceções, já que sou chamado de radical. A poesia produzida no eixo Rio-São Paulo é um lixo. Só lixo. Nomes inventados, impostos de cima para baixo pelos senhores “donos” da cultura deste país sem rumo que, nos últimos anos, nas mãos de megalomaníacos, se transformou em um grande constrangimento para os que ainda conseguem pensar.     

3. J.R. – Tendo em conta essa tua posição, que poetas contemporâneos portugueses podem ter em correspondência com os poetas brasileiros, no que concerne a essa tradição lírica que de alguma forma inunda e quase asfixia a tua poética? 

A.A.F. Caro João Rasteiro, não sei porque você utiliza a expressão “asfixia”. Não asfixia nada, antes liberta a minha poesia da mediocridade reinante. Não quero citar nomes de poetas portugueses que possam ter correspondência com poetas brasileiros. Nem de poetas brasileiros que possam ter correspondência com poetas portugueses. Prefiro falar da poesia em si, não de nomes. Em Portugal encontrei a poesia que busquei a vida inteira. Nos poetas portugueses. Nos bons poetas portugueses. Pertenço à chamada Geração 60 de Poetas de São Paulo, que tinha com ícone Fernando Pessoa. Éramos cerca de 30 jovens praticamente saindo da adolescência com Fernando Pessoa debaixo do braço. E tudo começou com a “Antologia dos Novíssimos”, publicada pelo editor Massao Ohno, que faleceu recentemente. Vários desse grupo já morreram. Outros foram à vida prática. Hoje, tanto tempo depois, somos sete ou oito. Fica que tem de ficar. Depois dos anos 60, a meu ver, nada aconteceu, a não ser a “glória” cantada em verso em prosa por esse jornalismo indecente daqueles que fazem “poesia” negando a própria poesia, negando a própria palavra, negando o próprio poema. Mas são esses que reinam em tudo. Lembro o que me dizia sempre meu amigo poeta Roberto Piva, o que de melhor produziu a Geração 60 e que, infelizmente, faleceu há pouco tempo. Dizia: “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”.   

4. J.R. Álvaro, após dezenas de anos de poesia, outras tantas dezenas de livros de poesia e não só, como se posiciona então hoje a tua poesia, tendo em conta as duas fortes tradições líricas, de Brasil e Portugal? 

A.A.F.Não sei como se posiciona hoje minha poesia no panorama literário e poético do Brasil. Não sei e não me interessa saber. Recentemente, Graça Capinha falou sobre minha novela “Cartas de Abril para Júlia”, em um evento cultural na Universidade de Extremadura, em Cáceres, na Espanha, chamando-me de poeta luso-brasileiro. Por mim sou somente um poeta luso, porque não aceito essa festividade que vejo em minha volta neste país cada vez distante da seriedade. O Brasil não é um país sério. Eu sou somente um poeta. Não tenho interesse em saber como minha poesia se posiciona neste cenário melancólico da poesia brasileira, voltando a ressalvar as exceções, que existem, felizmente existem. Mas digamos que eu seja um poeta lírico e romântico do século XVIII. Acho que me cai bem.  

5. J.R. - Ainda assim, sendo tu considerado um poeta de corpo e vida inteira, houve uma fase, em que produziste excelentes textos em prosa, quer fossem de teatro, romance, novela, etc. O que te levou nos últimos anos a mergulhar, numa entrega total à utopia e ao sofrimento, praticamente [exceptuando o recente “Cartas de Abril para Júlia”], só nas entranhas da poesia?


A.A.F. - É que, na verdade, eu sou fundamentalmente poeta. Tenho vários romances publicados, especialmente na área social e um autobiográfico chamado "Autópsia", que se passa no período do presidente militar Garrastazu Médici. Uma história de violência e morte. Uma história que de alguma maneira, também, revela um certo comportamento da esquerda incompatível com a história. Assim também ocorre, por exemplo noutro romance, como "O Tribunal", que foi transformado em filme de longa-metragem com o título "Onde os poetas morrem primeiro". Tenho outro livro também transformado em filme. Fui o único poeta brasileiro que entrevistou Jorge Luís Borges, no seu apartamento, em Buenos Aires, na calle Maipu. Tirei 17 fotos dele, na sua poltrona preferida. Levei meses para conseguir essa entrevista, em Setembro de 1976. Até que concordou. Achei que seria recebido por, no máximo, meia hora. Mas não. O primeiro dia fiquei com ele seis horas. Ele me pediu para voltar no outro dia. Fiquei mais seis horas. Geralmente a gente vê Borges em fotografias em congressos, com microfones, essas coisas. Mas não dentro da casa dele. Só que encontrei um homem morto. Uma pessoa completamente destruída, sozinha. Que defendia com veemência a junta militar que, na época, governava a Argentina. Que defendia a ditadura no Brasil. Que criticava toda a América Latina e seus escritores. Que chamou Pablo de Neruda de medíocre. Que disse que a raça negra não serve para nada. Coisas assim. De volta ao Brasil, não publiquei a entrevista. Guardei-a por 25 anos, até se transformar no livro "Borges - o mesmo e o outro". O livro causou muita polêmica. E foi também transformado num filme chamado "Borges, o homem de olhos mortos", no qual um ator brasileiro faz o meu papel e um ator argentino faz o papel de Borges. Tenho três romances guardados. Mas continuo escrevendo prosa, como "Cartas de Abril para Júlia". Há também as peças de teatro, uma delas "Salve-se quem puder que o jardim está pegando fogo", que recebeu um dos maiores prêmios para teatro nos anos 70 -, o Prêmio Anchieta para Teatro. Mas quinze dias antes da estréia a peça foi proibida e ficou interditada por seis anos na censura federal. No entanto, sou poeta, especialmente poeta. 

6. J.R. – Ainda assim, que poetas contemporâneos, tanto em Portugal como no Brasil, mesmo não navegando propriamente nessa tradição lírica que tanto te alimenta, eventualmente tu aches que são algo de importante ou novo, nesse aterrador espaço, por vezes tão homogeneizado da poesia em língua portuguesa neste início de século XXI? 

A.A.F.Volto a responder que não desejo citar nomes de ninguém, para não correr o risco de ser injusto, esquecendo algum poeta que mereça respeito e consideração. Algo novo e importante, isso não existe na poesia brasileira. Eu sou um romântico do século XVIII, mas ainda não devidamente louco para fazer uma descoberta assim. Claro que existem bons poetas no Brasil que merecem ser chamados de poetas verdadeiros, aqueles que cultivam a palavra e a poesia. E se houver “espaço aterrador”, como você diz, esse espaço está no Brasil, no que diz respeito à literatura. Ninguém pode imaginar as manobras que se fazem aqui por trás das cenas literárias. E não pode ser diferente em um país que não tem ministro da Cultura há nove anos. E não pode ser diferente em um país em que o chamado ministro da Educação distribui para a rede pública de ensino livros de aprendizado da Língua Portuguesa que ensina e defende erros na Língua Portuguesa, isso tudo permitido por um país sem destino entregue a facínoras circunstanciais. O que mais tem no Brasil são pessoas circunstanciais, especialmente na esfera governamental. Aqui os grandes “poetas” são os compositores de música popular, alguns até chamados de “poetas” de uma geração. É muito subdesenvolvimento cultural demais para um país que é só um país, não é uma Nação.  

7. J.R. – Tenho escutado ultimamente, não sei se da tua boca, se do teu coração, primeiro, que já não és mais um poeta brasileiro e, mais recentemente, de que és um ex-poeta. Mas se assim é, como explicar essa tua crescente sensibilidade perante as tragédias e injustiças do mundo e, contrabalançando essa posição, continuares a publicar e a escrever poesia, quase como se o único alimento que te permite ainda olhar o mundo de frente fosse essa mesma poesia? 

A.A.F.Meu querido amigo poeta João Rasteiro, ainda escrevo cartas para algumas pessoas, só algumas. E sempre assino assim: “Álvaro, ex-poeta brasileiro, ex-poeta português, ex-jornalista, ex-tudo”. É beatamente assim que me sinto ao meio disto tudo, desta loucura, deste absurdo cada vez mais contundente. Deste crime. A sensibilidade é uma doença que tento ainda curar. Costumo dizer aos meus amigos que estou deixando de ouvir. Também estou deixando de falar. Também estou deixando de pensar. E uso agora óculos dos mais escuros que existem para também não ver. É assim que me quero. Sei que é impossível me curar deste mal. Cada coisa ao seu tempo. No tempo da ditadura tive dissabores sérios, os quais sinto até hoje na minha cabeça. O pavor. Editor de um suplemento cultural, o “Jornal de Domingo”, do extinto Diário de S. Paulo, sei bem o que é trabalhar com um censor da Polícia Federal sentado ao meu lado, dizendo o que podia ser publicado ou não. Sei bem o que é isso. Hoje digo sem medo de erro que as tragédias e as injustiças são iguais. E é isso que dói. Isso que dói. Isso que machuca. Isso que corta. Isso que sangra. De ver gente que se traiu em nome do poder, porque só o poder importava, o povo que se foda, o povo é só um detalhe, como disse certa vez uma ministra da Economia num Governo já distante que terminou em impeachment. Não mudou nada. A democracia implica em muitas coisas, haveres e deveres e, principalmente, honestidade. O povo continua a ser apenas um detalhe. Só um detalhe, mais nada, agora em mãos que manobram mais, muito mais, com desfaçatez. Para mim, ditadura de direita ou de esquerda é tudo a mesma coisa. Então arrumo sempre um jeito de participar do que ocorre, no que diz respeito a essas tragédias e injustiças. Na ditadura, fiz parte do Centro Democrático Espanhol, uma organização clandestina que existia em São Paulo. Desenhava cartazes para o verdadeiro Partido Socialista Brasileiro. Escrevia panfletos para movimentos clandestinos que funcionavam no que os ditadores chamavam de “aparelhos”. Eu era o subversivo do viaduto. Isso me custou muito. Hoje trato desses assuntos ainda no Jornalismo, escrevendo, falando e agora interpretando numa televisão da Internet histórias que escrevo sobre este país surrealista. Minha arma são as palavras e a ironia. Porque só sendo irônico mesmo. Às vezes apelo também ao cinismo dos personagens que tomaram conta de tudo, corruptos de todos os naipes. E no país dos corruptos não existe cadeia. Aqui reina a justiça dos três Pês. Justiça e cadeia só para Pobre, Preto e Puta. Num país assim, só posso me salvar ainda escrevendo. E publicando. A poesia que ainda consigo ver é, sim, o meu alimento para não enlouquecer de vez. É o que ainda me faz estar vivo.   

8. J.R. – Antes de entrarmos propriamente no teu novo livro, “Três Sentimentos em Idanha e Outros Poemas Portugueses”, como encarar essa tua revolta e desânimo, por um lado, com a poesia em geral e, especificamente, com a poesia brasileira, quando o poeta Álvaro Alves de Faria já ganhou o Prémio da Associação Paulista de Críticos de Artes para o melhor livro de poesia do ano, com “Trajetória Poética”, ganhou o Prémio de Poesia da Academia Paulista de Letras, também como o melhor livro de poesia do ano, com “Babel” e em 2008 foi integrado na Colecção Melhores Poemas, da Editora Global, que é o que de mais significativo existe na área da poesia no Brasil, isto para não falar em outros prémios que tens obtido, quer seja na poesia, no teatro, no jornalismo cultural, que te fez merecer dois Prémios Jabutis de Imprensa e três Prêmios Especial da Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo teu trabalho em favor do livro nos meios de comunicação. Que considerações te merecem este reconhecimento, apesar desse teu pessimismo evidente, isso não será algo contraditório? 

A.A.F.Não acho contraditório, não. Quando a coisa é séria será preciso admitir. O caos reinante vem do “baixo clero”, uma gente sem escrúpulo que infelizmente está em todo o lugar. Especialmente no Jornalismo. Por ser jornalista, eu sei bem como funciona isso. É preciso lembrar que os prêmios mais importantes – se é que isso tem alguma importância – são de outra época, dos anos 70 e 80. Os dois que você citou são mais recentes mas que tiveram como julgadores gente séria. Se depender do que existe aí seria uma lástima. É preciso dizer que são prêmios para os quais não me inscrevi. Os prêmios que me são gratos, mesmo, são os que recebi pelo trabalho exatamente no jornalismo cultural em favor do livro e do autor brasileiros. Isso eu trago comigo com certo orgulho, porque cumpri minha obrigação, fazendo um suplemento cultural absolutamente democrático, abrindo espaço até para os desafetos declarados. O que ocorre até hoje. A expressão “Geração 60 de Poetas de São Paulo”, por exemplo, ficou marcada porque nos tempos do Diário de S. Paulo eu escrevia todos os dias sobre a “Geração 60”, quando ninguém utilizava essa expressão para se referir aos jovens poetas de então. Todos os dias. Todos os dias. Todos os dias usando essa expressão até que pegou. E quando essa Geração completou 40 anos publicou-se uma antologia de todos os poetas, organizada pelo poeta Carlos Felipe Moisés e por mim, um documento literário. A antologia teve boa acolhida no tal jornalismo cultural porque ai não tinha jeito de sabotar. Você me fala em desânimo e até revolta diante de um cenário favorável que você deixa subtendido na sua pergunta. Não quero cenário favorável para mim particularmente. Exijo apenas respeito. A informação cultural séria e democrática ainda não chegou ao jornalismo brasileiro. Tem gente que no Jornalismo ainda anda com o Ato Institucional número 5 do regime militar debaixo do braço. É fascismo puro. Essa praga ainda não foi extirpada como deve ser. E participar da coleção “Os Melhores Poemas” representa de fato um reconhecimento de um trabalho honesto, sério, de quem, antes de tudo, respeita a poesia. Este país não merece os poetas sérios que ainda tem.   

9. J.R - Perante esse aparente desalento, mais do que sobre a poesia, mas sobretudo, pela impotência da poesia, perante este, ou estes mundos, que nos vão sorvendo cada vez mais, a pouca memória do que era o ser humano, o que dirias hoje a um jovem poeta, tendo em conta as suas compreensíveis aspirações, ou utopias, seja ele brasileiro, ou de outro lugar qualquer? 

A.A.F. - Diria que ele, como poeta fosse honesto com a poesia e consigo mesmo a vida inteira. O desalento se deve ao que eu vejo por aqui, nas plagas brasileiras, ressalvando sempre que existem as exceções. Que o jovem poeta se dê conta do que vai encontrar pela frente, porque a poesia fere, um ferimento que não fecha nunca. Diria a esse poeta, que ele acredite, sim, em todas as utopias. E que tenha a poesia como sua respiração.

 
10. J.R. – Álvaro, falemos então deste teu novo livro “Três Sentimentos em Idanha e Outros poemas portugueses”. Como surgiu, foi planeado ou te inundou e arrebatou sem que o pudesses negar?

A.A.F.Não, o livro não foi planeado. Como você diz, essa poesia me inundou e arrebatou. Fui convidado por Graça Capinha, em 2005, a participar das comemorações dos 800 anos de Idanha-a-Nova, ao lado de Vasco Graça Moura, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral e Fernando Aguiar. Encantei-me com a Vila na Beira-Baixa. Depois do evento, Graça Capinha organizou a antologia “As Pedras dos Templários”, com poemas dedicados a Idanha.

 

Já no Brasil escrevi os três poemas que dão nome ao livro. E a seguir percebi que não eram somente três poemas para uma antologia. Foi em Idanha que comecei a escrever o livro “A Memória do Pai”, o primeiro poema escrito na madrugada de 23 de maio de 2005, no hotel. Quando o livro foi publicado, fiz algumas dedicatórias, entre elas esta: “Ao meu pai, Álvaro, que nasceu no Lobito, em Angola, no dia 9 de Julho de 1914, e que depois de morrer no dia 23 de Maio de 1973, em São Paulo, Brasil, levou-me a descobrir Portugal, a começar por Coimbra. Àqueles senhores e senhoras sentados junto à porta de suas casas, no entardecer de um domingo, dia 22 de Maio, em 2005, em Idanha-a-Nova, entre os quais vi meu pai numa imagem que nunca mais vou esquecer, ali sentado entre eles, vestido com seu paletó azul”. Só depois me dei conta de que o primeiro poema foi escrito num dia 23 de Maio, data da morte de meu pai. Acho que isso pode explicar tudo. Depois de “A Memória do Pai” outros livros meus foram publicados em Portugal. Mas os três poemas estavam guardados a espera de se transformar também num livro, o que acabou por acontecer. 

11. J.R. – Porquê a recorrência à figura tutelar do pai, não só no poema com que abres este livro, mas em outros, tendo em conta que em 2006 publicaste em Portugal, pela Palimage, o livro “A Memória do Pai”? 

A.A.F.Meu pai me ensinou tudo. E eu não soube compreendê-lo. Só fui compreendê-lo depois que ele se foi. Desde então esse convívio tem sido constante. Sempre que estou em Portugal, meu pai está comigo, sempre em algum lugar. Vejo-o sempre. Foi assim que começou o primeiro livro que dediquei a Coimbra, quando, de madrugada, ao atravessar a Ponte de Santa Clara, vi meu pai junto a mim. Fui tomado de uma emoção que estava muito além de mim, de minha vida presente. Ao chegar ao hotel escrevi então o primeiro poema de “20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra”, onde descrevo esse fato. Claro que muitos estarão me chamando de louco. Mas eu quero dizer que sou mesmo louco, muito além de qualquer outra lucidez. Hoje meu pai é minha referência poética em Portugal. Sei que é difícil explicar coisas assim. Devo ao meu pai esta descoberta. Conheço tudo em Portugal, até os lugares onde nunca estive. Mas ao chegar nesses lugares tudo me é familiar, tudo me é conhecido, como se lá já tivesse vivido. Faltava-me isso para completar a poesia que faço agora, com minhas raízes, de meu pai, de minha mãe, dessa terra onde vive meu passado, outra vida.   

12. J.R. – Como vês esse “mágico” cruzamento entre a religiosidade e a cultura popular ou pagã, caso muito evidente nestas maravilhosas terras de Idanha e, como isso influencia a tua poesia ou, neste caso concreto, influenciou o(s) poema(s) “Três Sentimentos em Idanha”? 

A.A.F.Você utilizou a palavra certa, ao dizer “mágico”. Idanha é uma Vila iniciática. Para iniciados. Tanto que ela entrou na novela “Cartas de Abril para Júlia”, que é uma narrativa não somente literária, basta saber sentir aquela viagem do personagem dentro de si mesmo, em busca da mulher amada, a miragem de sentimentos que vêm de outros tempos, de outras existências. Idanha está lá, junto a terras portuguesas e espanholas, essas terras com gosto de espanto e descoberta. Desde que conheci Idanha ela vive em mim, a trazer-me a palavra que me falta para concluir um poema. Uma palavra para dizer a própria palavra. As pedras das palavras. As palavras das pedras. 

13. J.R. – Ainda nesta primeira parte do livro, no(s) poema(s) “Três Sentimentos em Idanha”, dizes na última estrofe que,  É preciso fechar o tempo como se fecha uma casa. Sentes que essa tua procura através da “poesia portuguesa” e, a afirmação é minha, aliás, num dos poemas dizes mesmo, Os cantares de poetas antigos cantam em mim como castanhas que ardem nas noites de frio, derivará precisamente do facto de a tua memória das raízes estar comprometida, uma vez que esse tempo que buscas com algum desespero, não foi fechado, pois não é possível fechá-lo?  

A.A.F.Não foi fechado e não se fechará nunca. Porque a vida, como a poesia, é isso mesmo, essa viagem que não termina, que não acaba nunca. Já os cantares de poetas antigos são verdadeiros, porque me habitam desde que nasci, desde o primeiro poema que escrevi com 11 anos de idade. Mas foi preciso esperar até o Encontro Internacional de Poetas, em Coimbra, para que tudo se revelasse como se revelou. Então os cantares dos poetas antigos portugueses se mostraram cada vez mais nítidos, mostrando-me o caminho a seguir, como uma peregrinação em mim mesmo, em busca das castanhas que ardem nas noites de frio, nas mãos da senhora da rua São Nicolau, em Lisboa. Nada acontece por acaso. Não existe acaso em nada. Não existe coincidência em nada. As coisas são como são. Este tempo de procuras nunca se fechará. Não há como evitar – e nem o quero – a poesia de Portugal em mim. Ao escrever um poema sem que eu mesmo queira, as palavras portuguesas vão tomando o espaço do poema, com seu ritmo, sua música e até rimas, aquelas que me nascem no poema de maneira natural, as rimas de Camões, a narrativa de Fernando Pessoa e tantos outros poetas de outros tempos de Portugal, aquelas palavras que eu ouvia no rádio quando criança, nos programas portugueses, os fados de Portugal, a saudade de meus pais. E eu ali, criança, ouvindo tudo aquilo sem saber nem imaginar o que me guardaria a vida mais à frente, muito à frente.  

14. J.R. – Porque é que cada vez mais afirmas não ser um poeta e como explicas a afirmação: Tenho pensado em desatinos,/como por exemplo/matar todos os poemas(…)deixando só uma coisa oca no lugar,/o poema mais perfeito? 

A.A.F.No fundo, no fundo, acho que o poema mais perfeito é mesmo o nada. O nada absoluto. O nada completo, concluído. Sempre me afirmo não ser mais um poeta, é verdade, por me deparar com que me deparo atualmente. Quero distância disso. Muita distância. 

15. J.R. – O que significa para ti, quer seja ao nível da tua poesia, quer seja ao nível do ser humano que procura essa memória de suas raízes, numa espécie de demanda órfica, esta bela cidade de Pedro & Inês, a quem também em 2007 dedicaste o livro “Inês” e neste livro, belos poemas como, Três Poemas Diante da Sé Velha, Em Coimbra, Santa Clara ou As águas do Rio

A.A.F.Significa minha existência inteira. Significa, sim, a minha própria memória. A memória da memória, como profere Graça Capinha. Esses três poemas que você cita fazem parte de mim, porque tudo começou em Coimbra. Essa descoberta ou redescoberta de mim começou em Coimbra. Há o Álvaro poeta antes e depois de Coimbra. Basta ler “Inês” para sentir onde chega minha poesia, o meu poema, a minha palavra mais veemente no que diz respeito à poesia de Portugal. É o despojamento completo. É a palavra inteira. É minha história. 

16. J.R. – Será que este livro já é um ponto de chegada, com tudo o que isso implica, uma vez que continuando a ter poemas que cantam Inês, Coimbra, Lisboa, Pessoa, etc, temas e figuras a que já dedicaste praticamente livros inteiros, fazes agora uma espécie de pequena viagem a Portugal, como que o abraçando e enlaçando de Norte a Sul, ao mesmo tempo que nos apresentas poemas, como os poemas Pátria, ou Dia 14, em que tanto poderemos conceber a desilusão perante o Brasil e a poesia brasileira, como poderemos conceber o malogro da procura através da língua portuguesa ou até, a derrota e a rendição [A vida não me valeu ou Penso matar-me na última palavra,/como se para salvar-me de mim ] perante  o malogro ou impossibilidade, da poesia?  

A.A.F.Não, este livro não é um ponto de chegada. É só mais um ponto de partida. Tudo de Portugal em mim, até as pequenas viagens, representam uma longa viagem. Os temas são decorrentes porque, no meu caso, a poesia me pede isso. Penso mesmo matar-me na última palavra. Mas não há derrota nem rendição. Essas palavras não me dizem respeito como poeta. Como pessoa é possível que seja assim, porque eu vivo num país perverso. Como cidadão já me rendi há muito tempo e aí sim posso dizer que a vida não me valeu. Hoje penso como escrevo num dos poemas do livro, que a vida só vale a pena quando a alma é bem pequena. 

17. J.R. – Como explicar a contradição entre os versos, Sou aquele homem que saiu para dar uma volta/ e esqueceu de regressar, quando o que constatamos é um permanente regresso do poeta Álvaro Alves de Faria, com a sua magnífica poesia, agora, mais uma vez, com este excelente “Três Poemas em Idanha e Outros Poemas Portugueses”, sem dúvida, um dos melhores e mais conseguidos livros que já publicaste em Portugal? 

A.A.F.Esse poema “Aquele homem” é hoje o meu retrato mais perfeito. É o que sou exatamente. Eu saí e esqueci de regressar. Mas esse esquecimento não significa se anular diante e dentro da vida e da poesia. Não sei se este livro é um dos melhores que publiquei em Portugal, mas tuas palavras significam um alento. Porque nessa poesia que ainda existe em mim, essa poesia de Portugal, é o que me faz ainda insistir. É o que me faz ainda seguir. Mesmo diante do que vejo à minha frente, pelo menos em meu país, a poesia destruída por alguns vândalos. Os vândalos estão em praticamente todos os setores da vida brasileira. 

18. J.R. - Para terminar, três perguntas, começando por uma mais do que clássica, que hoje se coloca cada vez mais aos poetas e aos que ainda crêem na poesia: para que serve hoje a poesia? A poesia já pereceu? Ou melhor, pois é tão poética esta palavra, a poesia “desviveu” definitivamente perante este(s) mundo(s) que o homem criou e que já não consegue submeter ao verbo? 

A.A.F.Eu também me pergunto sempre para que serve a poesia. Acho que não serve para nada. Se a poesia já morreu também não sei, mas sei que morre e renasce todos os dias. Eu respondo colocando aqui um pequeno poema chamado “Verbo”, que pertence a um livro ainda inédito: “Eu poemo/ tu poemas/ ele poema/ nós poemamos/ vós poemais/ eles poemenos”.   

19. J.R. – Álvaro, apesar de todo o sofrimento, mas simultaneamente deleite, não sei se compensação, que a poesia ao longo de décadas te deu, hoje, e pensando neste já distante “Sermão do Viaduto” e ainda com muitos poemas esperando a boca do sol, valeu mesmo a pena? 

A.A.F.Como é difícil responder isso, meu caro amigo. Como é difícil. Quando eu me lembro de “O Sermão do Viaduto” e tudo o que aconteceu depois, eu me pergunto diante do quadro atual: “Então, foi para isto?”. Eu me lembro de amigos que se suicidaram no medo e no pavor e me pergunto: “Então, foi para isto?”. Eu me lembro da angústia e das feridas, do sangue, da dor e me pergunto: “Então, foi para isto?”. Eu me lembro da solidão absoluta e me pergunto: “Então, foi para isto?”. Por isso não sei como responder, meu amigo. Ou talvez não queira responder, não para você, mas para mim. 

20. J.R. – Agradecendo desde já as tuas palavras, que gostarias de proferir ou proclamar e que não te tenha sido possível, por não te ter perguntado? 

A.A.F. - Acredito que tenha falado o que me foi possível falar. Na verdade, diante de um mundo completamente brutalizado, quase nada mais há a dizer. Mas eu insisto. Eu sou insistente. Eu ainda vou acordar.

 

 

 João Rasteiro

Coimbra, 21 de Agosto de 2011

   
 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria, poeta, escritor e jornalista brasileiro. Filho de pais portugueses. Seu pai, Álvaro, de Angola; sua mãe, Lucília, de Anadia. Vive em São Paulo, onde nasceu. Autor de mais de 50 livros, entre romances, novelas, livros de entrevistas literárias, ensaios, crônicas, além de peças de teatro. Mas é fundamentalmente poeta. Uma das vozes mais conceituadas da Geração 60 da Poesia Brasileira. No Jornalismo, desde jovem, sempre foi combativo, o que lhe causou sérios problemas na carreira. Editor de um suplemento cultural na ditadura brasileira, era obrigado a ter ao seu lado, no encerramento, um censor da Polícia Federal. Fora os assuntos políticos, sempre se dedicou, também, ao jornalismo cultural, com intenso e reconhecido trabalho em defesa do livro. Considera-se um poeta português. Por declamar poemas no centro da cidade de São Paulo, com microfone e alto-falantes, foi preso cinco vezes como subversivo. Escreve e interpreta sátiras políticas e de comportamento na TV da Rede Jovem Pan-SAT, (Rádio Panamericana) em São Paulo, na qual é também editorialista do Departamento de Jornalismo. Escreve e desenha uma história em quadrinhos que tem como personagem um passarinho, Pintim, no Portal da emissora. Assina o “Blog do Poeta”, no mesmo site, que já recebeu mais de 1 milhão de acessos. Vem publicando livros em Portugal desde 1999. Diz, veio para Portugal em busca da poesia que lhe falta no Brasil. Seus livros de poesia publicados em Portugal são: "20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra" (A Mar Arte, 1999), "Poemas Portugueses" (Alma Azul, 2002), "Sete Anos de Pastor" (Palimage,2005), “A Memória do Pai” (Palimage, 2006), “Inês” (Palimage, 2007), “Livro de Sophia” (Palimage, 2008), e pela Editora Temas Originais “Este gosto de Sal – Mar Português” (2010) e a novela “Cartas de Abril para Júlia” (2010). Este novo livro “Três sentimentos em Idanha e outros Poemas Portugueses” representa mais uma afirmação da poesia desse poeta brasileiro que, essencialmente, se liga à vida e à condição existencial do ser humano.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL