REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 11

 

           

JACOB KLINTOWITZ

Fuhro,

o biógrafo da solidão

 

 

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Maria Estela Guedes  
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Eu não diria que Fuhro e eu fomos companheiros na utopia. Nunca fomos tão solenes. Éramos amigos e, durante décadas, vejo agora, nos organizávamos em três rituais de convívio. O primeiro, era a conversava telefônica que se prolongava nas madrugadas. Ríamos muito. Talvez por falta de juízo. E discutíamos literatura, a nossa literatura, arte e comportamentos. O segundo ritual acontecia em eventuais viagens minhas à Porto Alegre. Esquecidos de tudo pela proximidade física e pela empatia lembrávamo-nos da nossa juventude gaúcha e de uma Porto Alegre expressionista colhida na nossa subjetividade.

O terceiro ritual tinha um caráter hierático e sagrado. No pequeno ateliê do Fuhro eu contemplava o seu trabalho. Um a um, com lentidão, de maneira demorada, ambos silentes, gravuras, desenhos, pinturas, eram mostrados e, às vezes, retornavam. Eu rompia o silêncio e falava sobre a nossa época, os rios subterrâneos da cultura e relacionava o seu trabalho com vertentes universais. Mais do que escolher uma corrente artística, tão voláteis, eu preferia identificar um sentimento que o unia às grandes personalidades. Para mim, Henrique Léo Fuhro era, e é, o artista que percebeu e registrou a perda da individualidade substituída pela função, como se pode encontrar na sua infindável série de figuras mascaradas.

E no movimento, no gesto de seus personagens, nas ações repetitivas, sempre a solidão, o homem abandonado de tudo, imune ao amor humano e ao amor divino. No começo, na sua bela série de bicicletas, tudo era perpassado em doce melancolia. Mais tarde, nada era tão explícito, mas entranhado nos gestos mecanizados e nos rostos funcionais sentíamos o ar desértico e a implacável prisão à que a humanidade se condenou. Armadilha e sem esperança.

A obra de Fuhro é construída numa técnica primorosa, severa, econômica.  A complexa visão do artista foi sustentada por meios adequados criados por ela mesma. Nos últimos anos o motivo dos instrumentos musicais tornou-se constante. Um novo personagem do artista. E uma metáfora de oculta doçura: é possível criar uma música para a vida, quem sabe um solo improvisado de jazz, música que ele tanto amou. O artista nos deixou fragmentos do nosso tempo. Improvisos fulgurantes de um solo que só ele podia executar.

Em julho de 1980.

A figura definitivamente fixada na sua pose hierática, na sua existência, multiplicada como um clichê que se usa infinitamente, como um carimbo, manipulada e utilizada, tornada reflexo no espelho, definitivamente gravada no seu instante de ação, a figura protótipo de uma época tão rápida, o clichê de uma figura observada à velocidade média de 80 km horários, a figura da figura, o clichê de uma imagem clichê. Entrar no mundo de Henrique Fuhro é simplesmente estar no mundo. O desenhista e gravador Henrique Fuhro é um sensível aparelho registrador, olhos e memória, percepção e mão, emoção e gesto. Um artista profundamente tocado pela realidade que, no seu caso, é composta de imagens repetidas, vibrantes padrões visuais, instrumentos de sopro, ornamentos. E, principalmente, é uma realidade composta de sínteses emocionais, retornos memorialísticos e organizações espaciais. O seu objeto de estudo é o contemporâneo e, no contemporâneo, o homem e os seus instrumentos. A visão de Fuhro não é a da arquitetura espacial, mas a da introspecção dentro da sensibilidade moderna.

Este, na verdade, os dois vetores do trabalho de Fuhro. A objetividade social e a reflexão através da figura. Objeto e introspecção. O estímulo do exterior e a meditação interior. Esta rara combinação é o que torna este trabalho tão particular. Há muitos anos que este artista organiza um universo feito de atualidade, o que significa fundamentalmente a organização da percepção e das imagens. Em sucessivos mergulhos Henrique Fuhro tem fixado estas imagens, mistura de percepção e síntese conceitual. Hoje ele se apresenta novamente e a sua preocupação filosófica e qualidade formal é a mesma. A diferença é, talvez, uma opção cromática de cores mais puras e um maior requinte gráfico. Certamente o mesmo artista e a mesma realidade: a figura definitivamente fixada na sua pose hierática, na sua existência, multiplicada como um clichê que se usa infinitamente, como um carimbo, manipulada e utilizada, tornada reflexo no espelho, definitivamente gravada no seu instante de ação, a figura protótipo.

 

 

Jacob Klintowitz (Brasil, 1941). Escritor, ensaísta, crítico de arte, editor de livros de arte, conferencista e autor de mais de uma centena de livros de arte e teoria de arte e comunicação. Entretanto, a parte ficcional de sua produção, uma constante, tem permanecido praticamente oculta. Três “livros de artista” em parceria com os artistas Sérvulo Esmeraldo e Diva Helena Buss; participação na antologia Quer que eu te conte um conto? (Editora Achiamé), organizada pelo poeta Vicente de Pércia; edição do livro de contos Intimidade (Editora Athanor), organizada pelo poeta e pintor Rodrigo de Haro; e a participação na Antologia de contistas Bissextos (LPM Editores), organizada pelo escritor Sérgio Faraco. Contato: jklinto@uol.com.br.

 

 

© Maria Estela Guedes
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