REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 11

 

a arte fica/ o comentário petrifica
Ruy Belo

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA

Cidadeverdades

 

Crónica dos tempos de antanho,
do júbilo e do ressentimento

(Prosopoema de Erasmo  Cabral de Almada)

EXCERTOS

 

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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In memoriam de Caló,
amigo de infância e malogrado louco predilecto da cidade

                                        À memória de Evaristo de Almeida,
Eugénio da Paula Tavares,
Pedro Monteiro Cardoso, Amílcar Lopes Cabral
e Abílio Monteiro Duarte

                                        A Danny Spínola, Jorge Carlos Fonseca e Osvaldo Azevedo

 

Às vezes (e foram as vezes todas

que perfaziam as tuas horas sóbrias e hirsutas,

e foram as vezes todas que refaziam o tédio

e a solicitude das tuas horas inglórias e convalescentes),

convencias-te que o destino te perseguia.

Ou que, prosseguindo os aturdidos caminhos da noite,

enredado nos inclementes trilhos da insónia,

perseguias o destino, o teu, da tua imaginação

de irremediado desertor do quotidiano.

Meditas nisso num turvo momento de lucidez, numa contra-vez em que, reduzido a um silente espectro na contra-luz das tuas habituais deambulações de fervoroso subvertor da ébria rotina das noites (noites sonâmbulas, noites incandescentes

noites noctívagas, noites insanas, noites insaciadas de vate

noctâmbulo, noites abstémias de boémio radicado

na abstinência do ritmo e da dança, noites veteranas

de inveterado observador dos fosforescentes fedores

da noite, noites entrecortadas da disforia

das palavras, noites insólitas afogadas

entre seios roxos rouxinóis),

nem sequer sentes o teu corpo.

Aliás, em que, mais do que nunca, te sentes todo e inteiro, sentindo-te guilhotinado e aterradoramente desprendido de tudo, pressentindo-te exangue e entregue ao corte total entre a cabeça e o torso, e o resto que se lhe segue, entre a mente e a táctil sensibilidade da ausência, entre o cérebro e as réstias que rastejam na corpórea substância da solidão jazendo com os resquícios da noite, entre a lucidez e a comiseração, entre a comiseração e a vergonha.

E a vergonha. A vergonha de ontem teres de novo escutado o louco predilecto da cidade, desta feita numa encenação da sua peça dilecta (um grande comício vociferando aos ouvidos imaginários de uma multidão entusiasta e ululante) perante a consternação dos transeuntes do quotidiano, os tais, diurnos e redivivos, de carne em riste e vísceras urbanas alquebradas, a alma cabisbaixa, os ossos apressados e indiferentes.

Segredas-me em tom quase alucinado, numa gesticulação tão atípica em ti quando em estado de amorfa e remordida lucidez (ou quando em latente estado de letargia e onirismo poéticos, como, afagado pela auto-ironia, preferes descrever-te), que, com os seus andrajos e o seu olhar felino e predicativo, discursou o louco predilecto da cidade sobre verdades muito visíveis:

para começar e a condizer com os vultos colados à esquina mais próxima, como de costume sintonizada com a fala do louco predilecto da cidade e simétrica à nitidez das palavras da sua intervenção,

o desemprego galopante como, aliás, sempre foi desde os tempos dos libertos, então, e a um tempo, eufóricos com as cartas da sua futura alforria e estupefactos com as correntes de suor prendendo a exaustão dos seus dias laboriosos e o amargo far niente da miséria desocupada e ostracizada dos pretos forros, chamados vadios porque renitentes à escravidão, ao branco estalar do chicote, ao senhorial olhar vingativo dos armadores, dos missionários, dos latifundiários, dos contratadores do sal, da urzela e do infortúnio, dos mercadores da grilheta e da cativa nudez dos músculos retesados presos à cruel ganância do tronco, dos traficantes dos rostos vencidos e humilhados, expostos na marmórea frigidez do pelourinho, e de outros administradores da fé, do império e da relutante fortuna das ilhas, da escassa sorte do arquipélago de lendárias e mortíferas secas cíclicas, em suma, estigmatizados como vadios, afrontados como homens vagos, vagabundos, vagamundos porque resistentes contra o desalento da clausura escravocrata, contra a vida minguada na servidão das plantações, das salinas, das escarpas e planuras agro-pecuárias, dos pináculos dos abismos germinadores da urzela e do anil, os nervos soterrados sob a subjugação do feudo, da gleba e do morgadio.

 

(E interrompes-te e ficas meditando nesses negros fujões dos primórdios das ilhas, desses tempos perdurando perdidos nos tempos todos do cativeiro escravocrata, ficas matutando nesses incansáveis fugitivos e nas suas cabeças de alcatrão colocadas a prémio sob a mira dos capitães do mato, e de outros renegados irmãos de raça, e de outros mercenários da traição e da perfídia, ficas prensando a memória nesses ávidos construtores de distantes, aguerridos e sempre periclitantes quilombos e/ou de solitárias casas de pedra e palha nas cumeadas enevoadas das montanhas húmidas de desassossego.

Ficas cogitando nessas acossadas criaturas de deus votadas ao desprezo da cruz e da espada erigidas tais rígidos e inamovíveis padrões sobre as faces tementes das ilhas próximas e longínquas e os ínvios risos das cidades, das vilas, das catedrais, dos portos e dos sobrados, ficas reflectindo sobre o destino agreste calcorreando as faces escuras desses homens, mulheres e crianças de todas as nossas ilhas então habitadas, depois transmutados em badios e circunscritos ao vitupério e às pragas que debalde quiseram fulminar a grande ilha e as suas estátuas de chuva, e as suas colinas azuis, e as suas árvores grandiosas feitas templos e imponentes monumentos vegetais, almejados esconderijos dos ancestrais signos da rebeldia e da meditação, e os seus bustos de pedra reclinados ante os santos da tabanca e os destemidos espíritos das intempéries, e as suas batinas pretas procriadoras da gula, da erudição e da monogamia para clérigos e leigos, para todos os seguidores da consigna bíblica “crescei e multiplicai-vos como manda a vontade de nosso senhor deus, o todo poderoso, o afectuoso, o misericordioso”, e as suas preces refugiadas nas rezas dos rebelados e dos seus passos proscritos, íntimos dos caminhos de cabras, foragidos dos pontos cardeais e de outros luzeiros postados sobre as estradas recém-inauguradas pelas relinchantes rodas coloniais da civilização, pelos pés compenetrados das procissões, pelos corpos dançantes das multidões em romaria.

Ficas pensando nesses negros e mulatos rebeldes de olhos faiscando como os olhos azuis, loiros e insurrectos de nhô ambrósio – depois abençoado mestre ambrósio, depois sagrado mulato ambrósio, depois consagrado épico capitão do povo das ilhas e das suas revoltas contra a carestia e os especuladores do milho e do petróleo escassos -, e da sua negra bandeira da fome deixada intacta, enterrada na alma das ilhas e do seu bardo predilecto depois da sua deportação para as longes terras do africano ultramar dominado e ultrajado).

[...]

 

 

Saudoso, ficas recriando as paisagens altas e enevoadas da serra malagueta, enamoradas das chãs de achada falcão, das detalhadas fracturas da infância do filho de nho juvenal cabral, da sua precária, conquanto sã e nobre genealogia, da sua casa-grande, do seu amplo quintal de debulha do milho, do feijão e de outros cereais das colheitas de novembro e dezembro, da sua terra vermelha circundante do remanso e da alegria das águas de fonteana, das suas árvores de fruto sinalizando os infalíveis cronogramas da vida e da morte, dos seus passeios guarnecidos de acácias rubras, de floridos cardeais e buganvílias, das suas criaturas colectoras das purgas das plantas e do destino, das suas oleaginosas acossadas pelos machins dos moços de sedeguma, pelas facas dos homens de tomba-touro, pelas pedras das crianças do birianda, pelos machados das mulheres de ribeirão manuel, dos seus arbustos assediados pelos órfãos esfaimados das colinas de cruz grande.

Indefectível, ficas emoldurando o percurso islenho do menino de sua mãe, do seu corpo pudico emaranhando-se castanho-escuro às lembranças do verde imprescritível da sua bafatá natal, da densa vegetação da sua outra terra amada, da foz do geba, dos seus músculos atletas movendo-se nas ruelas insalubres de ponta-belém, das suas pernas ganhadoras campeando nos poeirentos campos de futebol dos subúrbios da cidade da praia, das suas mãos amorosa da máquina de costura e dos dedos fatigados, crepusculares de nha iva, dos seus olhos cultivados nas lentes tímidas, renegados pelos enfatuados companheiros das lides literárias embrenhados na dissecação dos cadáveres de odes e sonetos, na explanação dos males da terra abandonada pela rima e pela grandiloquência dos velhos vates das ilhas, erodida pela incúria, pela ignorância e pela desflorestação, da sua pupila marítima alongando-se prolífera pela baía vazia de barcos e de carvão do porto grande de san vicente, pelas distâncias do vasto mundo defronte, pelas rotas conducentes aos templos do saber da capital do império, ao clandestino tirocínio da lisboa insubmissa, às cicatrizes abertas das terras do alentejo, à dor calada, implosiva, dos trabalhadores das plantações de angola, às fainas agrícolas, às memórias guerreiras dos camponeses da guiné, às indagações universais do lato mundo alado em mudança

Solícito, ficas moldando o rosto recto de amílcar debruçado sobre as límpidas nascentes de txororó, depois acabrunhando-se enlutado sobre as memórias destroçadas das muitas vítimas das as-secas, das inúmeras fomes e mortandades, depois definhando-se enluarado sobre as valas comuns da década de quarenta, depois erguendo-se palavra plena repleta do cerimonioso silêncio dos campesinos de txuba txobe, da solenidade metafórica dos anciãos das aldeias de achada-além e águas belas, da sombra ínvia dos lavradores do colonato de chão bom e das vozes metropolitanas contestatárias aprisionadas na colónia penal vizinha, na reclusão do campo de concentração do tarrafal, da dúbia desmesura dos seus murros e desalentos caiados do branco da sua reputação de campo de morte lenta repercutindo nos tempos abafados em receio, nos tempos recheados de silêncio.

 

Eufórico, ficas revivendo os dilatados tempos da circunvalação da ilha maior, da circum-navegação das suas íngremes estações, das suas estradas imprevisíveis construídas sobre a visibilidade da afronta e do desaire, do desastre iminente, e os verdes desfiladeiros de figueira das naus e figueira muita, dos tempos serpenteando com as gentes do planalto da assomada, do fundo dos engenhos, das angras da calheta de san miguel, das hortas de santa cruz até às portas abertas, escancaradas do presídio do tarrafal e à aparição das suas efígies heróicas, das suas silhuetas atónitas, libertas para o regaço das multidões entusiastas, das suas vestes talhadas para a urgência dos tempos de acolhimento do sangue e do coração de amílcar, dos seus tempos da nova largada das ilhas, dos seus tempos do definitivo enterro dos mitos passados, persistentes, coloniais, dos seus tempos da reafricanização dos espíritos, da profusão da súmbia, do bubú feminino, da sulada, da babalaika, dos panos da terra, das camisas djila, dos penteados afros, das barbas densas e irreverentes e de outros inconfundíveis sinais do reencontro com o rosto escuro, aberto, descoberto das origens desde há muito sonegadas, dos tempos grunhos ritmados pelo batuco e pela incandescência dos cabelos crespos, arredondados para a dimensão da dor do mundo e da controvérsia, tais negros algodoais crepitando rebeldes sobre as ruínas dos tempos outros, latifundiários, das palavras finas, mofinas, das expressões mercantis, do verbo timorato, da pátria antiga agónica, renegada, da longínqua pátria peninsular, remordendo-se no despertar da nova nação lusitana, convulsiva e sonhadora, em abril pluviosa, em maio solidária, em setembro esperançosa, em novembro sorridente.

 

Entusiasmado, ficas rememorando os celebrados tempos juninos da irruptiva eclosão da história, dos seus profetas e mártires, dos seus filhos dilectos, pródigos de razão e valentia, dos seus míticos heróis regressados, abraçados ao ritmo esfusiante das ruas fervilhantes de slogans e protestos, da explosão da alegria no reencontro com as pombas da tabanca, com o saracoteio dos seus olhos gratos, com o frenesim dançante, lascivo e não mais pecaminoso das ancas no colá sanjon, com os pilões ecoando as chuvosas gargalhadas do milho e do tambor nos soçobrados alicerces do sobrado e do morgadio, nas fissuradas faces da branca ganância deglutindo a lava e o café, com o desmedido orgulho da ostentação das faces crioulas, nossas, diversas, dos cabelos muitos, sumptuosos, das gentes das ilhas, com a devassa dos labirintos da amnésia e da ocultação do nosso tetravô africano, escravo insulado entre o mar e a terra, desterrado entre a nau das américas e a cana-de-açúcar das ilhas, expatriado e deslocado entre a nau catrineta e a infinita pescaria do amargor da humilhação, da sua tristiose curtindo-se à beira dos funcos e dos casebres de pedra e palha, dos seus irmãos de raça e desgraça, das suas angústias, dos seus inaudíveis lamentos, das suas saudades da casa paterna, longínqua, devastada na terra firme africana, para nunca mais perdida, dos seus levantes, da sua inicial e renitente comunhão com a terra insular árida e exaurida, da sua exumação na sua nova mátria madrasta, dele e dos sus rebentos negros e mulatos, dele e da sua amada, arredada do seu aconchego na esteira de palha para o desvario da luxúria do clã dos seus senhores, dele e dos filhos negros e mulatos do ventre das suas companheiras da dor e da intemperança.

 

Comovido aprendiz, ficas cultivando os castanhos nutrientes do sol e da substância do mundo, do nosso cabo verde de esperança, da terra retornada às fontes da desidratação do ser, intentando afastar-se da distância e do mar gentio da terra-longe, esparramando-se pelo júbilo e pelo canto chão dos trovadores, dos poetas populares, dos vates de intervenção social, pelo redondo metaforismo dos desvendadores dos herméticos códigos da subsistência e da floração do verde sobre a cabeça calva de deus, da árvore e do tambor, do pão e do fonema eclodindo no cântico do habitante, embevecido com caboverde, amadamente em construção, com o seu povo de notcha, com os seus sentidos letrados no crioulo, com as suas gestas, com as suas crenças, com os seus pastores, pescadores e catraeiros, com as suas panelas de milho vermelho, púbere, raríssimo, com os seus alguidares de milho branco, importado, molhado de véspera para o cuscus e o prazer da vizinhança, com as suas crianças castanhas, negras, brancas, crespas, frisadas, loiras, pétalas da mesma flor arquipelágica, com as suas frágeis auréolas de cordeiros de deus, com as suas confissões afinadas nas noites livres de áfrica, com os seus sons revirando-se com as alvíssaras das folhagens de setembro e das novas conjunturas divisadas germinais nos traiçoeiros tempos de outubro, nos incertos dias de novembro, nos chuvosos dias de janeiro batendo no portão das nossas ilhas.

 

Surpreso, ficas planando sobre os rostos de repente crispados, sobre as bocas de repente amarguradas dos antigos companheiros do militante número do nosso partido e a sua nunca acabada rememoração dos incomensuráveis sacrifícios consentidos na nossa longa e gloriosa luta armada de libertação nacional, as muitas façanhas praticadas na frente político-diplomática, na logística da guerra e das zonas libertadas, na guerra de guerrilha de longa duração levada a cabo conjuntamente com a força física principal da luta constituída pelos bravos combatentes da guiné-bissau.

 

Convicto, ficas dissecando todas as outras arroladas provas da genialidade político-estratégica do princípio da unidade fundado nos laços históricos e de sangue e na duradoura comunidade de aspirações entre as populações da guiné e de cabo verde,

na permanente comunidade de interesses estratégicos dos dois territórios africanos submetidos à multissecular dominação estrangeira do mesmo poder colonial bem como na sua complementaridade geo-económica tanto no período colonial como na actualidade dos dias das nossas vidas e das vidas futuras das gerações vindouras com vista ao seu desenvolvimento acelerado e auto-sustentado,

 

Convencido, ficas desencobrindo todas as provas, genuínas e cabais, na prática comprovadas, do princípio da unidade guiné-caboverde solidificado na aliança fraternitária e na luta comum encetada com o povo heróico do país irmão na busca, aliás, coroada de total e inequívoco sucesso, da nossa vocação para a plena soberania política e do nosso destino africano, livremente escolhido pelo povo das ilhas, sob a esclarecida direcção do nosso glorioso partido e do nosso líder imortal, barbaramente assassinado em desespero de causa dos agentes do imperialismo e do exército agressor, ocupante de uma pequena parte do solo sagrado da nossa terra firme da guiné e das ilhas de cabo verde, a mando das forças mais retrógradas e obscurantistas do colonial-fascismo português, conforme rezavam os obituários, os elogios e orações fúnebres, os cartazes dos activistas ocidentais da solidariedade anti-colonial, os comunicados de guerra lidos na rádio libertação.

 

Consternado, ficas pesando as faúlhas das pelejas, a sua estranheza entranhada na insondada história das nossas ilhas crioulas afro-atlânticas, consciencioso ficas sopesando as cores ouro-verde-rubras da repulsa do eventual vitupério, da desesperança na balança das mitologias e dos seus sumo-pontífices, das suas dissensões, das suas desnorteadas geografias, das suas trocas de palavras inflamadas, demolidoras, das suas antigas raivas desenterradas desembocando difamatórias nas silhuetas dos rios atiçados de ódio e de ressentimento navegando nas praças repletas de regozijo e alegria, atingindo caluniosas os rostos pardos das ribeiras envoltas em pranto e remorso, revolvidas em alívio, em gratidão e orgulho sussurrantes, devastando as efígies dos guardiães dos cemitérios, dos coveiros das contemporâneas ossadas dos comandos africanos, e de outros vilipendiados mercenários da pátria lusa, e de outros sofisticados guerreiros aliciados pelo fúnebre odor do sangue e da impunidade, e de outros supostos colaboracionistas do mais velho e obsoleto dos impérios coloniais, amaldiçoados pela veemência da derrota, sua e dos tempos dos gritos desventrados das mulheres grávidas de pano preto, sumariamente executados em praça pública, no sigilo dos matagais, na inconfidência dos cárceres nauseabundos, e de outros pronunciados fautores da discórdia e do morticínio fuzilados, sem o processo penal devido, sem julgamento prévio, por deliberação unânime do conselho executivo da luta do partido, sufragada pelo conselho superior da luta, aplaudida pelos militantes do partido dos vencedores da guerra na nossa terra da guiné, ainda em estado de prevenção, e de outros estropiados congeminadores do dissídio e do litígio, e de outros conspiradores implicados no bárbaro assassinato do nosso líder imortal, e outros actores de reiteradas tentativas de invasão e de derrube do nosso regime progressista a soldo do imperialismo internacional, e de outros beneficiários das comutações das penas de morte em penas de prisão perpétua em razão das políticas de clemência e de recuperação do homem propugnadas pelo nosso partido, e de outros perpetradores da desunião das fileiras cerradas do nosso povo em luta, uníssono na implementação dos altos e generosos ideais do nosso partido elaborados pelo nosso saudoso líder para a concretização da justa aspiração do nosso povo à construção da paz, do progresso e da felicidade para todos os seus filhos nas nossas terras africanas da guiné e de cabo verde, nos termos dos noticiários radiofónicos captados no país irmão e reproduzidos ipsis verbis nos jornais nô pintcha e voz de povo.

 

Calado e apreensivo, ficas perscrutando as faces enrugadas dos comandantes islenhos retornando às agruras dos tempos impacientes da luta político-militar conduzida em terra alheia, irmã, alongando-se ditirâmbicos sobre os tempos da pacatez e da legendária morabeza das ilhas,

 

Compreensivo, ficas contemplando as vestes escuras preventivas dos antigos combatentes e comissários políticos, exilados em terras estrangeiras, hospitaleiras, treinados e fortalecidos entre povos amigos, aliados, acolhidos e ajuramentados ante a continência da mão generalíssima de amílcar cabral para a aventura da operação esperança, do aguardado desembarque armado nas nossas ilhas do meio do mar, para a eventual disseminação de focos guerrilheiros entre os camponeses da serra malagueta, do topo da coroa, do monte gordo, da chã das caldeiras, depois traídos pela denúncia desertora de um antigo companheiro recrutado pela polícia política colonial-fascista, depois mobilizados para a inexorável fraternidade de armas, sangues e idiomas com os heróicos combatentes da guiné ex-portuguesa,

 

Compassivo, ficas intentando pôr-te no seu lugar heróico, todavia trágico e solitário,

e injectar-te da turbulência

das suas máscaras abandonadas aos auspícios da defecação do secreto fel das sonegadas estórias da história, da desinibida exposição da vileza e do pus dos tempos, das incicatrizadas feridas das tardes de ziguinchor,

dos seus nervos desiludidos vindos de conacry, das suas gestas e gentes solidárias, das suas díspares intentonas, das suas inúmeras inventonas, das suas noites torcionárias, dos seus dias fúnebres, das suas pressas carcerárias, dos seus torturados silêncios, dos seus persistentes rumores deambulando pelas esquinas das ruas, explodindo na sua eterna noite de pranto, ainda carpindo, voraz e retrospectiva sobre as sombrias instigações ao genesíaco fratricídio, à deicida vilania, ao horror homicida, de amílcar tombando, de abel djassi dando-se em sacrifício na noite de conacry, de amílcar três vezes baleado, de amílcar por três vezes se redimindo da alheia falta na nocturna mesa das macabras celebrações, na tardia indigestão dos comensais do azedo pão da ignomínia, de amílcar cabral transfigurando-se em moisés negro da vara sagrada dos mandamentos da dignidade, do inesgotável manancial da liberdade, da terra prometida gizada, não mais repisada pelos pés lavradores dele abel djassi, não mais gozada pelas mãos generosas dele amílcar, não mais tocada e acarinhada pelo corpo verdejante dele abel, da terra prometida antevista, dele amílcar abel por três vezes instituindo-se chama fraterna, inextinguível, da veracidade dos tempos premonitórios dele, isaías revelando-se nas palavras proféticas dele cumprindo-se nos estalidos letais das cápsulas da morte dele, de abel djassi dando-se em holocausto ante o sacrilégio do kaifás kani pilatos da expurgação do emanuel nosso, do messianismo dele amílcar, cristo negro dos rebelados de santiago entre as mãos irresolutas do caim da ocasião propícia, repelente, irrepetível, repetida entre os lábios do judas cani do momento comprado, com o perdão e o beneplácito dele, amílcar das cordas insolentes do desencapuçado e frustrado captor, do fatigado monóculo, da delinquente proficiência, da espancada delação frutificada com o fascínio do amo e senhor carcereiro entre as sombras muradas do tarrafal de caboverde, rejeitados, dos tortuosos caminhos que navegam amarrados de conacry a bissau rejeitados, da forca simbólica, do impávido gume do infinito vilipêndio aguardando nas calçadas amordaçadas da capital do império agónico rejeitados, das multidões ignaras ululando sobre as pedras frias do rossio de lisboa rejeitadas, da rejeitada evidência da nova nobreza e da plebe de sempre, da canalha toda rindo-se do corpo enforcado do rei da ilha de santiago, do orgulho capturado, dos olhos atónitos do rei vátua exilado numa ilha das imediações das batalhas libertadoras do marechal negro tricolor encarcerado na bastilha escravocrata, das cadeias tenebrosas, do cárcere cerimonioso, da coroa de espinhos traiçoeiros rejeitados prefigurando a paixão dele, amílcar, vertical na honra e na ternura, radical na observância dos princípios, aceso na recusa do rebaixamento dele, amílcar oferecendo-se cristo negro à polvorosa cruz, ofertando-se à lança asfixiante de inocêncio kani, momo touré, aristides barbosa, abdulay ndjay e outros vivos mortos, e de outros futuros mortos morridos, irrecuperáveis para o panteão da pátria, inermes para a história, todavia salvos para o limbo, para os ignóbeis resquícios, para a pequenez dos sinistros rodapés do paradoxo conspurcando o memorial das criaturas valorosas, todavia irreparáveis para a inocência, dele, amílcar traído e interpelado pela raivosa impotência de antigos companheiros de armas aliciados pela parva moeda da ambição, desmesurada, de uma pátria vil e pequena, mercenária, adulterando a paixão dele, amílcar entregando-se à eternidade das cores ouro-rubro-verdes da bandeira da unidade e luta, da estrela negra tremeluzindo, futura e opulenta, nos céus soberanos da guiné e do cabo verde dele, abel djassi, cristo africano erecto agonizando em conacry, para a redenção dele, amílcar cabral, flor defumada em lume de ouro, riso perfumado na prata e no incenso do odor das estrelas da liberdade no seu canto cativo da glória, na perenidade da palavra justa, imorredoura dele, amílcar cabral estatuindo-se morto imortal, possuído pela paixão de uma pátria à medida inalienável da dignidade da pessoa humana, à imagem e semelhança dos homens, africanos livres do sonho libertário dele, abel amílcar djassi cabral, da casa e da semente fecunda de juvenal cabral, da genealogia das gentes dos reis borges de achada falcão de santa catarina, do parentesco dos costa lopes dos engenhos, da raça negra heróica do nome denunciando em londres os indescritíveis desmazelos da vil condição de colónia, ressuscitando com o corpo indómito do primeiro combatente caído em tite, para sempre comandante rui djasssi, da gerada luminosidade da família cabral, gerando-se nome único, criando-se nome singular, dele da generosidade do umbigo enterrado com o verde dos mangais de bafatá da primeira infância em terra firme africana, dele da segunda vida repleta cobrindo-se do verde mar das ilhas, dele maravilhando-se com os cajueiros da plena maturidade no mundo dele, da fecundação do abraço materno da terra natal dele, engenheiro da lavra e dos sonhos das gentes dele, da universalidade nos augúrios fraternos dos povos combatentes deste vasto mundo, dele dos tempos todos do simples africano que quis saldar a sua dívida para com o seu povo e viver a sua época dele, da ampla e nominada descendência de príncipes, reis e imperadores guerreiros africanos, de chefes resistentes ilustres, tais aníbal barka, amílcar barka, samory touré, abdel kader, al mahdi, meneliki, shaka zulu, dele da fertilizada camaradagem de sábios e locutores de todos os recantos da palavra incisiva e libertadora dele, da inexpugnável irmandade com a humilde e anónima humanidade, toda e inteira, dele do aquoso carinho materno de iva pinhel évora e do seu umbigo semeado em godim da ilha de santiago do sotavento caboverdiano, de apelidos tracejados nos areais da ilha pastoril da boavista do barlavento caboverdiano, de suor derramado nos trabalhos e nos dias de bafatá, praia, san vicente e bissau, dela a um tempo eva e maria, mater dolorosa da pátria e da pietá, do seu folhoso regaço, doravante vazio, das suas vestes lenhosas, ainda lacrimejando na noite de conacry, dos seus fantasmas emboscados, ainda redivivos, dos seus dias albinos, dos seus deuses despigmentados, das suas gentes chorosas, alvas nas túnicas brancas do luto e do estádio lotado, nas exéquias e em outras cerimónias fúnebres do menino da sua mãe iva, na purificação do menino da sua mãe-terra, guinécaboverde, do menino chorado pelos meninos do chão natal das suas duas mátrias, do menino velado pelos meninos da sua mãe de criação, a terra toda e inteira de todas as criaturas humanas, das cabras, dos touros e das panteras, de todos os seres vivos, das pedras e das pombas, de todos os seres inertes e rumorejantes, do menino em conacry caído, na sua noite atordoada, nos seus tumores ainda corroendo-se nas intrigas políticas, nos golpes palacianos, nas diurnas e nocturnas execuções sumárias, nas soturnas eliminações físicas, na sempre tempestiva excomunhão de adversários políticos e inimigos ideológicos, na abrupta destituição de altos cargos dirigentes no partido e no estado, na consentida expatriação de afectos e desafectos da família e da vizinhança, por via da força das armas, de golpes de estado, ainda e sempre fulminantes.

 

Silencioso, ficas escrutinando o teor dos pêsames, respeitoso ficas exaurindo a cor das condolências apresentando-se de cara levantada aos heróis nacionais do sahel insular, pela segunda vez vestidos do negro retinto, pela segunda vez envoltos do silêncio distinto do pesado luto,

 

Pesaroso, ficas mensurando os seus rostos lívidos, doravante entregues à inumação do espírito profanado, da alma penada de amílcar,

as suas sobrancelhas conturbadas, todavia tenazes, doravante entregues à exumação da memória sagrada dos inesquecíveis mártires das ilhas e do país irmão, dos filhos anónimos do povo guineense perecidos, inumeráveis, na luta armada de libertação bi-nacional,

os seus olhos esbugalhados, doravante entregues à autópsia dos mitos, à dissecação da alma sangrada, todavia imorredoira, do herói do povo, da sua fronte alta e nua, da sua súmbia carismática, dos seus lábios grossos banhados na fraternidade dos povos, exercitados na arma da teoria, dos seus ouvidos cingidos pela sensatez e pela sabedoria, dos seus óculos escuros marcados pelo fecundo brilho das florestas africanas impenetráveis, das suas lunetas metálicas reflectindo a luz fluorescente dos areópagos internacionais, a luz ondulante das bolanhas das duas guinés, a luz ofuscante das savanas do mali e do senegal, a luz faíscante dos desertos da argélia, do marrocos e da mauritânia, a luz ampla das cidades do sahel, a luz azul das urbes do mediterrâneo, a luz calorosa de havana e de santiago de cuba, a luz toda de adis abeba, a luz gelada de moscovo e berlim, a luz branca de praga e budapeste, a luz oblíqua de pequim, a luz baça de londres, a luz ambígua de paris e nova york, a luz fosca e carinhosa das cidades da escandinávia, fraternas da sua biblioteca deslocando-se entre as narrativas dos griots e os provérbios das finaderas, dos seus dois torrões amados, das suas duas almejadas soberanias populares irrompendo súbitas no concerto universal das nações livres e independentes, dos seus estados proclamados pelos povos solenes e soberanos na antecâmara limpa de escombros e passados desentendimentos, nos umbrais referendados da sua pátria africana futura, pensada una e solidária,

os seus deliberados esquecimentos, as suas calculadas amnésias, doravante entregues à flagelação do pesadelo, às labaredas do impossível olvido, à causticação dos maus agoiros e das brumas da morte, às intermináveis querelas dos outrora festejados companheiros de luta, às insolúveis controvérsias dos antigos camaradas de armas e de ideários, às inultrapassáveis contendas dos irmãos desavindos postados sobre a turbulência e o atrito dos corpos separados, dos corações desfalecidos, dos estados de espírito litigiosos, das amargas disposições das almas, doravante secessionistas da pátria dantes germinando das sombras lacónicas da luta recordada, dos esporádicos abraços pós-coloniais das nossas nações africanas, outrora sublimando-se irmãs, outrora sonhadas gémeas entretecidas em laços duradouros e indissolúveis, outrora erigidas inexpugnáveis sobre os ecos da lonjura, das orografias relevando-se complementares, das águas desencontradas das nossas terras africanas da guiné e de cabo verde, doravante definitivamente libertas uma da outra.

 

Aliviado, ficas dissecando os tempos da gratificação, insípido ficas desocultando os inóspitos bastidores da tristeza, os camarins das lágrimas e das mágoas passadas, frio e estratégica ficas desvelando o teatro das aparências, das difundidíssimas parábolas bíblicas reiterando a inelutável transitoriedade dos tempos de todas coisas sob o sol, das instrutivíssimas lições da história asseverando, versadas, a inevitável reversibilidade dos sentidos inoculados pelos deuses, os mais ternos, os mais omniscientes, os mais eternos, e pelos homens, os mais atentos, os mais teimosos, os mais astuciosos, os mais fecundos, os mais sábios, os mais adivinhos, assim também da fraternidade forjada na luta e na comunidade de aspirações e dos projectados interesses dos povos, dos mistérios, das maldições, das mistificações da dita unidade entre o cavalo e o cavaleiro, do lento estertor da chantagem política por mor dos muitos corpos heróicos finados para a história e para a glória dos povos da guiné e de cabo verde, da áfrica, do terceiro mundo, da humanidade, da verberação da vassalagem ante a megalomania dos militantes armados do nosso partido, dos valentes comandantes das zonas libertadas e das regiões militares então em disputa na nação africana forjada na luta, dos celebrizados chefes da guerra de guerrilha, dos grandes militares agraciados pela indomável bravura em combate, dos comissários do povo perspicazes, doravante alcandorados, generais e almirantes, ministros e conselheiros da revolução e do livre comércio do chão de cadáveres e das insígnias da nação, ao poder supremo do partido e do estado do ex-país irmão, para o ajustamento dos medos e dos pressentimentos, para o reajustamento dos desastres e dos bolores, dos ressentimentos de há muito inoculados na carne dos tempos, para a mitigação dos sonhos e das utopias de outrora, dos seus fantasmas elementares, para a subtil decapitação dos seus heróis preliminares, do merecimento da sua vida e obra, das suas palavras exemplares, sempre precursoras, dos seus gestos e actos, sempre lavradores do futuro, ainda e sempre acompanhando os passos e as afrontas de apili, ainda e sempre convivendo com a gentileza e a audácia do povo, das suas intermitentes irrupções de cólera.

 

Cansado, ficas rememorando os renovados tempos da vanglória dos auto-proclamados melhores filhos do nosso povo, das suas entranhadas convicções, das suas afirmadas deliberações, dos seus inexpurgáveis dilemas de criadores originais do nosso regime da democracia nacional revolucionária, fundado na unidade nacional e na participação popular, com vista à prioritária salvaguarda dos verdadeiros interesses do nosso povo e das suas classes trabalhadoras para a paulatina edificação de uma sociedade sem exploração do homem pelo homem, liberta do medo, da miséria e da ignorância, expurgada de tratamentos desumanos, cruéis ou, de alguma forma, degradantes da inviolável dignidade da pessoa humana.

 

Sonolento, ficas captando a ritualização das palavras da renovada beatificação dos combatentes da liberdade da pátria, refastelados nos lugares cativos da história das ilhas, das suas memórias guerrilheiras, das suas poses beligerantes, das suas sitiadas reminiscências de antigos confidentes do morto imortal, das suas barricadas congeminações de líderes históricos do nosso povo, postando-se severas nas tribunas dos comícios, das paradas das milícias populares com as convocadas forças vivas da nação crioula soberana, entrincheirando-se órfã da nação africana forjada na luta, da pátria africana sonhada siamesa na guerra e na paz, enquadradas nos tempos coléricos das infinitas diatribes contra o rosto hostil dos inimigos do povo de cabo verde,

das suas gentes humildes da ribeira-seca, de tabugal, das ribeiras de santa-cruz, dos engenhos, de chã de tanque, da boa-entrada, de jalalo ramos, do cerrado dos órgãos, de cova da joana, de ilhéu de contenda, de caleijão, de san pedro, de pedra do lume,

da povoação velha, da calheta do maio, de nova senhora do monte,

 

dos seus ressabiamentos, das suas sinopses revanchistas,

das suas cogitações parasitárias, emboscadas sobre

os campos maduros, as várzeas semeadas, os caniçais em flor, as árvores de fruto frondosas, as apetecíveis sombras das calabaceiras, os minadouros e os poços de água recém-escavados, os coqueirais rumorejantes com o regozijo

das terras novas doadas em posse útil, das cooperativas de produção agrícola, dos novos sistemas de rega, dos diques de retenção de água pluvial, das unidades de produção agro-industrial, das creches e dos jardins de infância, dos círculos de cultura e de alfabetização de adultos, dos seminários de vulgarização de novas técnicas agrícolas e de luta contra as pragas das culturas,

e de outras insígnias da terra que renasce,

e de outros emblemas do homem novo

que se vai engendrando na nossa pátria amada,

da sua firme convicção num futuro próspero e risonho

para os filhos do povo das ilhas,

e de outros testemunhos de inteligência e clarividência

dos dirigentes do nosso partido africano

da independência e do desenvolvimento,

e de outras provas da perspicácia dos responsáveis máximos

do nosso pequeno estado afro-insular soberano,

e de outros frutos da força emancipadora da democracia participativa

na libertação das energias criadoras das massas populares,

na geração e optimização de grandes consensos nacionais

respeitantes à defesa e salvaguarda aos interesses fundamentais

do nosso povo sofredor e da nossa nação insular soberana,

e de outras novíssimas palavras,

e outras virginais construções idiomáticas,

intentando levedar as ânsia e as expectativas do nosso povo,

a sua crença na terra prometida do amanhã sonhando edificar-se

dia a dia, orvalho a orvalho, ilha a ilha, povo a povo,

todo e inteiro, com a vida que se vai reconstruindo,

e se remanejando nas antiquíssimas linhas de todas as batalhas,

das suas fronteiras, dos seus limiares, dos seus limites estipulados nos solenes conclaves dos salvadores do povo das ilhas, dos seus imutáveis rituais de guardiães da história, de vigilantes atentos do correcto sentido dos ventos da história e das ventanias do sahel que aprendemos a dominar (já não somos os flagelados do vento leste!), blá, blá, blá, et cetera, und so weiter, também nos teus olhos desapiedados e impacientes, regressados, moderadamente saudosos, moderadamente cépticos, dos estudos, da boémia e dos ares amputados, dos tempos turvos, dos tempos invernais, dos tempos hibernados da cortejada e amada cidade de leipzig, belíssima plantando-se no coração dilacerado da alemanha de leste, também chamada, também fazendo-se genuinamente alemanha democrática nos tempos vindouros das vozes dissidentes, das vozes cuidadas, das vozes académicas, das vozes pacifistas das sombras encurraladas das ruas cinzentas.

 

Furioso, quase furibundo, ficas ressuscitando os tempos do cerco e da exaltação, da exasperação dos combatentes da liberdade da pátria, e de outros discípulos confessos da doutrina política de amílcar cabral, e de outros ostensivos seguidores do pensamento ideológico do fundador do nosso estado-nação, dos seus muito citados princípios humanistas alegadamente fundados na defesa intransigente da dignidade da pessoa humana e na recuperação do homem transviado das normas sociais que regulam e antecipam a existência de um homem novo na nossa terra,

das suas falácias, das suas divagações, dos seus mal-entendidos,

das suas controversas interpretações dos sinais dos tempos,

das suas intermitências repressivas repletas do iluminado afã,

dos devaneios lexicais, dos transtornos verbais da palavra de ordem,

da virulência da fúria da noite varada e compacta, da voz de prisão

intimidatória, do bastão policial vigiando impiedoso

a subversiva inanição das pedras, dos mornos acordes do saudosismo

da gemada do gato de mané jon e das mocratas do monte, do contrabando

de aguardente e de quinquilharias várias, dos corpos candidatos

à emigração clandestina no porto grande do mindelo e no novo porto

de águas profundas da cidade capital da nossa república, dos pés

reclamando contra o nepotismo e a impunidade de velhos pedófilos

inveterados e a impudicícia de outros anciãos irrequietos

na promiscuidade e na poligamia, das vozes clamando contra

os kalashnikovs em riste sobre as encostas adúlteras da vila nova

e de outros esquisitos subúrbios, e as lagartas dos tanques serpenteando

gravosas sobre as pedras indefesas do plateau e dos insalubres arrabaldes

da cidade da praia de santiago de cabo verde, do suplício dos suspiros

encarcerados e de outras sonoridades, guturais, lancinantes,

das desprevenidas criaturas de coculi, do mindelo, de nhagar

da assomada, de nova sintra, da boca de ambas-as-ribeiras,

 

perfilando-se nos recorrentes pesadelos,

nas frequentes licitações da cólera,

nas repetidas incitações ao desvario,

na descrença e na intimidação

 

da pele virgem dos sonhos

em renhida combustão,

em prenhe dilaceração,

todavia sobreviventes,

todavia impacientes

 

da pele ilesa dos sonhos

ainda em construção,

todavia despertas,

todavia fumegantes

com as utopias

que entre a viagem e a erosão dos sentidos

ainda respiram e ardem contra

o logro, contra a peroração, contra

o duradouro eclipse das estrelas

 

Incrédulo, ficas assistindo ao chamamento geral, intenso e urgente, para um novo djunta mon na aventura da consolidação da nação africana do meio do mar,

suor a suor, dor a dor, amor a amor, palmo a palmo, das ilhas e diásporas.

Surpreso, ficas observando a persistência dos novos tempos do homem novo, radicado na paciência e na expectativa, na permanente esconjuração dos pastores da desgraça, dos profetas do naufrágio iminente da nossa nau insular, da nossa jangada de sonhos,

e o inusitado regresso dos seus filhos pródigos

vindos da emigração política e do exílio interno no crioulo chão das ilhas;

regressados da reforma dos irrecusáveis postos na administração colonial, das ilusões luso-tropicais da província/colónia, dos ansiosos desenganos da adjacência, das muitas quimeras da autonomia, das desilusões luso-ultramarinas do império, dos antigos confrontos com a fúria libertadora das ruas em dezembro de 1974,

retornados do desassossego da resignação e da nossa antiquíssima melancolia de órfãos de superpátrias vastas, desmedidas, de enteados e bastardos de terras firmes continentais, monumentais,

para a penitência perante o altar da pátria amada, da terra dos nossos avôs ilhéus,

e a sua sagração como filhos legítimos da pátria nossa, insular, secular, e a sua consagração como inteiros participantes das corridas de estafetas das criaturas das ilhas, de corredores de fundo dos tempos vários do nosso arquipélago afro-latino, na sua inextinguível demanda do direito de cada cristão, de cada zimbrão, à sua gota de água, do x tanto que é preciso e imprescindível para uma vida humana com dignidade, do direito de filho das ilhas e diásporas ao seu quinhão de felicidade, do direito de cada criatura verdiana à sua porção do paraíso possível da humanidade tornado provável pela chuva que nós próprios ousarmos chover.

 

Partícipe, ficas observando as metamorfoses da praia-maria,

sedento ficas auscultando a praça maior da cidade

e os seus burburinhos restolhando em insanáveis disputas clubistas, em sôfregos debates, tertúlias e controvérsias político-culturais; em sigilosos planos para a definitiva irradiação do c, do ç, do q, do til e dos chapéus do alfabeto e da caligrafia da língua da terra; e a concomitante introdução do k, do y e do w no novo alfabeto a ser urgentemente adoptado no colóquio de tira-chapéu;

as suas incessantes palpitações ante o vário e belo desfilar das criaturas das ilhas, da diversa fisionomia do idioma da terra; do diverso resplendor das mulheres e dos homens do arquipélago crioulo, nosso, idolatrado;

as suas periódicas conturbações, as suas iradas ameaças de convulsão, as suas constelações de alaridos iluminando-se na boémia e na paródia, na conjura e na conjuntura possível esgueirando-se contra o cabisbaixo estatuto de carneiros, contra a infalibilidade dos predicadores do conformismo, contra as vestes uniformes dos pastores das igrejas, todas elas crendo-se omniscientes, e as suas águas bentas, dessacralizadas, paradas, pútridas, pantanosas, sufocantes;

o seu quiosque afogado em jornais da terra entediantes e revistas estrangeiras desactualizadas;

os seus ecos dos padre-nossos, credos e avé-marias apertando-se na nave minguada e nas imediações da igreja-matriz com as multidões de crentes suburbanos num só deus e no seu filho unigénito, gerado e não criado, inabaláveis na fé, firmes na expectativa do pão nosso de cada dia derramando-se da missa e da prédica (todavia sempre adiada para outros dias que hão-de vir, generosos, se deus quiser), caritativos para com os seus próximos e semelhantes, também eles filhos de deus, mesmo se viventes das esmolas de sábado, nossa senhora, e para com as própria almas, coitadas, necessitadas da semanal confissão dos pecados, felizmente sempre venais e remissíveis, e de um pé de dança ao som da música debitada pelos rapazes, suburbanos como eles, da banda domingueira residente no bonito, se bem que degradado, coreto da praça;

as obsessões, as transgressões, as angústias do seu repuxo de pouca água, banhada em hidropisia e limo verde refrescado comprado na fábrica de tintas sita;

a sua esplanada, de onde ainda se aguarda o disparo da bomba termo-nuclear concebida e pomposamente anunciada pelo poeta predilecto da cidade e construída pelo poeta guerrilheiro gerado no subúrbio da achada de santo antónio e pelo poeta com sotaque de soncente, ex-presidiário político e ex-sindicalista, morador do bairro da achadinha, para despedaçar a arruinada rotina da urbe e a ruindade das mentes circundantes, capciosas,

(tomem nota, se não se importam, da cobertura abaulada em estilo neo-modernista da esplanadas da praça central grande da cidade da praia (inaugurada – atenção! a praça e não a esplanada! - com o nome de praça albuqualquercoisa, rebaptizada depois da independência praça amílcar cabral, carinhosamente conhecida tanto pelo vulgo como pelas elites autóctones e vindas como praça grande da praia), e reparem como, agora mesmo, ela, a esplanada da praça se aperalta e se mostra como vistosa e extrovertida montra social da cidade);

os seus velhos funcionários reformados e as suas memórias resguardadas sob a sombra do silêncio e da saudade; das estórias e peripécias passadas mil vezes recontadas;

os seus engraxadores de sapatos e das várias egolatrias que passam impacientes e as suas moradas nutridas na infinitamente bendita poeira dos caminhos dos subúrbios e das ruas degeneradas da urbe e na palavra acesa, ininterrupta, rebrilhando com os risos satisfeitos, com as mãos perdulários dos clientes;

os seus piratinhas, capitães de areia e crianças de rua, preteridos na aquisição e no gozo das batas azuis que povoam a imensa multitude das escolas do país bem como na selecção e promoção dos seus coleguinhas pioneiros do partido a flores da revolução, a razão principal da nossa luta (murmura-se, contudo, que à revelia dos intentos humanistas e da vontade do fundador da pátria, postumamente interpretado e devidamente divulgado pelos ideólogos e outros oráculos do partido e da sua organização unitária da juventude,

dos seus pedintes, mendigos, estropiados e outros deficientes físicos e mentais, enroscados aos restos e às sobras, aos rostos camaleónicos do verbo litigante dos predicadores de novos e mais substanciosos manás;

os seus jovens quadros recém-chegados de muitas universidades estrangeiras rivais,

as suas roupas impecáveis, as suas gargalhadas vaidosas e confraternizadoras, os seus gestos livrescos, os seus gostos díspares e cosmopolitas deambulando pelos corpos velados, pelas promessas reticentes das moças estridentes, libidinosas, namoradeiras;

os seus ministros, secretários de estado e membros da comissão política do partido ausentes, invisíveis, velocíssimos nos ladas, nos toyotas, nos mercedes e em outras viaturas doadas por governos de países ocidentais amigos e de países aliados naturais do nosso povo, embrenhados na dissecação dos dilemas emergentes do suicídio de classe e na invenção dos rumos certos para a estratégica garantia do êxito completo da obra heróica da reconstrução nacional;

os seus sagitas velando as mortes e as ressurreições das loucas das serranias da vida e da fantasia, acariciando as mornas noites serenando-se nos lavores do amor e da introspecção, dilacerando-se na insónia da libido e no diurno recato dos sentidos acesos, repreendidos;

os seus stalions (não interessa se gatos ou ratos no horóscopo chinês!) trilhando as estações inacabadas dos tempos do remorso e do comedimento, galgando as achadas em demanda dos frutos silvestres amadurecendo entre as fogosas coxas das mulheres das ilhas, entre as fugazes ardências das moças recém-desfloradas;

os seus escricoitores calcorreando os caminhos do lento e irreversível obscurescimento das rotas do vinho e do êxtase, sustendo os umbrais da assombração da diuturna claridade, da clara idade dos desenganos, do recolhimento dos ecos e dos odores dos tempos sob a sombra dos ciprestes;

as suas petonisas de sempre, belas sacerdotisas do ócio e do adultério, poetusas como sempre terralonginquamente emersas na mangatxada e em outros irrecusáveis jogos e brincadeiras do sexo e da sensualidade,

os seus cantores e músicos com as suas guitarras húmidas, molhadas nos recentes tempos das águas, com os seus ritmos percutindo o marulhar dos milheirais nas tranças dos cabelos das raparigas da cidade, com os seus baixos cadenciando a alma no balanço do pranto e na levitação da rebeldia, com as suas violas celebrando a angustiada urgência dos pés descalços ruminando as voltas todas da ilha completa, os muitos redemoinhos da terra bufa de todos os dias, do chão de massa-pé em tempos de aridez, do mar largo dos marinheiros, com as suas percussões encaracolando-se nos corpos doados à dança e à alegria, com as suas vozes trepidantes, inquietas verberando a água rara de todos os dias, a parca espessura do onirismo das madrugadas, a parcimónia dos amanhãs fartos e cantantes outrora prometidos aos vultos murchos das criaturas dilacerando-se com a escassez e a vanidade nas penumbras dos bairros degradados, nos campos arrasados pelos malefícios dos tempos da lástima e da calamidade, e em outros lugares da apascentação da lamúria e das estações da carestia, todavia esperançosas em dias outros cantarolando os passados ditames dos hinos guerrilheiros e das marchas revolucionárias e os vaticínios do futuro divisando-se com as vacas langorosas, de passos lânguidos, rigorosamente urbanos, discretamente feminis, ecológicos na ruminação do lixo circundante refundindo-se verde-alface nos seus olhos repletos de miragens contaminadas pelas avaras paisagens do sahel insular;

os seus consagradíssimos literatos e os seus fragmentos de vocábulos preciosos, as suas cozeduras de versos encaracolados, por vezes insolentes, as suas miríades de desatinos e de outros sonhos acordados, vivazes, abissais, arreliantes da sua corte de poetastros e versejadores de última hora, e de outros escrevinhadores de versos espontâneos e rimas mal-amanhadas, de estrofes feminis de má catadura, e de outros correligionários das horas do café e do futebol, do whisky dos princípios do mês recheado de vencimentos e dívidas de jogo saldadas;

os seus novíssimos cultores das artes e das letras traçando as miméticas rotas do fingimento estético e do suicídio de poetas metafísicos e existencialistas e as melhores formas de metaforização do discurso para a tempestiva salvação da palavra indomada, incendiada, para as exéquias e as demais cerimónias fúnebres do verbo chão moribundo com a mente, e o tronco, e os pés, e os braços fincados na terra resignada absorvida em extensos solilóquios junto do mar parado, na incessante busca dos oníricos caminhos para a pasárgada e para a conclamação da espada justiceira do crucificado, bem como nas repetitivas transladações e versificadas projecções dos discursos semanais dos oradores políticos de serviço difundidos na íntegra na gazeta do partido único, bem assim na rádio, na televisão e no jornal oficiosos e devidamente repudiados pelos cronistas de serviço no jornal católico da oposição e no muito e acerbo diz-que-diz dos botequins;

os seus jornalistas, revisores, impressores, ardinas e colunistas de sábado e outros reconhecidos titãs das praças da nossa urbe, de âncoras presas na crítica e na autocrítica (re)construtivas, por vezes no desagravo impiedoso, na conveniente contra-informação e na crítica destrutiva (dizem as más-línguas, na calúnia e na difamação), nos ganhos e perdas do xadrez e dos jogos de fortuna, de velas soltas nos restaurantes avis e o poeta, nos cafés cachito e vulcão, no bar do restaurante flor de lys, nas noites caboverdianas do djonsa soares e da vila miséria, nos prostíbulos do lém-cachorro e da achada de santo antónio, na taberna do xindo peto pomba (diga-se, em lembrança do lonha alemão, que estrategicamente localizada num sobrado do centro histórico da cidade), nas mercearias&botequins flor da brava e cantinho de san tomé, na casa de pasto amélia&josé benício&herdeiros (vale a pena esclarecer para memória futura que este último estabelecimento de restauração é considerado – aliás, com toda a justiça - como o verdadeiro centro de difusão da cultura lusófona na cidade da praia sendo, por isso, obrigatório o uso do português por parte dos clientes, mesmo em se tratando de bêbados iletrados ou de prostitutas analfabetas, desde que se comprometam a falar um de cada vez, conforme tabuleta colocada à vista de todos os interessados. Tal ilação não acarreta, como é óbvio desprimor algum para os centros culturais português e brasileiro, mais virados para a lusografia e o aprofundamento das letras por parte dos escritores noviços, para além de funcionarem como verdadeiras bibliotecas municipais e escolares, muito procuradas pelos alunos do liceu e pelos estudantes da escola de formação de professores);

os seus dissidentes e opositores políticos relaxando-se no bate-boca e na resiliência do maldizer enrodilhados no fumo fugaz do sagaz silêncio, no cheiro da lava e do café, nos vulcânicos tremores da astúcia política esgueirando-se, após as horas normais de expediente e os cordiais despachos com os respectivos ministros de tutela, nos preparativos de simulacros tipográficos de bombas-relógio devidamente travestidas de caricaturas de altos dirigentes do regime, dos seus timbres monocórdicos, dos seus lazeres elitistas, e concomitantemente revestidas de palavras avessas às instituições da república e ao regime instituído de democracia nacional revolucionária, e, por isso, consequente e necessariamente adversas ao partido, aos seus satélites orgânicos criados para o pastoreio do mulherio militante e para a neutralização da mocidade do contra, politiqueira e arredia aos constantes apelos ao consenso nacional requerido pela sempre relembrada ingência da obra da reconstrução nacional, sistemática e injustamente conspurcada pela indigência política dos desocupados de sempre e de outros intelectuais dos cafés de cá, e de lá, de lisboa, boston e roterdão.

 

  [...]

Agora, em ostensiva sintonia com o louco predilecto da cidade, recapitulas com ares marginais e antecipadamente em contra-mão,

o ciclotímico humor dos burocratas e as alucinações cleptocratas

dos vendilhões dos tempos actuais adulados,

e de outros postulantes a mercadores

de tempos outros, jubilosos, das nossas ilhas finalmente afortunadas;

de tempos outros, gloriosos, do desinibido e vampiresco enriquecimento de ex-gestores de empresas públicas levadas à falência para serem vendidas ao desbarato aos seus sócios estrangeiros;

de tempos outros, prodigiosos, da arca dos tesouros dos quarenta ladrões crioulos e dos alibabás do ex-arquipélago da fome e do comedimento;

de tempos outros, glamourosos, do incontinente nomadismo dos corpos perfumados, um pouco nada luxuosos e discretamente acomodados em pedras preciosas;

de tempos outros, de porcos em delírio chafurdando no nosso vindouro e democraduro animal farm;

de tempos outros, da meritocracia da ladroeira, da competência da alta gatunagem, do empoderamento grão-burguês da nova aristocracia do dinheiro, do monetário afidalgamento de alguns poucos filhos dilectos das ilhas, da nobilitação financeira da esperteza refrescada na insídia e na dissimulação, das suas garras desafiantes, sempre afiadas, dos seus ubíquos sustentáculos estrangeiros, sempre disponíveis para o saque e para o afiançamento e a apadrinhagem da apatridia do lucro;

de tempos outros, desejados, de outras futuras conjunturas despontando mais além da década, proclamando-se propulsores, aguerridos e combatentes da liberdade na pátria, antevendo-se competentes, petulantes e ostentatórios na sua coerência maioritária, super-qualificada e rancorosa da velha nomenclatura de combatentes da liberdade da pátria, tempestivamente excomungados, tempestuosamente degradados ao boçal estatuto de combatentes do mato, definitivamente despejados das residências de função, perpetuamente despojados dos privilégios da nomenclatura (assim ficando também definitivamente resolvidos os dilemas referentes ao suicídio de classe da pequena burguesia intelectual e burocrática, tanto por via da sua ressurreição como meros trabalhadores assalariados, quer mediante o seu enriquecimento, que aliás, se prevê muito acelerado), nos exactos termos das ganas revanchistas dos velhos reaccionários do pós-25 de abril e de outros saudosistas do império do medo e dos lustrosos afectos lusotropicais, na clarividente medida das justiceiras interpelações dos antigos dissidentes do partido único exilados e de outros ex-esquerdistas arrependidos convertidos aos mandamentos da democracia liberal e às maravilhas da economia do mercado, e de outros ex-revolucionários reconvertidos à deliciosa selvajaria terceiro-mundista do capitalismo, das suas profecias exaradas na irritação das sempre ríspidas pichagens das frontarias dos edifícios públicos e das honoráveis varandas das moradias oficiais dos governantes, dos pasquins clandestinos, dos panfletos nocturnos, das ousadas caricaturas residentes dos bares, dos cafés e de outros lugares de escárnio e de maldizer, das praças, das esquinas e de outros focos de difusão de boatos e de alarme social, das ruelas, dos cubículos e de outros habitáculos da inspiração poética, da transfiguração metafísica, da reflexão filosófica e da refracção político-ideológica, das noites e de outras locas de conjura e conspiração, das festas e de outros momentos de disseminação do sarcasmo e da maledicência, da dissidência contra as instituições da república e símbolos nacionais, deles, nossos, africanos insulares.

 

E cambaleias, com os olhos cerrados, calamitosos, divagando o semblante áspero pelos estilhaços que povoam os iminentes abismos de ocasos e colapsos e tingem a súbita pausa do louco predilecto da cidade.

 

É sabido (dizes-me, dando-te ares fingidamente banais de leitor assíduo das páginas literárias dos quando-calhários que se achegam aos teus olhos letrados) que as palavras estão gastas por demasiado repetidas na nomeação de realidades sobre-evidentes, mesmo se recolhidas nas tenebras do silêncio cauteloso, temeroso do estilhaçamento e da quebra dos cordiais laços comestíveis convenientemente estabelecidos com o estado.

Quiçá ignorante das palavras gastas, de todo o modo raivosamente reticente em relação às supostamente funestas sabedorias que de há muito nelas chafurdam e se digladiam (confidencias-me num tom reiteradamente grave e pesaroso), o louco predilecto da cidade continuou, peremptório e febril, interpelando todas as palavras gastas, todavia incrustando-as do odor dicionário, do iluminado fulgor, do radioso alvor de algumas expressões eruditas.

Palavras gastas, deambulas reflexivo atropelando-te inconclusivo nas incongruências do quotidiano, mas paradoxalmente germinando nas mentes e nos gestos de todos, incluindo na transida indiferença dos passos apressados dos transeuntes, dizes de polegar em riste numa espécie de ponto de ordem a meio do discurso, já exausto e histérico, do louco predilecto da cidade, palavras gastas mas ainda pertinentes e verosímeis na retratação da cidade e das suas verdades, das suas evidências, das suas verdades super-evidentes e das suas verdades camufladas, asseveras, das suas veracidades, inventas, inveterado neologista, de coração deflagrando-se na raiz do sepulcral silêncio do louco predilecto da cidade e da sua face recoberta de turbação, agora transfigurada em irreversível túmulo de palavras.

 

Eis-te pois num funéreo momento de lucidez,

oscilando entre o teu cérebro e o resto do teu corpo,

trucidado entre ambos.

Nesse momento, em que batalhas com as palavras e com elas perambulas indeciso entre, por um lado, o perfil sério, prosaico, sorumbático (por vezes marcial e repreensivo) dos discursos oficiais e das cautelosas e jubilatórias crónicas dos jornais oficiosos e, em outro canto também ele plausível e acessível à mão de semear, o libertário metaforismo dos poemas declamados na intimidade das tertúlias, das tocatinas e de outros restritos convívios de amigos e confrades, de silhuetas sempre festivas e alternativas, poderias passar por louco, ou por bêbado inveterado, ou por tóxico-dependente inconfesso, ou por pederasta inrevelado, ou por impertinente incorrigível, ou por inconformado inconsequente, tal como se diria, aliás, de qualquer outro desinibido transeunte da cidade prudente e pacata.

E, todavia, insistes em chamar louco ao esquizofrénico predilecto da cidade ou a qualquer outro tribuno de ocasião que, devidamente palavroso e altissonante, persistisse em proclamar verdades evidentes na surda e agastada face das multidões emudecidas.

Palavras super-evidentes,

como no mais que conhecido axioma:

a loucura é a razão da minoria em dissídio,

a razão é a loucura dos mandarins das grandes

maiorias conformadas em multidões.

 

Eis-te desterrado do quotidiano

e do seu bom senso

(e sou eu a sombra

com quem falo e que em mim se agita

e ventríloqua se exalta com a resplandecência

das palavras, e sou eu a exacerbada cintilação do desassombro

na desfraldada impertinência do louco predilecto da cidade

jorrando sobre o corpo agónico da urbe martirizada e mal-amada,

e das suas intermitentes convulsões aguardando

a chegada das sagradas águas vorazes das cheias,

líquidas, ruidosas, barrentas, e a verde e apaziguadora aparição

que se há-de erguer entre os destroços das ribeiras e as ruínas

das miragens enrouquecidas do venerado profeta da grande ilha,

nhu naxu chamado e celebrizado como ícone da imortalidade

das pétreas palavras perpétuas da ilha antiquíssima e imperecida

nas silenciadas indagações do poeta (in)timorato que se queria panfletário

habitante da clandestinidade conspirando contra a fininha e silenciosa revolta melancólica escorrendo da banalidade dos seus dias salgados e neurasténicos

e da paz burocrática das repartições auscultando o barco alemão

aproximando-se pachorrento e paquidérmico da terra morna, inerte,

depois distanciando-se entre silvos metálicos, aliviados, da terra

langorosa, inerme e calva, rebelada metamorfoseando-se

convicta e utópica na pátria livre do meio do mar,

ora veementemente causticada pelo verbo enraivecido

do louco predilecto da amada cidade da praia de santa maria

                                                          /da esperança e da vitória,

agora alvejada nas suas maleitas, nas suas bazófias, nas derivas

autistas, nos desvios autoritários dos senhores do seu destino).

 

Eis-me, pois, aparentemente intacto,

calado e inteiro, num curvo momento de lucidez

com a minha sombra guilhotinada

balouçando entre a mente e a carne

(e sou eu a acústica reverberação,

o rutilante eco, a nocturna retórica,

o desvairado tambor, a rítmica equação,

a frenética percussão ecoando

a ancestral voz do profeta da mutação

dos tempos nos tempos que hão-de vir

nos gestos febris, na silhueta temerária,

nos abraços viris, no perfil excêntrico,

nas mãos predestinadas, na enlutada

memória do louco predilecto da cidade

-digo, do esquizofrénico adivinho-mor da cidade predilecta -

e das minhas subversivas fantasias de poeta panfletário

estrebuchando contra as pulsões avaras,

as corriqueiras deambulações, as dissimulações

funcionárias da prudência e da rotina, estiradas

sob a secretária de mogno polido, da sua fina tampa

ornada dos seguintes versos, ora jocosamente

atribuídos a bertolt brecht, ora tidos por malevolamente

surripiados ao seu sonegado espólio

de poeta inconveniente:

 

“Poeta ou polícia

Ainda ontem em prostitutas

Espalhámos o sal branco

Dos nossos espermas irreverentes

 

Vate ou vadio

Ainda ontem em noivas enrubescidas

Levedámos o sal manso

Dos nossos espermas embevecidos”

 

Em tempo: na folha amarelecida,

na qual os versos acima transcritos

se encontram exarados, de forma,

aliás, quase ilegível, foi rasurada

a expressão sal manso, a qual foi

substituída por uma outra expressão

muito parecida com a anterior: sal baço.

Ou seria sal bravo? Quiçá sal bravio?).

 

 

 

Praia, Junho de 1989
Lisboa, Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2010/Janeiro de 2011

José Luís Hopffer C. Almada

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA (CABO VERDE).
Jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal, Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa. Desempenhou as funções de técnico superior em vários departamentos governamentais e de Director do Gabinete de Assuntos Jurídicos e Legislação da Secretaria-Geral do Governo. Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (1989-1992/1998). Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal, Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique; colaboração assídua em jornais e revistas literárias e jurídicas, com destaque para Fragmentos, Pré-Textos, Direito e Cidadania, Lusografias, A Semana, Liberal-Caboverde. Representado em diferentes antologias poéticas estrangeiras. Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol (Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas (2008).
Publicou: À Sombra do Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993), Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); Orfandade e Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários Cabo-Verdianos (2007), e Praianas (Revisitações do Tempo e da Cidade) (2009). Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção).

 

 

© Maria Estela Guedes
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