REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 08-09

 

 

 

1

 

       

Domingo domingo

          finda a obra

             merecido descanso.

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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GERALDO LIMA

 

Um



Geraldo Lima, Um. Romance
Brasília, LGE Editora, 2009

         Geraldo Lima

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   

Deus, no entanto, vigilante sempre, sem dia algum de repouso,  espreita o Universo, a humanidade, este cantinho do apartamento onde, naquele entardecer, estirei-me estressado, enfastiado, marcado pelas refregas com o cotidiano.

Sob esse olhar onipresente, invisível, busquei o relaxamento. Durante alguns minutos, tentei não pensar em nada:  

                    a mente flutuando no vazio  

(A meditação é algo que sempre me atraiu, porém nunca encontrei tempo e paciência para praticá-la. Ariadne, em constante busca de cura para a minha alma aflita, enferma, até me presenteou com livros e CDs que nos ensinam como meditar em casa, no hotel, no trabalho, na rua, onde for possível, mas ainda estão aí, na estante, inúteis, à espera do pó, das teias de aranha.)  

Por fim, o cansaço me venceu.

 Cerrei os olhos, mas não creio que tenha adormecido: minha mente continuava vigilante, conectada ao exterior.

Foi assim, somente por ter cerrado os olhos (ainda insisto: estava desperto, apenas com a mente relaxada), que nitidamente vi a face luminosa de Deus. Creia no que digo, foi tão real: a luz intensa, cegante, pulsava diante dos meus olhos. Era um facho denso, através do qual nenhum olhar humano poderia passar.  Quis me erguer, porém as costas pareciam grudadas ao piso. Terror e fascínio. Estirei então o braço em busca daquele brilho etéreo, fantástico. Inútil, inútil. O vazio infinito acolheu minha mão e senti tocar a pele o gelo da ausência divina, a solidão glacial. 

(...)

 

 

2

 

Aqui, n'Os Lusíadas, no Canto III, na centésima décima nona estrofe, está escrito: Se dizem, fero Amor, que a sede tua/Nem com lágrimas tristes se mitiga,/É porque queres, áspero e tirano,/Tuas aras banhar em sangue humano. Nas notas está dito que Virgílio também disse algo parecido, Nec lacrimis crudelis Amor... Um caso de intertextualidade, ou de simples imitação, como era regra entre os clássicos. Mas não é isso o que nos interessa; interessa, sim, o caso de o Amor, o deus grego Eros, estar intimamente ligado à Morte, em outras palavras, a Tânatos.

A sala inteira em suspense, os olhos fixos na minha figura magra, as portas da mente abertas para que a rajada de palavras entrasse iluminando os cantos escuros e elidisse o mofo da ignorância.

Fui de um extremo ao outro da sala (as mãos suando, a testa gotejando) na intenção de juntar novas palavras ao meu discurso, ordenar melhor as ideias que, no afã de ser preciso, acabam se perdendo no caminho entre o intelecto e a boca. Também tinha a intenção de que os alunos mastigassem bem cada palavra, sentindo-lhe o sabor, a maciez da polpa, a aspereza, às vezes, da casca, Porque o ouvido prova as palavras como o paladar prova a comida. Essas palavras de Eliú, acusando Jó, arrematavam com justeza o meu intento, mas não apaziguavam o meu espírito. Para piorar, meu coração esmurrava o peito, escandaloso, e eu tinha a sensação de que a sala inteira acompanhava atenta o seu disparate.

 
 

3

 

(...)

Do dia em que Ana cruzou as pernas até aquele instante, meus sentimentos foram de um extremo ao outro. Quantas vezes me vi sufocado por uma ternura louca, por uma fome insaciável de amor que, por mais que eu lhe beijasse a boca, mordesse-lhe a carne, não me satisfazia. Queria devorá-la. Queria entrar dentro dela. Noutras vezes, assim, em espaços de tempo bem próximos, por mais que eu me esforçasse, evaporava-se toda a ternura, o coração era um deserto só, e as mãos, por mais que eu tentasse, não se moviam em direção ao seu corpo. Era quando vinham as tais explicações, o falar distante, intermediado pelo intelecto, e o estar um diante do outro não gerava nenhuma graça, nenhuma química. Mas creio que aí já  nos aproximávamos do fim. O inelutável fim.

Para mim era natural que, em espaço de tempo tão curto, já não me interessasse tanto pelo que acontecera naquele entardecer, mas não para Ariadne: ela agora acreditava seriamente na possibilidade de eu ter vivido uma experiência real de contato divino, uma revelação. Se em outros tempos alguns homens puderam ter essa graça, por que isso não poderia acontecer agora, nesta época assolada pela corrupção, pela violência, pelo cinismo, uma época tão necessitada de uma intervenção direta do Criador? É, meu caro, porque as leis dos homens já não estão dando conta do mal.

(...)

 

 

4

 

(...)

A música de Cartola enchia o apartamento, quase uma súplica, um conselho amoroso, e Ana, distante, insensível, evadia-se para um outro mundo.

Depois da conversa sobre o encontro com o fotógrafo, nossa convivência tornou-se complicada. Os risos murcharam, e as palavras secaram em meio aos espinhos e às pedras.  Mesmo assim insistimos um bom tempo neste sofrimento: dormíamos numa cama de faquir e sentíamos, a cada dia, o apartamento encolher. Eu ia de um extremo ao outro e, por várias vezes, surpreendi-me maquinando a insana ideia de esganá-la. Se eu não pudesse tê-la mais, ninguém mais a teria. Ana, deitada ali, de bruços, era só envolver-lhe o pescoço com as mãos, apertar, apertar, ninguém ouviria nada, só Deus, mas que importância teria isso? 

(...)

 

 

6

 

(...)

Nesse tempo creio que não havia ainda o hamster e o seu dono, e, se havia, meus ouvidos estavam completamente surdos para eles. Com a solidão, no entanto, é outra história: ela amplia os ruídos do mundo, torna nossa alma sensível aos murmúrios da noite e a cidade cresce como se fosse nos esmagar. E, por mais que falemos, que lancemos sinais de socorro, nada se move. Palavras loucas, ouvidos moucos, nos diz o provérbio.

No auge do desespero, sentimos falta de alguém, da voz e do corpo que nos reergueram após experimentarmos a vertigem da queda. A voz que sussurrou em nosso ouvido palavras de ânimo e de carinho. O sopro da voz que nos inundou de vida outra vez. Pela décima vez! A voz de Ariadne: um mantra. Deixo então que as palavras procurem o eco dessa voz ainda no rascunho de uma carta.

(...)

 

 

8

 

(...)

Motivado por essa imagem do passado, vou novamente à sacada em busca do brilho da Lua. Infelizmente ela já desliza quase fora do alcance da minha vista. Daqui a pouco, restarão apenas as estrelas e os fiapos de nuvens no breu celeste.

Quase meia-noite. Sinto que é hora de sossegar meu espírito, mas o sono não vem. E a morte, posta no horizonte, é sempre uma saída extrema. Mas por que arrastar este corpo até o fim do dia? Por que atravessar esse corredor escuro até a aurora? Por que insistir nessa jornada? Sei que amanhã, caso vá trabalhar, entrarei em sala de aula fustigado pelo mesmo temor do primeiro dia em que me vi frente a frente com a turma de Ana. E sei que, como faço há dias, há meses, esperarei que outra Ana, com uma cruzada sutil de pernas, arraste meu olhar e mude o curso da minha vida.

(...)

 

 

Geraldo Lima (Brasil, Planaltina, GO, 1959)
Professor de Literatura e Língua Portuguesa. Já ganhou alguns prêmios literários e tem textos publicados em jornais, revistas impressas e revistas eletrônicas. Publicou os seguintes livros: A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, FCDF), Baque (contos, LGE Editora/FAC), UM (romance, LGE Editora/FAC) e Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora). Tem no prelo o livro de micronarrativas Tesselário (Ed. Multifoco). Participou de algumas coletâneas, como Antologia do conto brasiliense (org. por Ronaldo Cagiano) e revista Portal Solaris (org. por Nelson de Oliveira). Como dramaturgo escreveu as peças Error (encenada pela Oficina do Teatro de Periferia) e Trinta gatos e um cão envenenado ( foi feita a sua leitura dramática na 5ª Mostra de Dramaturgia de Brasília). Colabora com o Jornal Opção, em Goiânia, e com o Jornal de Sobradinho, DF. É um dos colunistas do blog O BULE www.o-bule.blogspot.com Mantém o blog Baque www.baque-blogdogeraldolima.blogspot.com

e-mail: gera.lima@brturbo.com.br
Twitter: @gerassanto
Facebook: Geraldo Lima

 

 

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