REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 06

 

 

 

“Se alguém quiser contradizer esta obra, que não vá tagarelar diante de miúdos, mas que escreva um livro e o publique a fim de que as pessoas competentes possam julgar aquilo que é verdadeiro e refutar aquilo que é falso para a autoridade da verdade” (Tomás de Aquino, Contra retrahentes, cap. 17, p. C 74.) 

“Amans amati suo figuram sculpit in animo. Fit itaque amantis animus speculum in quo amati relucet imago” (Ficino) (1)

“É por ti que choram em Alcácer-Quibir…
Por seres tão casto, Bastião
Choram as areias do areal deserto”

(Estela Guedes)

DIREÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
   
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 José Augusto

MOURÃO

 

A morte em cena

(
prefácio a Tango Sebastião, de Estela Guedes)

                                                                        José Augusto Mourão (UNL)
 
 
 
 
 
 
 

Os textos não nascem do chão. Nem são objectos imóveis: cruzam-se, casam-se, emigram, mudam de género e de regime de veridicção. Em De unitate intellectus, o Aquinata qualifica Averróis de deprauator e mesmo de peruersor do pensamento de Aristóteles (De unitate intellectus contra averroisteas, 2 linha 155; 5, linha 392, p. 302 e 314). O caso é que, se o contexto belicoso, que tem a verdade por objecto, convém à História e à Dogmática, já à ficção de nada serve. Não há autor que não per-verta (entenda-se, traduza) os textos sobre que consciente ou inconscientemente inscreve a sua obra. Dizia Picasso que os bons artistas copiam, enquanto os génios roubam. Consciente ou inconscientemente, roubar, transformar, combinar, reciclar são operações que podem fazer duma obra uma obra de arte.

Os antigos distinguiam três tipos de histórias: a factual (praktiké), a falsa (pseudé) e uma terceira que se ocupava de acontecimentos considerados “como verdadeiros” e definidas com o termo plásmata, que quer dizer moldadas, plasmadas, imagens, figuras. Este tipo de história é a do verdadeiro e do falso porque produz efeitos reais, sem pertencer à categoria da acção histórica verdadeira da res gestae. Para os antigos, este terceiro tipo de história era reservado ao teatro, à arte, ao espectáculo que na antiga Grécia exerciam sobre o público uma influência catártica e duradoura. Mas já na Roma imperial os plasmata deixavam os espectadores insatisfeitos, que tinham necessidade de coisas mais fortes, mais verdadeiras para serem envolvidos emocionalmente. Os espectáculos dos gladiadores respondiam perfeitamente a esta exigência, colocando a morte em cena. Não já o “fingimento” de morrer, mas a morte “verdadeira” de homens que se combatem em jogo.

Ora, é de morte que fala este Tango Sebastião de Maria Estela Guedes. Fazer cruzar-se três histórias, três militares e três causas a defender, é a proeza textual desta peça, composta em grande parte por poemas (belíssimos) já publicados pela autora. Como personagens, além de D. Sebastião, S. Sebastião e Mishima, a Máscara, que é como a figura da recepção e do comentário das falas de cada personagem. Vale a pena lembrar que persona significa na origem “máscara” e é através da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social. O escravo, em Roma, sem antepassados nem máscara, nem nome, esse não podia ter uma “pessoa”, uma capacidade jurídica (servus non habet personam).  

Voltemo-nos para o tríptico que a peça encena. D. Sebastião é o Capitão de Deus e El-rei de Portugal, um rei virgem, que sonha com a conversão dos mouros, mas não quer casar, nem morrer cedo. É a personagem que mais traços mostra do puer (adolescente), glabro, chorão, mas, ao mesmo tempo, muito defendido do “assédio” do santo que, por momentos perde a compostura estática e ganha “carne”. S. Sebastião (sebastos = venerável) é a figura do “soldado da fé”, venerado como mártir e baluarte contra a peste. A Depositio martyrum (354) e um passo de Ambrósio de comentário ao salmo 118 (PL, XV, col. 1574) são os únicos documentos mais antigos que testemunham da existência do santo. O que sabemos dele reduz-se ao martírio romano em fins do século III, à sepultura in catacumbas e à data da festa, 20 janeiro. A passio lendária influenciou a arte, a literatura e iconografia. A Passio S. Sebastiani (PL, XVII, coll. 1111-50) data da metade do século V - um romance histórico em que abundam os prodígios e as descrições do suplício. Sebastião entrou na guarda pretoriana tornando-se cedo agradado do imperador Diocleciano e Maximiano que o fazem guarda pessoal. Assistia aos cárceres e enterrava os mártires. Por razões de crença religiosa (Jacques de Voragine em La Légende Dorée conta que Sebastião destruiu duzentas estátuas de ídolos) é condenado: ligaram-no nu a um cepo e cravaram-no de flechas (“quasi ericius ita esset irsutus ictibus sagittarum”). A Escola catalã de Mazzan de Sas mostra-nos uma imagem de Sebastião como um oficial militar (Madrid, Museo Lázaro Galdino (séc XV)). Aqui acaba a “verdade” histórica e começa a lenda. “Há mil versões da história de cada santo”, diz a Máscara.

 

Como S. Sebastião, D. Sebastião (o desejado do V Império) também pretende ser um destemido herói da fé que parte em combate contra os Mouros. Como Mishima, o último samurai, tragicamente quis ser o herói que defende a divindade do Imperador, suicidando-se. Três loucos amorosamente “santos”, como Sartre diria de Genet. O mártir que nos vem na onda dos anos sessenta, Yukio Mishima, cuja vida trágica testemunha da passagem da acção à comunicação literária é o primeiro a trazer as extremas consequências do facto que os livros por si só não bastam para mudar a vida de quem quer que seja, se não são acompanhados por um acto exemplar de forte impacto mediático. Mishima organiza uma espécie de exército privado, a Associação dos Escudos, a Tatenokai, constituída por cem jovens que se referem à tradição japonesa dos samurais. A 25 de novembro de 1970, com quatro dos mais fiéis da sua associação, ocupa o quartel-general, em Tóquio, e tenta um golpe de estado. Do terraço do gabinete do general, frente a um milhar de soldados que alucinadamente o seguem, faz o seu último discurso que visa sublevar a opinião pública contra a colonização americana. No fim põe fim à vida com um espectacular harakiri. Depois de se ter esventrado, é decapitado por Hiroyasu Koga que decapita igualmente o seu amigo íntimo. Na senda de Mishima, o austríaco Rudolf Schwarzkogler, protagonista de acções artísticas que reproduzem imagens de operações cirúrgicas, suicida-se em 1969, arrancando a pele em público. “Sou um mártir”, repete Yukio Mishima várias vezes nesta peça; mais afirma que quis morrer por amar a morte: esse é a seu drama e a sua glória. Proust mostra como uma paisagem ou um rosto humano se transformam em objecto estético no momento em que, sendo visados por um observador, resistem, escapando a qualquer reconhecimento, não oferecendo senão uma parte ou um momento do que os constitui como paisagem ou rosto. É esta parte imperfeita e decepcionante que desencadeia a busca do sentido. Ou da morte.

 

Dar vida a uma figura é um topos da Renascença. A virtuosidade dos pintores não é estranha à erotização da figura nua do santo. Que pode a devoção contra a volúpia da carne? Se o corpo do santo é o atractor que pode atingir o olhar do espectador, é porque deve ter a capacidade de o visar, como o faria uma flecha. Visar o corpo de Sebastião é admirá-lo, encará-lo como um objecto de contemplação e um objecto de desejo. Como dissimular a nuditas naturalis de um homem de carne e de sangue? Como travar a comoção que um belo corpo pode suscitar, sem véus que o cubram, nem rugas que o desfigurem? Não tardarão a aparecer, de vara na mão, os zeladores da Contra-Reforma que vituperam a nudez de efebo apolíneo, sem flechas, de belas carnes, em que converteram o santo. Em 1584, Lomazo, no seu Trattato della pintura escreve: “Gli spettacoli lascivi d'uomini, si possono contaminare gli animi delle donne; e però si fanno a santo Sebastiano, quando è saetato all'arbore, le membra tutte tinte e sparse di sangue per le ferite, acciò che non si mostri ignudo, bello, vago e bianco” ( Lomazzo G.P., Trattato della pittura, in Scritti sulle arti, vol. 2, Florence,1973, p. 320. Traduction empruntée à Arasse D., op. cit., p. 62). Assim se prova o poder da imagem (a estampa com que Mishima se comove).

 

A visão singular de um homem cavalgando uma águia remete-nos para uma página dos amores de Júpiter, na mitologia. Júpiter, seduzido pela beleza do jovem efebo Ganimedes, arrebata-o ao céu dissimulando-se na aparência duma águia. A função reservada a Ganimedes é como sabemos o de se tornar o “copeiro” favorito dos deuses no Olimpo, vide as representações deste mito nas Metamorfoses ilustradas de Ovídio. O rei não tem de si a melhor imagem. Mishima vê-se como um sapo verde, venenoso. Poderão tentar o heroísmo na morte e, nesse gesto, competir com o santo. Resta o ideal da beleza que o santo encarna e que alimenta o seu desejo e devoção. De várias maneiras se pode enfrentar a morte: tendo filhos, visando o heroísmo e a glória (a não confundir com a notoriedade mediática), a conversio ad philosophiam. Nem o rei nem o santo têm filhos. Imortaliza-os o heroísmo guerreiro ou o heroísmo da santidade. Que haverá na representação pictórica do santo (de Piero della Francesca, Benozzo Gozzoli, Andrea Mantegna e Guido Reni) que permita uma leitura homo-erótica do mesmo? Que pode ligar S. Sebastião aos manifestos gay ("Proclamação de S. Sebastião, patrono dos gays”) ou ao romance de Gabriel d’Annunzio, o Mistero di S. Sebastiao? Na peça pergunta-se a dado momento: “qual a causa da sua condenação à morte”? Estela Guedes dá-nos uma explicação discursiva intrigante: “Ele não foi condenado por ser homossexual, mas, se não fosse homossexual, hoje não teríamos nós história nenhuma para contar”. Melhor seria dizer: a literatura não vive do jogo da verdade e da mentira. A camuflagem é o seu vestido, e por baixo deste vestido as tramas do desejo fazem do falso verdadeiro, da verdade parecer, do que não parece, segredo. Manhas da veridicção e dos fantasmas que o desejo encena. A verdade romanesca não é a verdade histórica. A identificação mimética é bifronte. A estratégia é a ciência da intersubjectividade, diz um grande semiólogo, Paolo Fabbri.

Estela Guedes é, como a Máscara diz na cena 2: criadora e reprodutora. Esta é uma peça marcada pela desconstrução de lugares comuns e da tradição sobre a homossexualidade (“assumir”), dos vários pontos de vista sobre a questão (Budistas, cristãos), das estratégias do que se poderia chamar a retórica da imagem (e que a máscara personifica), da injúria e da chacota: “o pavão fica sem motivos para abrir a cauda”, a causa (“a homossexualidade é a última grande causa humana a defender”). Esta é uma peça de teatro dentro do teatro (a exibição de artes marciais, v.g.) com um final em que à poesia se mistura a dança (o tango) a que só a imaginação da autora podia dar o toque erótico, o ritmo. Mishima, que é um homem do teatro, confessa ter começado a usar a máscara por causa do pai, casando, tendo dois filhos e praticando as artes marciais. Três “heróis” se encontram nesta peça, unidos por três formas de loucura: a conquista de África aos Mouros, a fé em Deus, a crença na divindade (do Imperador). Várias questões continuarão em cena: haverá ainda “alguém que deseje ardentemente vestir-se de sanctitas”? (Maria Gabriela Llansol, O jogo da liberdade da alma). Que fazer do heroísmo? Que verdade atribuir às “Confissões de uma máscara”? Dirá sempre o desejo a verdade? O mártir dá a vida para defender a liberdade da alma, para defender um emblema, ou a honra. Rebelde à morte é o homem nobre. Sim, “O nome é a minha máscara”, dirá Mishima, ou melhor, Kimitake Hiraoka (uma versão moderna de S. Sebastião). Larvatus prodeo. Não nu, mas des-vestido. Expostos os três às derivas do messianismo, do patriotismo, das sombras da fé.

 

  NOTAS

(1) “O amante esculpe na sua alma a figura do amado. Deste modo a lama do amante se torna o espelho em que reluz a imagem do amado” (Ficin, Commentaire sur le Banquet de Platon (II, 8).

 

 

 

«TANGO SEBASTIÃO»
de Maria Estela Guedes

Sai em Setembro na Apenas Livros, coleção Teatro no Cordel.

Além disso, a peça está em cena no número 05 da primeira série da
Revista TriploV de Artes, Ciências e Religiões, em:

http://revista.triplov.com/Numero_05/Maria_Estela_Guedes/index.htm

 

 

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (PORTUGAL)
Professor Associado com Agregação no Departamento de Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa onde ministra as cadeiras de Semiótica, Discurso e Metodologia da Crítica e Hiperficção e Cultura.
McLuhan Fellow (Universidade de Toronto).
Presidente do CECL (Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens).
Director do Instituto de S. Tomás de Aquino (ISTA) e dos Cadernos ISTA.
Membro da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM), do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens (CECL), do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, do Comité Executivo da Associação Internacional de Estudos Semióticos, da Comissão de Creditação da Revista Faces de Eva, do Conselho Científico da Revista Portuguesa de Ciência das Religiões, membro de Aconselhamento permanente do Nucleo de Estudos de Comunicaçao e Sociedade da Universidade do Minho.
Algumas publicações: Vazio Verde (1985); Dizer Deus - Ao (des)abrigo do Nome (1991); A Palavra e o espelho (2000); Visão de Túndalo - Em torno da
semiótica das visões (1988); Paixão, Discurso e Sujeito (1996); O Regresso do sagrado (1998) em colaboração com Ana Luísa Janeira, Carlos João Correia e António Carlos Carvalho; A sedução do real. Literatura e semiótica (1998); As Grandes Exposições no Mundo Ibero-Americano, coordenação com M. Estela Guedes e A.M. Cardoso de Matos (1998); Semiótica e Bíblia (1999), coordenação com M. Estela Guedes e Nuno Peiriço; Discursos e práticas alquímicas (2001), com Raquel Gonçalves; Ficção Interactiva. Para uma Poética do Hipertexto, Edições Universitárias Lusófonas (2001).

 

 

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