REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 06

 

"It's a long way to the sea."

(Premiata Forneria Marconi, em River of Life)

 

Prelúdio escarlate 

— Fulano de Tal está?

— Sumiu!

Ele pega seu cachimbo, acomoda na boca e acende. O colorido alaranjado se intensifica pela sucção. Devagar solta o leite etéreo. Espirais no ar. Pássaros, dois, brigando por um inseto. Todas as paixões são insetos. Sem eles não haveria passarinhos. Nem a possibilidade da queda pela perda das asas.

Então, cai o inseto e caímos nós com ele sobre a cabeça de Fulano de Tal.

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
   
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HOMERO GOMES

Fulano de Tal

 

      Homero Gomes

   
   
 
 
 
 
 
 
   
   
   
   
   

Há dias não é visto. A filha reclama sua presença. O gato mia pedindo o leite que só ele sabe adoçar. Mas a mulher se refestela na cama – cansada, quer estragar o corpo. Fulano passou dias nas ruas bebendo pessoas. Sentia luzes, cheiros; pensava dores e ascos. Vivia sem saber o relógio.

Expulso da casa que ajudou a destruir precisa saber outras vidas. Sugar mais, beber mais, colher esse sangue escarlate e fresco dos dias.

Foram dias sem teto. Dormia em terrenos, calçadas. Experimentava o orvalho na grama, nas pedras. Suou desejos. Gritou álcool. Bebeu sentidos. Comeu gente. 

 

— Desde quando?

— Umas duas semanas.

Ele sabe que dificilmente encontrará Fulano. Sai pelas ruas, mas não procura. Quer encontrar a própria casa.

 

Em frente à pensãozinha, Fulano pensa em despedidas. Do que passou.

Pede um quarto de frente. Pra olhar a rua. Pra ouvir barulhos. Pra gozar ruídos. Pra chorar o asfalto quente e úmido.

Na parede fina do pequeno e estreito cômodo, uma gravura de São Cristóvão. No quarto ao lado, uma voz rouca de mulher aos berros. Finge às 3h00 da manhã.

Fulano senta no beiral da janela, antecipando o que seria, o que faria, onde estaria para concretizar o que se configurava como futuro.

A parca iluminação amarelada ilumina os olhos arroxeados, com veias e bolsas, romanticamente cortados por lépidos pontos de luz. Fugacidade dos momentos e a perda do sujeito – era isso fervendo em Fulano de Tal.

Acorda no chão do quarto desconfiado de insetos. Precisava lavar a boca, mas não cortaria mais os cabelos. Promessa.

O corpo doía, mas era confortável andar rangendo. Era um novo dia esse novo dia.

Fulano queria vomitar seu coelhinho. 

 

— Encontrou Fulano?

— Não. E sentirei saudades.

Abraçam o corpo um do outro como se chorassem uma perda. Definitiva feito a morte. As sombras descem sobre o primeiro lar. Sem mágoa nem raiva; apenas tristeza.

Os Tal nunca mais se encontrariam. 

 

Curitiba estava quente, mormacenta, preguiçosa. No calçadão da XV nem mesmo locutores, berradores ou enchedores de saco eram ouvidos. Ninguém vendendo, ninguém querendo nada da vida da gótica província.

No chafariz da Osório, manchas de mofo e fungos; restos de fezes na água. Fulano de Tal lembra que precisa de um banho. Mas quer provar pessoas.

Decide começar em um café. Quer ser ignorado, anulado para poder sugar o que fosse o serumano e o que viesse do serumano. Não sendo.

Fixa o olhar sobre um homem baixo, desproporcional em relação à cabeça. De meia idade. Com tintura no cabelo.

Esse senhor se avermelha tentando descascar a maçã. Não compreende ou conclui o que queria. Balança a cabeça negativamente e bufa. Não está dando conta do computador que tinha à frente.

Cansado, sai do café sem perceber que Fulano senta no lugar que deixou vago.

O programa que usava ainda está aberto.

Um pequeno texto.

As primeiras reações de Fulano foram de infamiliaridade, de estranhamento, de não-aceitação. Por isso, pediu uma folha em branco e copiou o texto como ele via na tela. Em nada interferindo nem alterando.

Falta apenas o título. É simples. Com letras maiúsculas, dá nome ao primeiro alimento conquistado. À crônica entregue pra quem quisesse ler. Talvez fosse essa a intenção do senhor gordo e baixo. Ou talvez o senhor gordo e baixo quisesse fugir pra não morrer. 

 

Depois daquele dia no café, Fulano andava com um bloco negro de papéis amarelados para sugar o que objetos, coisas e inexistências reverberavam em seus olhos, emanavam em suas orelhas, vomitavam em seus sentidos.

Todas as luzes e sombras do serumano e de suas esferas em rabiscos sobre o papel.

Fulano desenharia os coelhinhos do outro. 

 

Intermezzo púrpura

 

A vida em sociedade consome com todas as identidades. Fulano de Tal queria reencontrar essas identidades perdidas, recriar o sugado em momentos, captando não o que via, pois o que via já estava perdido em névoas, mas o que percebia como visto, sonhado, mentido, sofrido, desejado pelo outro. Foi o que fez. Captou o real sem mentiras, sem ser o observador nem o objeto. Acalentou a compaixão no peito, mas sem choro. Conheceu a secura nos olhos. Desse exercício de sucção, bebeu do fel dos dias cinzentos, mas também da glória do ser comum, igual, sempre o mesmo na massa que borbulha fétida. Coletou belezas e tristezas, foi o abraço sem calor, mas abraço. Foi o cansaço quando cansaço. Foi a luxúria quando luxúria. Foi a porrada quando porrada. Foi o carinho quando carinho. Foi o desespero quando desespero. Foi a luta quando luta. Foi a ira quando ira. Foi a espera quando espera. Foi o sono. Foi a candura. Foi o sangue. Foi a torpeza. Foi o luto. Foi a magia. Foi o murmúrio. Foi a derrota. Foi o estupro. Foi a miséria. Foi o chicote. Foi a pena. Foi o martelo. Foi a antena. Foi o caminho de histórias de duas cidades. Foi uma viagem apenas de ida a dois titãs minúsculos. Foi a formiga e a aranha. Foi Curitiba. Foi São Paulo. 

 

Província — Em Curitiba aprendeu a se alimentar de restos. De mortos e de podridão. 

Eram três. Uma tinha o sobrenome impronunciável. Das outras, Fulano lembrava apenas da de coxa tatuada e da de mamilos contraídos. 

A de mamilos contraídos fumava pedra como se mamasse. As outras duas queriam se beijar enquanto Fulano as apalpava. 

A de coxa tatuada estava bem quente e úmida; deixou Fulano pronto. 

A de nome impronunciável abandonou o beijo canhoto para receber o sêmen que Fulano oferecia quente. 

Ela vomitou uma espuma branca, que ficou girando na água enquanto secava os lábios com a saia curta da de coxa tatuada. 

Esse movimento deixou Fulano pronto novamente, mas ele não quis permanecer ali, pois as pedras iam e vinham. Então, arrastou a de coxa tatuada para outro lugar. 

Por causa do ar da noite, o ânus dela estava frouxo e receptivo. Fulano não quis saber de risos nem de motivos e gozou surdamente no intestino dela enquanto perguntava seu nome: Olga. 

Fulano de Tal saiu caminhando pelo centro da cidade prestes a amanhecer. 

A província amanheceu. Fulano amanheceu. A BR-116 sob os pés. 

 

Viagem — Era uma cadelinha branca. Pelagem rala. Dava para ver pequenos pontos negros se mexendo sobre o couro rosa. Eram pulgas. 

A agonia do vento nos olhos. O ardido na ponta dos dedos. A viagem se iniciava com um tom branco de vapor. Daquele que sai da boca quando o frio é infernal. O gelo queima. 

A perninha da cadela treme. Da garganta sai um ganido chato, fino, que invade os ouvidos feito o frio. 

O andar foi lento. Compassado. Quieto. Fulano venceu a fome do dia e à noite encontrou um grande cacho de bananas pendurado do lado de fora de uma cerca. Deitou ali e ficou. Comeu até dormir. 

Acordou amarrado à bananeira. A cadela estava estripada a seu lado. Não haviam mais bananas. Nem cascas. Sobre uma das coxas havia um bilhete: Ladrão, safado! Vai morrer amarrado! 

Não morreu. Mas ficou ali por três dias frios. Três noites terrivelmente solitárias. Foi uma menina vestida de amarelo que o acordou no fim da desistência. As mãos roxas. 

Ela chegou mansa. Silenciosa. Com os dedos finos, desatou os rústicos nós da corda que sufocava as mãos de Fulano. Saíram de mãos dadas pela estrada. 

Era uma menina loira. Pele sardenta. Dava para ver pequenos pontos no corpo da menina que se mexia, roxos, rosas, arroxeados, rosinhas. Pretos. Não tinha pulgas. 

Fulano tentava puxar assunto. Queria agradecer. Mas a menina não dava pelota. Continuava andando. 

De dia andavam sobre o cascalho do acostamento estreito da BR-116. 

Cruzavam os estados por esta veia aberta: Rodovia da Morte. 

De noite dormiam sobre o mato abaixado pelas mãos cansadas de balançar. 

De dia comiam o que surgia de frutas, sementes, folhas. 

De noite gestavam a energia para continuar. 

Por três meses caminharam, cultivando o silêncio e a ausência. Precisavam-se. Uniram suas solidões para semear o caminho. 

Entristeceram quando os ruídos, intensificados nos olhos, surgiram à beira de tudo. Chegavam ao amontoado de coisa nenhuma. 

À beira do Rio Pinheiros caíram na teia dessa aranha sádica. 

Na despedida, a suave voz da menina sussurrou um adeus: Irina. 

 

Metrópole — Em São Paulo aprendeu a se alimentar do interior. De sangue e de vísceras. 

Amontoado. Amontoado de coisa nenhuma. É a própria vertigem em concreto. E Fulano imergiu naquilo como se fosse água morna. 

Feito retirante caminhou. Procurou. Andou à beira do Rio Pinheiros. Cheirava o asco que entranhava nos cabelos. 

Procurava a casa da tia. E foi pelo cheiro que encontrou. Tia velha fedia. 

Estava liberado o quartinho dos fundos, das ferramentas, das tranqueiras, dos lixos cotidianos. Entrou, deitou no chão e dormiu sonhando com sons metálicos, com sufocamentos, com pregos cravando a carne. 

Era noite alta, com lua cheia, quando acordou. Não pôde sair. Estava preso. Do lado de fora, um grande cadeado prata selava a porta de madeira esburacada. 

Fora do quartinho, risadas roucas e tabaco. Um grupo de curiosos se reunia para olhar o estranho parente. 

Falavam alto. Falavam uns dos outros. Falavam mal. Falavam de histórias sofridas. Falavam de acontecimentos distantes. Falavam. Falavam demais. 

Desse falatório, Fulano de Tal coletava, dentre as frestas, vidas, desejos, mentiras e ausências. Coletava o suco, a polpa de sua própria crônica. 

Todos os dias vinham pessoas olhar o estranho parente da tia velha. Mas só tagarelavam quando ela se retirava para limpar sua pele de uma espessa camada de fungos. 

Limpeza demorada. Sem cremes. Sem água. Apenas lama e cinzas. Lama e cinzas do quintal. 

Tudo o que ouvia, Fulano coletava na memória do papel e da carne. Marcava com sua fome as misérias do outro. 

Mas as próprias misérias, Fulano esquecia enquanto era preenchido por vozes. Deixava a balança pender para o lado obscuro do desconhecido. Para o outro. 

Por isso, todos achavam estranho o parente da velha Maria.

 

Réquiem anil

 

Agora, Fulano sabia que podia cessar. Findar seu corpo. Aniquilar a voz do outro que se manifestava nele.

Era noite quando desprendeu sem dificuldade as tábuas do quartinho. Por elas saiu e com elas construiu uma pequena balsa, usando uma fina corda de sisal.

Guardou o bloco negro na cintura, junto a uma tesoura que pegou do quartinho.

Andou pelas ruas cimentadas pela última vez e coletou delas o vaso que protegeria sua essência, seu sinal e marca em um mundo cindido.

 

A balsa ficou firme sobre o Rio Pinheiros. Nela, Fulano subiu mantendo o equilíbrio sobre os joelhos flexionados.

Deitou a tesoura sobre as tábuas. Deitou o vaso de barro entre as pernas.

Fulano deixou o rio levar lentamente a balsa enquanto via o movimento das margaridas, das estações de trem, das bolhas que subiam, das marginais e seus automóveis.

Teve tempo para pensar em tudo que fizera até ali e em tudo o que faria.

Lentamente e com cuidado, Fulano de Tal cortou o cabelo que deixara crescer durante os anos e colocou os fios no vaso, cumprindo a promessa.

Com a tesoura, cortou a veia do antebraço, gotejando os fios de cabelo com seu próprio sangue. Fixando, no vaso, sua essência, seu sinal, sua marca.

Posicionou o peito para frente, com os olhos mirando o traçado sinuoso do rio, e cravou a tesoura com força.

A dor foi terrível. Quebrou duas costelas, mas atravessou o peito, atingindo o coração.

Ainda teve forças para terminar o que tinha planejado.

Ficou em pé sobre as fracas tábuas da balsa, olhou pela última vez, ou pela primeira, a estrela da tarde, chamada Vênus, e caiu de costas nas águas fétidas e sem vida do Rio Pinheiros.

 

A quinze metros dali, um trem passa gemendo nos trilhos, com voz rouca e estridente. Feito um dragão.

Fogos estouram no Real Parque.

Há de tudo, menos silêncio nessas águas impuras.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Homero Gomes - (Curitiba/PR - Brasil, 1978).
Vem colocando trechos de seu livro «Jamé Vu» na Internet, enquanto ele permanece no prelo <www.twitter.com/hgomesjamevu>. Escreveu Sísifo Desatento (contos) – finalista do Prêmio Sesc de Literatura edição 2007 – <www.twitter.com/sisifodesatento>, Três (teatro), Mimesis (poemas e micro-prosa-poética) e A jornada de A Bao A Qu (infanto-juvenil). Colaborou com os periódicos brasileiros Rascunho, Cult, Ficções e, atualmente, é colunista de O Bule <www.o-bule.blogspot.com>.
Contato:
homero.gomes@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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