REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 01

 

Mário de Sá-Carneiro deixou-nos alguns dos mais belos, intensos e originais poemas da moderna poesia portuguesa. Poética de uma luminosidade obscura, impulsiva, dinâmica e trágica na sua expressão vivencial, continua a fascinar-nos graças ao seu torrencial e radical discurso metafórico.

A poesia de Sá-Carneiro é, sem dúvida, uma poesia fulgurante e intensa, uma poesia vertiginosa, violenta, poesia da obscura claridade, do caos, vinda do mundo abissal, de imagens raras, impetuosas e radicais, revolucionária dentro do Modernismo português e não só. Podemos dizer com António Ramos Rosa que” a riqueza sensorial e o predomínio de movimentos vertiginosos de grande parte da poesia de Mário Sá – Carneiro colocam-na ao nível das mais revolucionárias produções literárias e artísticas do nosso tempo. “ ( 1 )

Poemas como “ Taciturno “, “ Bárbaro “ ,“ Salomé “ , “ Rodopio “ , “ Álcool “, “ Distante Melodia “, “ Manucure “, “ Pied –de – Nez “ demonstram bem a força expressiva, a imagética impetuosa e revolucionária, o arrojo sintáctico e o ritmo vertiginoso desta poética de uma impetuosidade rara adentro da poesia portuguesa. E, como os versos que a seguir transcrevemos exemplificam, tendemos a afirmar que esta é uma poesia da Liberté de parole ou Alchimie du verbe como Rimbaud a desejava:

Há ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais –
Jóia profunda a minha alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais.

No meu mundo interior cerraram-se armaduras
Capacetes de ferro esmagaram princesas.
Toda uma estirpe de heróis e outras bravuras
Em mim se despojou dos seus brasões e presas.

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
   
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LUÍS COSTA

 

Algumas palavras sobre

Mário de Sá-Carneiro

                                                                    Luís Costa
 

Como vemos esta é uma linguagem torrencial, extremamente intensa, marcada por uma expressividade rara e original, radical. No entanto isto acontece, levando-nos a lembrar o expressionismo, salvo raros casos, dentro dos chamados ritmos tradicionais. Como Lacerda repara, a revolução da linguagem poética de Sá-Carneiro opera-se, sobretudo, na sintaxe, na manipulação semântica, nas sínteses e imagens bruscas, estabelecendo relações fulgurantes entre elementos díspares. O que há de inédito e mais significativo na sua poesia já não tem a ver com o simbolismo e futurismo, e antecipa a descoberta do Surrealismo. ( 2 )

E ainda quando o poeta segue os princípios e teorias estéticas do seu amigo Pessoa, como no caso do magnífico soneto paulista “ Apoteose” ele fá-lo sempre de um modo, talvez por impulsão, muito original, sempre com um arrebatamento pulsátil e visceral (ao contrário de Pessoa ) de uma criatividade arrojada, sem restrições, transcendendo assim os limites da linguagem.Basta como exemplo reparamos no encadeamento de neologismos empregados no último terceto do referido poema:

Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
Luar-ânsia... Luz-perdão... Orquideas pranto...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

- Ó pantanos de Mim - jardim estagnado...

O lado destruidor, violento e negativo é igualmente uma das características do discurso desta linguagem poética. Vejamos alguns exemplos :

“ no meu mundo interior cerraram-se armaduras
Capacetes de ferro esmagaram princesas.

Ou

Rasgavam-se cetins, abatiam-se escudos;
Estalavam de cor os grifos dos ornatos

Ou ainda a violência sensual, obsessiva, cruel, sado- masoquista, a roçar a loucura, de um dos seus mais belos poemas “ bárbaro” que transcrevemos aqui na íntegra:

Enroscam-se - lhe ao trono as serpentes douradas
Que, César, mandei vir dos meus viveiros de África.
Mima a luxúria a nua – Salomé asiática...
Em volta, carne a arder – virgens suplicadas...

Mitrado de oiro e lua, em meu trono de esfinges –
Dentes rangendo, olhar de insónia e maldição –
Os teus coleios vis, nas infâmias que finges,
Alastram-se-me em febre e em garras de leão

Sibilam os répteis... Rojas-te de joelhos...
Sangue te escorre já da boca profanada...
Como bailas o vício, ó torpe, ó debochada –
Densos sabbats de cio teus frenesis vermelhos...

Mas ergues-te num espasmo – e às serpentes domas
Dando-lhes a trincar o teu sexo nu, aberto...
As tranças desprendeste... o teu cabelo, incerto,
Inflama agora um halo a crispações e aromas...

Embalde mando arder as mirras consagradas:
O ar apodreceu da tua perversão..
Tenho medo de ti num calafrio de espadas –
A minha carne soa a bronzes de prisão...

Arqueia-me o delírio – e sufoco, esbracejo...
A luz enrijeceu zebrada em planos de aço...
A sangue, se virgula e se desdobra o espaço...
Tudo é loucura já quando em redor alvejo! ...

Traço o manto e, num salto, entre a luz que corta,
Caio sobre a maldita... apunhalo-a em estertor
...........................................................................
...........................................................................

- Não sei quem tenho aos pés: se a dançarina morta,
Ou a minha Alma só, que me explodiu de cor...

Há igualmente nesta poesia uma náusea ou desespero tedioso, uma espécie de sentimento existencialista da absurdidade como o vamos encontrar por exemplo na prosa de um Albert Camus ou de um Sartre:

Passar tempo é o meu fito
Ideal que só me resta
Para mim não há melhor festa
Nem mais nada acho bonito.

Em que o fim ou a morte é olhada como algo de belo e libertador. Isso é o que podemos perceber dos versos jubilosos do poema “ fim “:

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes –
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro...

É que Sá-Carneiro sofre de uma crónica insatisfação existencial dada a sua incapacidade de se identificar com a existência e com o mundo em que vive, onde se sente como um exilado ou emigrado, um inadaptado por natureza. Para além disso existe na sua poesia uma apetência romântica de transcender os limites de uma realidade dicotómica que lhe é difícil de suportar ( quero ser eu plenamente / eu o possesso do pasmo ) porquanto ela divide o eu do outro. Encontramo-nos perante o drama contemporâneo da identidade e da dúvida sobre a unidade solar da pessoa ( 3 ) : “ eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio/ pilar da ponte de tédio/ que vai de mim para o Outro.” A poesia de Sá-Carneiro é, como josé Bernardes bem repara, uma espécie de profusão de estilhaços Perante a impossibilidade da realização da transcendência unitária, entre o eu e o outro, da unificação dos estilhaços, só o suicídio lhe aparecerá como única saída possível. Pois:

Que farei na vida – o Emigrado
Astral após que fantasiada guerra,
Quando este Oiro por fim cair por terra,
Que ainda é Oiro, embora esverdinhado?

(De que Revolta ou que país fadado?)
– Pobre lisonja, a gaze que me encerra...
Imaginária e pertinaz, desferra
Que força mágica o meu pasmo aguado?

A escada é suspeita e é perigosa:
Alastra-se uma nódoa duvidosa
Pela alcatifa – os corrimões partidos...

– Tapam com rodilhas o meu norte,
– As formigas cobriram minha Sorte,
– Morreram-me meninos nos sentidos...

Mário de Sá-carneiro foi um poeta por natureza impulsivo, sísmico, uma espécie de cometa que mal nasceu logo desapareceu. Talvez, como algures disse Pessoa, não tenha deveras tido vida, mas só génio. Raramente “ cerebral “, faltou-lhe, ao contrário do seu amigo Fernando Pessoa, o sentido crítico, analítico. O que talvez o tivesse conseguido salvar do suicídio. Mas a verdade é que sem o suicídio não teríamos este Mário de Sá-Carneiro astral e encantador, mas sim outro. Quanto à falta de senso crítico é o próprio Sá-carneiro que o reconhece, quando, numa passagem de uma carta dirigida a Fernando pessoa afirma:

Você vê que em face das suas poesias eu me limito a distinguir o que acho mais belo – a dar simples impressão de leitura. É que o meu espírito não é como o de você um espírito crítico; não podendo assim analisá-las mais profundamente como desejaria [... ]. ( 4 )

A nosso ver a poesia de Sá-Carneiro, em contraste com a do seu amigo Pessoa, é uma poesia do saber imediato, ou seja, embora obedecendo a certas regras estéticas, ela não pergunta, nem põe em causa, mas antes actua por intuição e por isso o seu conhecimento das coisas é de uma intuição do sensível e de uma imediatez surreal. Sim, há nesta poesia, como já notava Alberto Lacerda, uma espécie de fogo pré- surreal. Nela não existe, como no caso de Pessoa, uma necessidade teórica por trás de cada poema. Quer dizer, enquanto muitos dos poemas de Pessoa têm um suporte teórico - racional, especulativo, de escola estética, isto é, programáticos, e que só à luz dessa escola devem ser compreendidos, a poesia de Sá- Carneiro não conhece tais imposições ou restrições. Encontramo-nos de facto perante uma poética da liberdade total, da autonomia da palavra que nos permite um acesso directo às coisas, para além de toda e qualquer racionalidade teórica. Poética que irá encontrar dentro da futura poesia portuguesa vários cultores, e entre esses, algumas das maiores vozes da poesia contemporânea.

No curto ensaio intitulado: “ Perspectivas da Poesia Portuguesa Contemporânea ", de que já citamos atrás uma passagem, António Ramos Rosa vê a poética de Sá-Carneiro como antecessora da de Herberto Helder. Passamos a citar:

[... ] Também o autor de “ A Colher na Boca “ ( Herberto Helder ), aprendeu a falar com a própria substância da obscuridade. Pela sua radicalidade, pelo que nela há de irreparável, pelo seu fulgor, pela sua intensidade e pelo seu dinamismo, esta poesia é a digna sucessora da palavra poética de Mário de Sá-Carneiro. ( 5 )

Contudo, nós dizemos ainda que: a linguagem extremamente metafórica, audaz e excessiva de grande parte da poesia de Sá-Carneiro é de facto radical e pertence ao domínio do inexprimível, do Ser, portanto é uma linguagem da revelação, visto que diz o que não é possível dizer-se, isto é, tem a sua origem nas regiões primordiais, nas obscuras profundidades do ser humano, nas tensões obsessivas, dionisíacas, para além do domínio da superficial estética apolínea , dos princípios morais, ou de um discurso redutível às exigências do intelecto ( 6 ) . E por isso pode ser vista, sim, como digna antecessora da poética da obscuridade – luminosidade de um Herberto Helder mas, igualmente, do discurso poético que vai das trevas ao relâmpago de um Luís Miguel Nava ou da insegurança da poética do medo de um Al Berto, e, na poesia actual, da escrita torrencialmente lírica de um Daniel Faria, ou ainda da poética violenta e cruel de um Jorge Melícias.


Notas:

1) António Ramos Rosa, no livro “ A Parede Azul “ , do ensaio “ Perspectivas da Poesia Portuguesa Contemporânea “, Caminho, Colecção Universitária, Agosto de 1991
2) Alberto Lacerda “ A poesia de Mário de Sá-Carneiro, Tragédia Sem Suporte, Colóquio/ Letras, N.º 117/118 (Set. 1990) http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=117&p=153&o=p
3) Da capa de trás do livro: “ Mário de Sá-Carneiro, Obra poética “ Publicações Europa América , Edição n. 153302/6649
4) Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, Assírio&Alvim, edição 646, Novembro de 2001
5) António Ramos Rosa, no livro “ A Parede Azul “ , do ensaio “ Perspectivas da Poesia Portuguesa Contemporânea “, Caminho, Colecção Universitária, Agosto de 1991
6) ibidem
7) Todos os poemas e passagens de poemas aqui citados foram transcritos do livro “ Mário de Sá-Carneiro, Obra poética “ Publicações Europa América , Edição n. 153302/6649

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Luís Costa, Züschen, Dezembro 2009
 

 

 

Luís Costa (17 de Abril de 1964, Carregal do Sal. Portugal).
Tem vindo a editar trabalhos em revistas e sites digitais como: revista Conexão Maringá, revista Zunái, jornal Triplov, site Triplog e revista Agulha.
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