REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

   

I Acto

São 3 horas da madrugada. Ouve-se o ruído dum vidro grande a partir-se. Imediatamente a seguir, um alarme. Logo depois, o som dum carro a arrancar. O carro parece grande e pesado, mas velho, pelo ruído do motor. Arranca a grande velocidade e pouco depois o alarme pára de tocar. São agora 3h e 3 minutos. O palco está às escuras. 

O palco ilumina-se, deixando ver um quarto decorado com um mau gosto caro e novo-rico. Um casal senta-se na cama, olhando os dois um para o outro, como se assustados. 

Personagens: Irene; Arlindo, marido de Irene; Rapaz chamado Paulo

DIREÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
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GRACIETE NOBRE

 

O Alarme

(peça de teatro)

 

         Graciete Nobre

 
 
 
 
 
 
 

Mulher, de nome Irene: ouviste?!

Homem, de nome Arlindo: O mesmo que tu. 

Entra um rapaz com um objecto grande e metálico na mão. Parece assustado e olha para os dois, mais assustados ainda. Ao mesmo tempo, ouve-se a sirene dum carro da polícia. Decorre um momento. Depois, Arlindo levanta-se e vai à janela, afasta a cortina, olha, e diz: 

Neg.: Vem aí a polícia! Estão a chegar!

Bri.: Temos que esconder o rapaz.

Neg.: Foge por aquela porta.

Bri.: Os vizinhos estão acordados. Apanham-no logo ou chamam a polícia. Pensas que os chuis são parvos?

Neg.: Veste este pijama. Dizemos que és um amigo do nosso filho que veio cá dormir esta noite.

Rap.: Porquê?

Neg.: Porque foste à discoteca e não apanhaste transporte para a outra margem, onde moras. Depresssa!

Bri.: E onde é que ele dormiu? Temos que desfazer uma cama.

Neg.: Não dá tempo. Dormiste no sofá da sala. Como está calor, não precisas de cobertores. Se perguntarem, o pijama é meu, porque te fica grande. Ou do nosso filho.

Rap.: Vocês têm um filho?

Bri.: Temos. É mais natural que seja do Pedro, são da mesma idade...

Neg.: Deixa para lá isso. Põe o ferro debaixo da cama. Não, atira-o pela janela das traseiras. Assim. Assim está bem.

Bri.: Vamos dizer que me roubaram as jóias. Lembrem-se de dizer que eu tinha um anel antigo, de diamantes, valia uma fortuna.

Arlindo e rapaz: Está bem.

Arlindo: Pensando melhor, nós não podemos dizer que ele é amigo do Pedro, porque o Pedro tem vivido sempre com a avó e nem conhece o gajo!

Rapaz: Isso é verdade, eu nunca vi o Pedro.

Irene: Não podemos dizer que ele é nosso parente?... é nosso afilhado!

Arlindo e rapaz: Afilhado?!

Arlindo:E depois vem-se a descobrir que não é. Os polícias não são parvos... quer dizer, é claro que eles são parvos, mas... eu já nem sei o que digo. Temos que nos despachar... e depressa!

Irene:Olha, é nosso afilhado de crisma!

Arlindo: Porreiro! Brilhante ideia! Só tu é que (dá-lhe um beijo)

Rapaz: Mas eu nem fui crismado!...

Arlindo:(Recuperando a compostura): Ó rapaz, isso não interessa. Tratamos do assunto amanhã. Crismas-te amanhã e nós é que somos os teus padrinhos. É um parentesco como outro qualquer.

Arlindo: Atira um lençol ou um cobertor, ou qualquer coisa, para cima do sofá. E tu, rapaz, acaba de vestir o pijama e rebola-te um bocado, para ele não parecer tão passado a ferro. Ó mulher, essa tua mania de passar tudo a ferro, as calças com vincos até mesmo as do pijama... francamente, eu sempre te disse... (Mudando de expressão): Cuidado, estou a ouvir passos na escada!

Batem à porta  

Polícia: Polícia! Abram, que é da polícia!

Arlindo: Porra! podiam ter demorado mais um bocado. Se fosse preciso, só chegavam amanhã...

Irene: E era se chegassem! O raio que os parta, que agora resolveram ser eficientes. (assustada): E se ainda por cima forem espertos?

Arlindo: Isso é que era bom! (rindo) Ah ah!

Polícia (dando murros na porta): Polícia! 

 O rapaz rebola-se pelo chão e amarfanha o cabelo

Arlindo: Sim, senhores polícias, façam o favor de entrar. Querem um copinho de cachaça? É da boa. Estejam à vontade.

Irene: Que eficiência! Que rapidez! Eu sempre digo que a nossa polícia é a melhor do mundo! E mais uma vez se comprova.

1 º Polícia: Porra! Então vocês não foram assaltados?

Arlindo: quer-se dezer, fomos... e não fomos.

2º Polícia (tirando o bloco de notas e um lápis): Então, foram, ou não foram?

Arlindo: Quer-se dezer...

1º Polícia: Foram, ou não foram?

Todos: Pois! 

1º e 2º Polícias: Então, foram, ou não foram?

Todos: Fomos. 

1º Polícia para o 2º: Então e sendo assim, toma lá nota da ocorrência e depois vamo-nos embora, que temos mais que fazer... nunca vi uma gente tão calma, numa situação como esta.

Irene (gritando e agarrando-se a ele): Ai senhor agente, que susto! Ajude-nos, pela sua saúde!

Arlindo (falando quase ao mesmo tempo): Ela quando se enerva fica sempre muito calma. É dos nervos.

1º Polícia: O que é que você está para aí a dizer?!

Arlindo: Ai, eu já nem sei o que digo.

2º Polícia: Então, vamos lá a ver, como é que você se chama?

Arlindo: Arlindo Augusto Madeira de Carvalho e de Pinheiro 

2º Polícia: e Você?

Mulher: Maria Irene Negreiros de Grilo e de Mota, com 2 eles e 2 tês.

Arlindo: Maria Irene Negreiros de Grilo e de Mota e Madeira de Carvalho e de Pinheiro 

2º Polícia: E tu?

Rapaz: E Você, se faz favor, que também se cá gasta...

2º Polícia: Vocês a mim parecem-me um bocado calmos de mais...

Rapaz: Paulo Alexandre Nogueira

Polícia, para o 1º: Então é assim: a gaja chama-se madeira de pinheiro, de carvalho e de nogueira. Com não sei quantos éles e dois tês.

1º Polícia: Homem, tu és burro todos os dias. Toma nota da ocorrência e cala-te.

Agora vamos lá a ver o que é que se passou.

Arlindo e Irene falando ao mesmo tempo:

Irene: Entraram por aqui cinco homens de pistola e de bigode...

Arlindo: Um barbugo latagão entrou po aqui dentro com uma faca...

1º Polícia: Vamos lá a ver: eram cinco, ou só era um?

Ambos: Eram cinco.

1º Polícia: Barbudos, ou de bigode?

Ambos: Barbudos e de bigode!

1º Polícia: E os barbudos de bigode tinham pistolas ou facas?

Ambos: Tinham pistolas e facas

1º Polícia: Esquisito... para que é que eles queriam as facas? Mas a porta não está arrombada!

Arlindo: Pois, mas isso foi porque eles tocaram à campaínha e quando eu abri, eles arrombaram a porta...

Irene: Quer-se dizer, eles empurraram a porta com muita força, que eu até caí, até me ficou a doer uma perna.

1º Polícia (para o rapaz): E tu, que dizes?

Rapaz: Pois!

Arlindo: o rapaz é muito lacónico.

1º Polícia: Ah, coitado, é atrasado mental?

Rapaz: Eu não!

Arlindo: Lacónico quer dizer que fala pouco.

2º Políca rindo-se: Ai tu não sabias? Tens a mania que sabes tudo e nem sequer sabes o que quer dizer lascónio. Quer dizer que fala pouco.

1º Polícia: Cala-te e toma nota da ocorrência. Estás a tomar nota de tudo?

2º Polícia: Então calo-me ou falo?

1º Polícia: Cala-te!

            Então vamos lá a ver: entraram por aqui cinco barbudos e de bigode, todos latacões, arrebentaram a porta e depois tocaram à campaínha e empurraram a gaja.

Arlindo: A senhora, se faz favor, que ela é minha mulher, casada e de papel passado.

1º Polícia: Você desculpe, isto é uma maneira de a gente falar... sem ofensa.

Então e depois?

Irene: Depois, roubaram-me as jóias.

1º Polícia: diga lá como é que eram as jóias.

Irene: um colar de diamantes Majólica, um pregador de esmalte que pertenceu à minha avó condessa, uma antiguidade de muito valor,

2º Polícia (escrevendo e falando): Um regador de esmalte... (mudando de tom): um regador de esmalte?! Bem dizia a minha mulher! E eu, a fazer pouco dela...

1º Polícia: Que é que dizia a tua mulher?

2º Polícia: Ela tem lá guardados um balde de esmalte e um jarro, que foram da avó dela. Eu a dizer-lhe que deitasse fora aquela porcaria, e afinal temos ali uma fortuna! O balde está furado, e então ela plantou lá uma sardinheira e pôsio na varanda.

Arlindo: Não, não, o senhor não percebeu bem. A jóia da minha mulher é um pregador, um broche, percebe, uma jóia da condessa.

1º Polícia: ah, pois. Tu, que tens a mania que sabes tudo, se calhar nem sabias que uma condessa é uma cesta de palha assim deste feitio, onde eles tinham o tal broche de esmalte.

1º Polícia: Mas atão, se o broche, que é uma coisa pequena, vale assim tanto, o regador e o jarro da tua mulher hão-de valer pró caraças!

2º Polícia: Não é um regador, é um balde.

Irene: Porra! O que o meu marido quis dizer é que a minha avó era marquesa e portanto, tudo o que era dela vale muito, claro.

2º Polícia: Marquesa? Como aquela dos consultórios dos médicos?

Arlindo: Não homem, a bisavó da minha mulher era duquesa, percebe?

1º Polícia: Ele nunca percebe nada, escreve aí: a bisavó da senhora, desta gaja, era uma senhora duquesa marquesa viscondessa. Uma pessoa de gabarito! Já não há muitas assim, digo-to eu.

Irene: A vovó era uma senhora muito fina.

2º Polícia: Pois. Eu já tinha percebido... mas o balde das sardinheiras da minha patroa...

1º Polícia: Cala-te pr' aí com as sardinheiras da tua senhora e toma mas é nota da ocorrência. E que mais é que os maganões roubaram?

Irene: Eu já estou de tal modo baralhada, que nem sei o que hei-de dizer nem como é que hei-de falar. Porra p'ro caraças!

Arlindo: Desculpem, ela fala assim porque está muito nervosa. Também nos levaram um autêntico Picasso e um original do Rembrandt.

1º Polícia: O Picasso não é aquele que fazia assim uns riscos? (desenhando os riscos no ar). Isso nem vale a pena tomar nota, porque é uma coisa que não presta para nada. (voltando-se para o 1º Polícia): Sabes, a gente lá na terra tínhamos um burro que se chamava Picasso. E outro que era o Piruças.

1º Polícia: cala-te p'raí e toma mas é nota da ocorrência.

Continua e depois

 

  II Acto

Cena 1

Irene e o rapaz, em casa no dia seguinte. Entra Arlindo.

Irene: Compraste o jornal?

Arlindo: Comprei, e olha, não se fala doutra coisa no prédio!

Irene: Quero lá saber do prédio, uma casita num bairro mixuruca... quando as pessoas de qualidade lerem no jornal que nós somos ricos, não vai faltar quem nos empreste dinheiro e alguns até o dão. Lê lá a notícia.

Arlindo lendo: "Foi assaltada uma residência particular, pertencendo a um tal senhor Arlindo de Madeira de Oliveira e de Carvalho". Isto aqui foi engano, não é Oliveira, mas o resto está bem.

Irene: Lê lá o resto, e depressinha, que eu estou com os nervos em pé..

Arlindo: "Cinco indivíduos de barbas, provavelmente um disfarce, arrombaram a porta da moradia, tendo surripiado um regador de esmalte"... o quê? Ora bolas!

Irene: Oh que caraças! Lê lá o resto.

Arlindo: "Levaram também uns quadros das paredes, sem valor comercial... a bisavó da dona da casa, a senhora condessa marquesa duquesa de Majólica, aparentemente ficou arruinada, pois não deixou objectos de valor."

Irene (rindo): ao menos essa da duquesa condessa marquesa de Majólica está óptima. Nem eu própria de tal me lembraria...

Arlindo: O pior é o resto. Quem é que nos vai dar dinheiro, sabendo que nós não temos nada, o que, aliás, é verdade?

Rapaz: Você pode escrever um desmentido, numa carta ao director. Se você quiser, eu mando-o pela Internet.

Arlindo: Boa ideia. Ora escreve aí: Senhor director, há algumas incorrecções, umas gralhas na notícia que a mim me diz respeito, que eu gostaria de esclarecer.

O rapaz toma nota num papel.

  Cena 2
 

Os mesmos, mais tarde. Entram visitas. 

Arlindo: Eu sou um desgraçado! Estamos arruinados!

1ª Vizinha: Ora ora ora, que modéstia. Quem tinha tantos valores em casa e dois Ferraris na garagem, há-de ter muito mais no banco e em acções, e assim.

2ª Vizinha: E nos bancos da Suíça, pois claro.

Arlindo: Ora, umas coisitas, pouca coisa, e agora nem posso mexer nesse dinheiro, porque os meliantes também me levaram o passaporte.

1ª Vizinha: Ó vizinho, não seja por isso, nós temos umas poupanças. À gente de bem sempre se arranja alguma coisa, o meu marido já disse.

2ª Vizinha: Só o que eu acho esquisito é que eu nunca vi os Ferraris, mas eu sou tão distraída...

1ª Vizinha: E tu percebes alguma coisa de carros? Eu, por mim, também nunca reparei nisso, nunca os vi.

Irene: Nem viu, nem vai ver, porque os gajos, quer dizer, os larápios também os levaram.

1ª Vizinha: Só o que eu não percebi, é que nós, cá no prédio, não temos garagem.

Arlindo: Ah, pois, isso foi gralha dos jornais. Eles estavam estacionados naquela rua ali, na esquina ao pé da mercearia. Mas os ladrões tiraram-me as chaves do bolso e fugiram neles.

1ª Vizinha: Roubaram-lhe as chaves do bolso do pijama?

Irene: Não, do bolso do casaco Armani. E também levaram o casaco Armani.

2ª Vizinha: Isso deve ser alguma marca boa?! Não é?

Arlindo: É uma marca muito boa, mas a minha mulher é que entende dessas coisas. (Em aparte): que burras, grandecíssimas bestas! Eu estava à espera que viesse gente mais fina, mas aqui neste bairro... isto é que foi uma má escolha, também... não havia dinheiro para mais, ora bolas.

1ª Vizinha: A sua bisavó devia ser uma senhora muito fina, não era?

Irene: Era era. Por acaso era.

2ª Vizinha: E o seu bisavozinho?

Irene: morreu na batalha de La Lys. Morreu como um herói, claro.

2ª Vizinha: Lali? Ah, pois.

1ª Vizinha: a família do senhor também devia ser gente de bem?

Irene: De bem e de bens

1ª Vizinha : gente de teres?

Arlindo: A minha mulher exagera... era realmente uma família razoável, mas modesta. A minha tataravó

2ª Vizinha: tataravó? Que é isso?

Irene: ele quer dizer tetravó. Os brasileiros das telenovelas é que dizem tataravó.

1ª Vizinha: Ah, já entendi, essa tal tatata, quer dizer, a sua avozinha, ela era brasileira?

Arlindo: Não, a tataravovó era uma condessa francesa. Aliás, no seu tempo,(outros tempos, claro) ela foi amante de vários artistas famosos.

2ª Vizinha: Ai sim?

Irene: Do Picasso, do Mozart, do Shakespeare...

Arlindo: Oh filha, também não exageres

Irene: Do Vieira da Silva...

2ª Vizinha: E esse Teixeira da Silva também era músico?

Arlindo: Deixem para lá essas coisas!

Irene: O meu marido não gosta muito de falar destas coisas, sempre era a tataravozinha dele...

2ª Vizinha: Claro, é muito natural.

Arlindo: Mudando de assunto: diga lá então ao seu marido que me arranje o chequezinho, está bem? É que eu preciso de comprar outro carro, aqui em Lisboa não tenho mais nenhum, os outros dois Ferraris estão em Paris...

2ª Vizinha: Eu vou dizer. Mas o dinheiro que ele tem não deve chegar, acho eu.

Arlindo: Arranja-se um bocado aqui, outro dali, nós depois recompensamos bem quem nos ajudar, claro. Assinar documentos e assim é que não pode ser, que nos roubaram também os bilhetes de identidade. E o seu marido, não nos poderia arranjar também uns trocados?

1ª Vizinha: Vamos ver o que é que se pode fazer. Mas então e os ladrões não vos levaram as cartas de condução?

Irene: Olhe que engraçado, por acaso não. É que elas estavam ali em cima da mesa, porque nós, antes de nos deitarmos, estivemos a ver as fotografias.

Arlindo: Era um favor que nos faziam. Eu, pessoalmente, consideraria qualquer empréstimo como um favor pessoal.

2ª Vizinha: Entre vizinhos e entre gente de bem, tudo se conserta.

Irene: Gente de bem, e de bens.

2ª Vizinha: que simpáticos. Engraçado, que quando vocês se mudaram para cá, parecia que não tinham onde cair mortos, mas, claro, quem vê caras não vê corações.

Irene: Nem carteiras. (à parte): Olha o estafermo! Escusava de me vir com esta. Então até amanhã, vizinhas, que a gente precisava de descansar um bocadinho... muito gosto. Voltem amanhã, com os chequezinhos.

Vizinhas: pois naturalmente! 

As 2 vizinhas cumprimentam-nos e retiram-se. 

Aparece à porta uma mulher bem vestida, com ar mundano. Abre os braços e dirige-se a Irene 

Xaxá Lili: Oh, minha querida!!!

Irene confusa: Eu conheço-a?

Xaxá Lili: Ainda não conhece, mas isso resolve-se. Sou a Xaxá Lili!

Irene: Aquelas das revistas da alta sociedade?

Xaxá Lili: Sem tirar nem pôr. Sabe, querida, eu decidi vir visitá-la quando li no jornal aquele pequeno contratempo que lhe aconteceu... você nem vai acreditar! É que nós ainda somos parentes, sabia?

Irene(aparte): Ai não sabia, não!... (para Xaxá Lili): parentes?!

Xaxá Lili: imagine, a sua bisavó era prima da minha. Até se pode dizer que somos do mesmo sangue. A minha bisavovó, eu quando era pequena chamava-lhe a avó Bibi, era nem mais nem menos do que a senhora duquesa de Cabo Verde.

Irene: Ora quem diria que somos primas?!

Xaxá Lili: É verdade!

Arlindo: Sabe, a minha tataravó, eu quando era criança chamava-lhe avó Tatá, imagine que criancice... era a condessa de Champigny. Era francesa.

Irene: Ela foi amante do... (Arlindo faz-lhe sinal para se calar)

Xaxá Lili: Prima direita da minha avó tatá, a baronesa de Champignon.

Irene (em voz baixa para o marido): Eu desconfio que esta Xaxá Lili ainda é mais vigarista do que nós os dois juntos.

Arlindo: Não te atrapalhes e disfarça. Ela depois apresenta-nos à alta sociedade. (Em voz alta para Xaxá Lili): Sabe, nós, como ficámos sem documentos, precisávamos dum emprestimozinho. Coisa pouca, só para comprarmos um ou dois automoveizitos para remediar...

Xaxá Lili (com um sorriso encantador): dinheiro é que não há. Mas se quiser ver a minha árvore genealógica... podíamos até comparar a minha com a vossa...

Arlindo: Agora não obrigado.

Xaxá Lili: Sabe, a vovó Bibi perdeu tudo quando se deu o incêndio do palácio. Foi um horror. Até os cavalos fugiram, que nunca mais se soube deles.

Irene: Bem, o palácio é o menos. É um horror, claro, mas a sua antepassada devia ter outros bens...

Xaxá Lili: Imagine, a bisavó era uma pessoa tão convencional... um pouco antiquada, aliás era muito velhinha, e então ela guardava o dinheiro todo no colchão. Naquele tempo usavam-se colchões de palha, com uma abertura a meio para mudar a palha, percebe?

Irene: Percebo...

Xaxá Lili: Um dia, a criada de quarto, quando a bisavó estava em viagem pelo Oriente, resolver por o colchão a arejar...

Arlindo: E o dinheiro, estou mesmo a ver, foi um ar que lhe deu!

Irene: Foi ao mudar a palha?

Xaxá Lili: Não falemos nesses pormenores prosaicos, enfim, a rapariga fugiu com a fortuna das família. Ouço dizer que a família dela está agora muito bem, até frequenta a alta sociedade e tudo. Gente sem nível, claro. Oportunistas sociais!

Irene: Gente dessa conheço eu muita.

Arlindo: E então a avozinha não tinha bens ao luar?

Xaxá Lili: Ao luar, propriamente não tinha, ou melhor, tinha tido mas vendeu tudo.

Irene: E meteu tudo no colchão de palha, já percebi.

Xaxá Lili: Foram tempos revolucionários, sabe? Ela tinha umas propriedades na Rússia, em São Petersburgo, e com o comunismo... perdeu tudo, está claro.

Arlindo para a mulher: Toma nota desta ideia, que não é má. Numa altura qualquer podemos dizer o mesmo, é chique.

Xaxá Lili: E então, como dizia, ela nunca mais quis ter bens ao luar. Aliás, desde aí, passou a viver sempre em casas alugadas. Desde o incêndio do palácio. Dizia ela que os bens este mundo são passageiros, mas que o sangue azul, esse ninguém no-lo tira.

Arlindo: Era muito espirituosa. Diria mesmo era uma virtuose

Xaxá Lili: Era, era. Virtuose, pois.

Arlindo: Mas a vovó tatá, a duquesa de Champignon, essa devia ter uma fortuna, claro!

Xaxá Lili: Claro! Mas o vovô tatá, o senhor barão de Champignon, esse perdeu tudo ao jogo e com mulheres francesas. Nessa altura era muito chique um nobre arruinar-se por amor e pelo jogo, claro!

Arlindo: Chiquérrimo. (Para a mulher): toma nota disto, que nos pode fazer um jeitaço. Eu desta, nunca tal me lembraria, mas é verdade que estas coisas aconteciam.

Irene: A sua tataravó é que não deve ter achado nada chiquérrimo...

Xaxá Lili: Pois não. Fugiu com um príncipe russo para Moscovo, mas... claro, vocês sabem o que aconteceu aos príncipes russos...

Irene: O que foi?

Ãrlindo: Eu depois explico-te. (Para Xaxá Lili): Sabe, ela às vezes tem lapsos de memória.

Xaxá Lili: Engraçado, eu também. Sabe, deve ser de família.

Mas, minha querida, você com esse nome não pode entrar na alta sociedade portuguesa. Temos que lhe arranjar um diminutivo, eu, por exemplo, chamo-me Maria da Encarnação. Que tal você chamar-se Nené?

Irene: Isso a mim parece-me nome de cabra, Mémé.

Arlindo: Não, não eu por acaso já reparei que essas senhoras têm todas nomes de gato.

Xaxá Lili: Pois tem razão. A semana passada, imaginem vocês, ia eu a passear a pé numa zona de vivendas com a minha amiga Chinha, eu ia a falar muito alto porque ela ouve mal, quer dizer, é muito distraída, e eis senão quando estávamos a ser perseguidas por todas as gatas da vizinhança. Elas eram gatas amarelas, gatas pretas, brancas, cinzentas, pardas... uma delas, mais atrevida, chegou mesmo a arranhar-me a perna e rasgou-me uma meia. Das mais caras!

Irene:  Pois, agora imagine que íamos a passear no campo e você a chamar-me Mémé. Eram as cabras todas atrás de nós, umas brancas, outras amarelas, outras... e isto sem falar nas ovelhas, nos carneiros e nos chibos.

Xaxá Lili: Chibos?!!! Você, minha querida, deixe-me dar-lhe um conselho: Minha cara, você não deve nunca falar de cabras, de ovelhas, de palha, essas coisas assim campestres não ficam bem no nosso meio.

Arlindo: Nós lá na terra tínhamos uma gata chamada Bichana.

Xaxá Lili: Óptimo nome, boa ideia! Você passa a chamar-se Bichana, e nunca, por nunca ser diga o seu nome verdadeiro, que parece mal.

Irene: Então e se me perguntarem?

Xaxá Lili: A querida responde assim: "a mim, toda a gente me chama Bichana. Trate-me assim, porque eu não estou habituada a ser tratada doutra maneira."

Irene: Então e a minha empregada doméstica?

Arlindo: Que hoje está de folga...

Xaxá Lili: Essa tem que a tratar por Minha Senhora, claro!

Irene: Claro! Aliás, ela sempre me tratou assim.

Xaxá Lili: Mudando de assunto, eu sei que vocês, de momento, estão sem dinheiro e sem documentos, mas mais tarde, eu precisava dum emprestimozinho, coisa pouca, só para comprar umas obras de arte. É claro que também me hão-de dar uma doação, essa sim avultada, para a organização humanitária em que eu me ocupo por desfastio. Faço parte da direcção, por acaso.

Arlindo: Claro, claro, mas não falemos no vil metal, é deselegante.

Xaxá Lili: Claro, claro. Ainda bem que toca nesse assunto. Sabe, é chique, e portanto é um costume no nosso meio, fazer doações sob anonimato. Nada de documentos com o vosso nome e coisas assim, percebem? É claro que essas coisas se vêm sempre a saber e quanto mais forem feiotas em segredo, mais badaladas são nas colunas sociais, como sabem, aliás.

Arlindo: Pois sabemos.

Irene (aparte): Que grandessíssimo estafermo! Desta, nem eu me lembrava.

Arlindo: Eu também gostava de entrar para essa organização de caridade...

Xaxá Lili: Bom, bom, ainda é muito cedo para falarmos disso.

Arlindo: É que eu sempre fui muito benemérito. É da educação que recebi. Não se fala muito disso, porque eu também sempre preferi o anonimato, claro!

Xaxá Lili: Faz você muito bem.

Irene: Mas essa sua organização de caridade, trata de quê, querida?

Xaxá Lili: É uma Fundação para a ajuda de crianças abandonadas e que tenham olhos azuis.

Arlindo: Olhos azuis?!!!

Xaxá Lili: Sim, olhos azuis.

Irene: Mas porque?

Xaxá Lili: Porque a titi, a senhora marquesa de Fornos de Algodres... ah, a propósito, foi lá que eu nasci. Nasci por acaso em Fornos de Algodres porque a mamã tinha ido passar uns dias ao palácio. Nasci no solar da tia marquesa, claro.

Arlindo: Claro... mas deve ser muito difícil encontrar em Portugal crianças abandonadas e de olhos azuis. Até porque os nossos pobres quase sempre têm olhos escuros.

Irene: Os pobres e os outros também.

Xaxá Lili: De facto, o senhor Madeira de Carvalho e de Nogueira acaba de tocar num ponto essencial do minha actividade. Realmente, o que me dá mais trabalho é encontrar essas crianças, mas já temos algumas, e agora estamos na mira de mais duas, que estão em vias de virem a ser abandonadas. Mas como ia a dizer há bocado, a tia marquesa era muito excêntrica e detestava todas as crianças que tivessem olhos escuros ou verdes. Pelo contrário, adorava as de olhos azuis, e deu-lhe este capricho, muito chique, de lutar por esta causa. A Fundação chama-se abreviadamente FAOA e eu sou a presidente vitalícia e honorária.

Arlindo: Você desculpe, mas há uma coisa que eu não percebi. Você disse que estão na mira de duas crianças prestes a serem abandonadas. Como é que sabem que elas vão ser abandonadas?

Irene: E como é que ajudam as crianças abandonadas?

Xaxá Lili: Damos dinheiro às famílias. Elas só as abandonam porque são pobres, percebe?

Irene: Ah, acho que percebi. Então e aquilo que o meu marido perguntou, das que ainda não foram abandonadas e vão ser?

Xaxá Lili: Olhe, vou-lhe dar um exemplo de que me lembrei agora. Eu tenho uma prima, coitada, que está com sérios problemas económicos, por causa do marido, que gastou tudo ao jogo... tudo, ou quase tudo. Bem, a minha prima está tão desesperada, coitada, que anda a pensar em abandonar os dois filhos. Ora, felizmente, tanto o rapaz como a rapariga têm olhos azuis!

Arlindo: Espantoso! Que coincidência!

Irene: E que idade têm os meninos?

Xaxá Lili: Dezoito anos. (Sorrindo beatífica):São gémeos.

Arlindo e Irene (sinceramente espantados): Ah! Ah! Pois!

Irene: E são muito chegadas, você e a sua prima?

Xaxá Lili: Somos unha com carne. Na verdade, até vivemos na mesma casa, no palácio da Vovó Tatá.

Arlindo e Irene (olhando um para o outro, sinceramente espantados): Ah! Ah! Pois!

Arlindo: Bem, nós desde que fomos assaltados, também chegámos a pensar seriamente em abandonar o nosso Pedro.

Irene: Oh querido, isso não! Abandonar o nosso Pedro? Sabe, eu não concordo com ele.

Xaxá Lili: Ora, não queiram comparar o vosso caso com o das pessoas que têm sérias dificuldades económicas. Bem, além disso, ele não deve ter olhos azuis, pois não?

Irene: Não, isso realmente não, mas eu também, fui sempre contra esta ideia.

Xaxá Lili: Não queiram comparar! Até porque vocês vão ser contribuintes líquidos da FAOA.

Arlindo: Ah é?... Pois é!

Xaxá Lili: Mudando de assunto, vou mandar-vos aqui a minha parente, a Sra.  Marquesa das Malveiras. Tratem-na por tia.------------------Etc. a copiar pelos app.

  Cena 3 ou 4
Mais tarde, cena 3 ou 4, 5, ou etc (falta manuscrito)
 

Arlindo: Ora porra, Xaxá Lili, não nos lixe, que a gente cá por nós, já entendeu tudo.

Xaxá Lili: Tudo o quê, filho, quer dizer, tio...

Arlindo: Tio uma merda, foda-se, que esta gaja mexe-me com os nervos...

Irene: Ora, não se exaltem, nós todos já percebemos tudo... Ó Xáxá, nós andamos todos ao mesmo. Não me diga que ainda não entendeu... a gente somos gente esperta, percebe? Assim muito inteligentes não seremos, mas, porra, em terra de cegos, quem tem um olho é rei, não é?

Xaxá Lili: Ai lá isso é, mas... e daí?...

Irene: Daí, minha cara, a gente somos tão pobres como você e a sua tia e a sua prima. Agora, é a gente juntarmo-nos e fazermos um esquema que dê, percebe?

Xaxá Lili: Ah!... eu isso, realmente ainda não tinha percebido, achei que vocês eram novos-ricos e parvos!

Arlindo: Novos ricos quem nos dera a nós sermos, que somos velhos pobres mas espertos, agora parvos... isso aí, alto e pára o baile...

Xaxá Lili: Ou então, achei que vocês eram de boas famílias e pobres, aristocratas arruinados... confesso que fiquei cá nas minhas dúvidas...

Irene: Aristrocatas filhos de funileiros, eu, e de vigaristas ele, isso sim.

            E agora, minha cara, vamos falar a sério! Porra! Foda-se! Farta de enganar tansos e de me fingir de estúpida estou eu...

Arlindo: E eu!

Xaxá Lili: Mas isso é uma boa ideia, meus caros. Cheia até aos cabelos de vigaristas pacóvios e espertezas saloias também eu, que nem já me aguento de dores de cabeça. Fora aqueles que foram parar à cadeia por "negócios", quer dizer, assuntos, que eu, por mim, nunca entendi. Pois que a mim nunca ninguém me apanhou.

Arlindo: Ah! Então agora, finalmente, já nos começamos a entender...

Xaxá Lili: Eu bem que desconfiei daquela primeira notícia dos regadores de esmalte...

Irene: Pois é, minha querida, mas a si convinha-lhe mais acreditar...

Xaxá Lili: Pois lá isso é uma verdade... porra pr'ó caraças!

Arlindo: Enquanto estávamos para aqui a falar, minha querida Xáxá, eu tive uma ideia brilhante.

Irene: Quando ele diz que teve uma ideia brilhante é porque teve mesmo. Não é para me gabar, mas o meu marido é um génio. E muito modesto!

Xaxá Lili (desconfiada): Vamos então lá ouvir essa ideia fantástica...

Arlindo: A ideia é fazermos outra organização de caridade, mas mais convincente do que a sua. Desculpe lá, Xaxá, mas essa dos olhos azuis é assim.... um tanto descarada.

Irene: Eu por acaso também acho!

Xaxá Lili: Então diga lá.

Arlindo: Fazemos a associação dos pobres, com a intenção de pedir aos ricos para dar aos pobres.

Xaxá Lili: Meu caro, se a sua ideia brilhante é essa, esqueça-a, porque o que agora está na onda é pedir, ou até mesmo roubar, aos pobres para dar aos ricos. Bem, a diferença entre roubar e pedir é um tanto relativa, queiram desculpar.

Arlindo: Ao contrário, segundo me parece, do Zé do Telhado e do Robin dos Bosques? Deixe-se de filosofias e sejamos pragmáticos!

Xaxá Lili: Ora exactamente. Exemplos disso é coisa que não falta por aí. Você vai a um sítio de pobres pedir para os pobres, meu caro, e com o dinheiro que juntar faz um jantar para ricos com caviar e champagne. Mas olhe lá, você não lê as colunas sociais?

Irene: Tenho que concordar que a Xaxá é esperta como o caraças. Ó Arlindo, nós parece que somos assim um bocado ingénuos.

Arlindo: Direi mesmo pacóvios. Muito temos que aprender...

Xaxá Lili: Há outra coisa importante. Aos pobres nunca se pede roupa nem coisitas. Se pedirmos roupa, dão-nos assim uns trapos esfarrapados...

Irene: Que é o que eles usam, coitados...

Xaxá Lili: Mas isso a nós não nos interessa. Se nós, pelo contrário pedirmos aos pobres em géneros, eles até dão bastante, lá isso dão, mas nada que preste. Uns electrodomésticos assim enferrujados e velhos, que nos países civilizados se deitam ao lixo, ou umas bugigangas foleiras, assim como aqueles bibelots que vocês têm ali. (apontando para uns objectos espalhados por cima dos móveis)

Irene (um pouco vexada): Você acha, Xaxá Lili?

Arlindo: Enquanto vocês estavam a falar, enfim, conversas de mulheres, eu estive cá a pensar com os meus botões...

Irene: E que pensaste tu?

Xaxá Lili: E que pensou você?

Arlindo: Ora aí está! A nossa associação de pobres vai-se chamar, nada menos do que Fundação RICO!

Xaxá Lili e Irene: Rico? Porquê?

Arlindo: Ora ouçam: RICO, tudo em maiúsculas, é uma sigla. Agora é só encontrar as palavras certas... deixem-me cá ver, por exemplo: relativamente incapazes... deixem-me cá ver

Irene: De contribuir, ora deixem-me cá ver...

Xaxá Lili: Muito bem, muito bem: de contribuir para o orçamento familiar, ou seja, fundação RICOF.

Arlindo: Não é ricof, é rico.

Xaxá Lili: Está enganado, meu querido, Ricof soa assim a russo, está a ver? Eu inspiro-me muito nos russos, nos príncipes russos, etc., está a ver?

Arlindo: Eu por acaso já tinha reparado.

Irene: Eu também...

Xaxá Lili: Bem, agora temos de definir os estatutos da nossa fundação. O melhor é impormos uma selecção muito estreita, eu encarrego-me disso. Só pode contribuir quem tiver rendimentos altíssimos.

Irene: Já sei! Quem pagar muitos impostos!

Xaxá Lili: Não seja parva, minha querida! Só os pobres é que pagam muitos impostos.

Arlindo:  Cala-te, querida., e deixa ouvir. Eu por acaso concordo com a Xaxá Lili.

Xaxá Lili: Os ricos descontam nos impostos as casas de praia com piscina, que eles dizem que é para receber os clientes, os carros, brutas máquinas que eles declaram que fazem parte do status, e, claro, não declaram rendimentos nenhuns. Isto já para nem falar dos automóveis topo de gama das respectivas amantes, claro, que esses aí são incluídos na rubrica das despesas de representação, claro...

Irene (ingenuamente): Mas porquê, Xaxá Lili? Para si é tudo claro, mas para mim...

Arlindo:  Ó querida, eu depois explico-te.

Xaxá Lili (num tom pedagógico): E depois, em vez de pagarem impostos, recebem indemnizações do Estado. Percebe?

Irene: Não!?...

Arlindo: Não percebe, mas concorda, não é, meu amor?

Irene: Claro, claro, concordo muito. Vamos a isso. Nós também nunca pagamos assim muito de impostos...

Arlindo:  Mas isso é porque nós somos pobres.

Irene:  Então já não percebo nada outra vez...

Xaxá Lili: Deixe para lá...

            Bem, Irene, você precisa de aprender uma série de coisas de cultura geral. Os ricos a sério têm uma cultura que os distingue. É um pouco genérica e vaga, por isso dá para fixar facilmente. Vocês não têm por aí umas quantas enciclopédias?

Arlindo: temos aquela ali, em 2 volumes, comprada a prestações. Ó Irene, a gente já a  pagou?!

Irene: Claro que não! Tu disseste que não valia a pena...

Xaxá Lili: Isso não presta. Têm que arranjar qualquer coisa melhor.

Arlindo: Com o dinheiro dos maridos das vizinhas, pronto, já está resolvido.

Xaxá Lili: Ora vamos lá a ver a vossa cultura geral: vejamos a música clássica....

Irene: Ai, eu adoro aquela cantora gorda. Até me dá arrepios...

Xaxá Lili: Deixe para lá os arrepios. Qual cantora gorda?

Irene: A espanhola, ou talvez seja italiana... Ó filho como é que a gaja se chama?

Não estou a ver...

Irene: Ah, já sei, é a Maria do Carmo, a Maria do Carmo... de Gisé.

Xaxá Lili: Ah, a ópera Carmem de Bizet!

Irene: Pois, parece que é assim que a gaja se chama.

Xaxá Lili: Meu amor, você está a confundir a Carmen de Bizet com as pirâmides de... como é que é???

Irene: Pirâmides de Bisel, de Cinzel, ah, já sei, de Ginseng. É qualquer coisa assim, não é?

Xaxá Lili: Não, não é. Vamos fazer o seguinte, quando numa festa social alguém falar de ópera na sua frente ou consigo, você diz que detesta ópera.

Arlindo: Ó querida Xaxá, isso no nosso meio não fica bem!

Irene: Qual meio, eu já estou a ficar baralhada....

Xaxá Lili: É assim: ela diz que tem um trauma de infância, porque a mãe, que era melómena convicta

Arlindo: (saboreando a palavra): Con-vi-cta...

Xaxá Lili: A sua mãe obrigava-a a ouvir ópera desde que você acordava até que adormecia.

Irene: (confusa): Qual? A minha?!!!

Arlindo: Ó querida, eu depois explico-te. Já agora, o melhor é dizer que a minha mulher também tem alergia às pirâmides, não acha, Xaxá?

Xaxá Lili: Porque da última vez que foi ao Egipto, o grupo em que seguia foi atacado por terroristas separatistas e ela viu tombar à sua frente a sua melhor amiga.

Irene: A Jaquina? Mas eu nunca lá fui... e a Jaquina também não...

Arlindo: Qual Jaquina! Ó filha, isto é uma estratégia, percebes? Olha, ó querida, eu depois explico-te. Está bem?

Xaxá Lili: E você, caro Arlindo, dê lá uma de cultura, para vermos a sua situação.

Arlindo: (pegando num volume enciclopédia e lendo-o em parte): Não sei se vocês sabem, caros amigos e confrades, que, de acordo com os mais eminentes cientistas.

Xaxá Lili: Até aqui foi muito bem!

Arlindo: O Oceano atlântico chega a atingir, fora da orla marítima, nada menos do que mais ou menos, exactamente cinco kilómetros de profundidade. Parece que é o que aqui diz, ó filha, chega-me os óculos.

Irene e Xaxá Lili ficam boquiabertas a olhar para ele. Depois:

Irene: Porra, que fundo! É quase como daqui a Algés!

Arlindo continuando: Caros confrades e amigos, devemos reconhecer que a sociedade em que vivemos está em vias de volatilizar a cleptomania, transformando-se, ela própria, numa cleptocracia!

Irene e Xaxá Lili ficam boquiabertas a olhar para ele. Depois:

Irene entusiasmada: Muito bem! Não percebi uma palavra! Isto é que é cultura!

Xaxá Lili: O pior é que isso pode ser cultura a mais... ou até mesmo a menos... sabem, convém ter bastante cultura, mas não ter demais... bem, mas para conversa de homens, até nem está mal. Comprem então lá a Enciclopédia Verbo com o dinheiro das vizinhas e treinem a vossa cultura. Treinem bastante, que vai ser preciso. Eu por mim, tenho que ir andando.

Arlindo e Irene ficam a estudar a enciclopédia.

Irene: As proteínas extraídas do milho...

Arlindo: Ó querida, isso não interessa.

Irene: Por falar em querida, e aquela serigaita da Xaxá, que te estava sempre a chamar querido? Na minha cara? Eu posso ser pobre, mas não sou parva!

Arlindo: Ó filha, isso são tiques de gente fina. Aprende, que é para depois fazeres o mesmo. A mim o que mais me irritou naquela fulana, foi ela fazer-nos ver que nós de espertos não temos nada... aquela dos príncipes russos, e assim...

Irene: Eu senti-me burra e fiquei danada.

Arlindo: Não fiques danada, pode ser aborrecido, mas nós temos que ser realistas: a verdade é que, até agora, nós temos sido uns vigaristas ingénuos. Vivendo e aprendendo... (folheando o livro e lendo, com uma expressão triste): género de escoliópteros que vivem na África Austral...

Irene (muito aborrecida): Isso também não interessa.

  Cena 4
 

Entram Xaxá Lili e a Sr.a Marquesa. Fazem-se as apresentações e cumprimentam-se todos. Depois...

Arlindo:  Sra. Marquesa, a quadratura do círculo, tem, ao longo das épocas, sido procurada como Leitmotiv, e aliás em vão, pelos mais eminentes matematólogos.

Sra. Marquesa: O que me diz?

Xaxá Lili:  Mudando de assunto...

Irene:  Mas há outra definição em que eu me reconheço plenamente, que é a imaginação como reportório do potencial, do hipotético, do que não é nem foi nem talvez seja alguma vez, mas que poderia ser. No tratado de Starobinsky (1).

Sra. Marquesa: Ai sim? Pois, tem toda a razão...

Chamando à parte Xaxá Lili: Ó filha, tu percebes alguma coisa do que eles estão a dizer?

Xaxá Lili:  São intelectuais.

Sra. Marquesa: Ah! E não poderão falar duma maneira mais simples?

Xaxá Lili:  Podem, podem.

Sra. Marquesa: Eu logo vi! (Dirigindo-se a eles): Eu gosto muito de ver a telenovela brasileira das sete. E vocês, o que acham?

Irene:  A novela, tendo como sua origem remota a Idade Média, celebrizou-se particularmente no célebre ciclo da Demanda do Graal.

Sra. Marquesa: Graal?

Arlindo:  E, claro, na gesta epopaica dos conhecidos ritos iniciáticos da fértil mitologia céltica. E no ciclo da Bretanha!

Sra. Marquesa: Ah! Eu logo vi!

Xaxá Lili:  Mudando de assunto... a Sra. Marquesa precisa de dinheiro.

Sra. Marquesa falando timidamente: Do vil metal, percebem?

Irene:  Que é isso do vil metal?

Sra. Marquesa: Ora, aquela famosa expressão de Camões.

Irene:  Camões?! Aquele pirata inglês que tinha um olho tapado e uma perna de pau? Ele parece que acabou por se casar com a rainha da Inglaterra daquela altura, não foi?

Sra. Marquesa: Perna de pau?!!!

Arlindo:  Já percebi. A Sra. Marquesa precisa de metal. Pode acontecer a qualquer um, direi mesmo, ao mais pintado...

Sra. Marquesa pegando num espelho: Oh querida, acha que exagerei na maquilhagem?

  Cena 5
 

Entra o 2º Polícia trazendo na mão um regador e um balde 

2º Polícia: Quanto é que vocês me pagam por este regador de esmalte e por este balde? 

Arlindo sem perder o sangue frio: Aqui tem o seu metal, Sra. Baronesa. Mas isto é de alumínio...

2º Polícia: Que é muito melhor do que o esmalte, porque não enferruja!

Arlindo:  Meu caro, tudo isto é um equívoco. Esse regador não valia nada. Mesmo que fosse de esmalte. Ponha-se lá fora!

2º Polícia: Ai sim? Está muito bem, eu ponho-me lá fora... mas é que eu andei a fazer umas investigaçõezinhas sobre os registos de automóveis e coisas assim, principalmente dos Ferraris. Mas então se isto não vale nada, estamos conversados, que eu tenho um primo que é porteiro dum jornal e que namora com uma jornalista estagiária... bem, então eu vou-me embora. Adeuzinho.

Arlindo:  Não, não, espere aí, porque eu a princípio não tinha percebido muito bem. Eu vou já passar-lhe um chequezinho.

2º Polícia: Pois, era disso que eu estava mesmo à espera.

Arlindo:  E dê esse regador e esse balde àquela senhora Baronesa, porque ela veio aqui dizer que precisava de metal.

2º Polícia entregando os objectos Sra. Marquesa: Então pegue lá e que lhe façam proveito, porque nós somos uns para os outros.

Xaxá Lili:  Acabemos com esta brincadeira. A Sra. Marquesa quer ser, e vai ser, a fundadora e presidente honorária da fundação RICOF.

Irene: E até já temos os símbolos e os brasões: um balde e um regador de plástico.

Xaxá Lili:  Não diga disparates, minha querida.

Sra. Marquesa: Não, não, a ideia não é má. Eu conheço um artista plástico muito conhecido, um pintor abstracto, que pode transformar estes dois interessantes objectos num logotipo completamente irreconhecível. Até mesmo num brasão de família. Ou da fundação, preferencialmente, é claro.

Xaxá Lili desanimada: Então pronto, está bem.

2º Polícia: O meu regador de esmalte vale assim tanto?

Arlindo:  De esmalte, não, de zinco. A fórmula química é ZNT ao quadrado F de T elevado ao cosseno de X  e Y à quinta potência.

2º Polícia: Quinta potência?  (agressivo): Olhe lá, o que é que você quer dizer com isso, está a gozar comigo?

Xaxá Lili: Gentalha!

Sra. Marquesa: Quem é este?

Irene: Este é o Sr. General de Pereira e Moreira.

Sra. Marquesa: General?!!! Onde estão os galões?

Xaxá Lili:  Ó tia, e desde quando é que a querida percebe de galões?

Irene: Se o que falta são só os galões, então não seja por isso. (colocando uma fita vermelha como as das ordens honoríficas em volta do pescoço do polícia): Ele até tem uma comenda, foi agraciado e tudo...

Sra. Marquesa, que ainda com o balde na mão se aproxima do polícia e palpa a fita vermelha): Ah, pois.

2º Polícia muito satisfeito: Essa do general foi boa! (Voltando-se para o Arlindo): Então e o chequezinho?

Arlindo rasgando ostensivamente o cheque: Espere aí! Deixe-se estar, que ainda vamos ganhar algum. Sra. Condessa, há-de desculpar a minha insólita ousadia, mas o Fundador da Fundação RICOF sou eu!

Irene:  E a Presidente honorária sou eu!

Sra. Marquesa: Eram, meus queridos, mas agora sou eu, porque eu tenho umas coisas para lhes comunicar...

Arlindo:  Como por exemplo?...

Sra. Marquesa: Como por exemplo... eu conheço muito bem, e aliás sou unha com carne... com vários jornalistas, dos melhores, é claro... basta uma pequena informação da minha parte, e a sua fundaçãozinha, Kaputt.

Arlindo:  Kaput?

Sra. Marquesa: Ai o Sr. Intelectual não sabe alemão? Que grande falha da sua parte! O que eu quero dizer é que a sua fundaçãozinha, Kaputt, ou seja, vai para o galheiro! Percebeu?!

Arlindo:  Acho que percebi. Infelizmente...

2º Polícia: E eu tenho um primo que é porteiro dum jornal e que namora com uma jornalista estagiária, que se chama Mafalda e que é filha da minha vizinha Marcelina...

Arlindo:  Pois, eu já entendi tudo.

Irene: Tudo o quê, filho? Que eu por mim, não estou a entender nada...

Arlindo: Eu depois explico-te. Sabem, a minha mulher às vezes tem lapsos de memória.

Xaxá Lili: É como eu, eu também. Sabe, deve ser de família.

Arlindo:  Mas deixemos isso. Já que vocês conhecem tantos jornalistas que nos podem dar cabo da nossa fundaçãozinha, ou que, pelo contrário, a podem promover na comunicação social, dependendo, obviamente, das tão afamadas e ancestrais cunhazinhas, proponho, na minha qualidade de membro da Fundação, que demos imediatamente início à 1ª reunião inaugural, umas vez que estão presentes todos os sócios iniciais. Tem a palavra a Sra. Presidente.

Sra. Marquesa:  Muito bem. Tomem os seus lugares e demos início à sessão.

Arlindo: Sim senhor, mas primeiro deixe-me colocar a minha mais recente condecoração, para dar uma certa solenidade ao evento.

De cima dum móvel, retira um emaranhado de fitas largas, escolhe uma azul e coloca-a de bandoleira.

Arlindo: Esta é a ordem de... como é, querida?

Irene: Sei lá, ó filho, tu tens tantas, como é que queres que eu fixe isso tudo?

Sentam-se todos à volta da mesa, solenemente, com a Sra. Marquesa no lugar principal.

Sra. Marquesa:  Caros amigos e confrades, com as palavras que imediatamente a seguir proferirei, dou por aberta a sessão 1ª e portanto a sessão inaugural e fundadora, da nossa esperançosa e benemérita fundação RICOF, na minha qualidade de sua Fundadora e Presidente. Alguém tem alguma coisa a dizer?

Irene: Eu tenho uma importante declaração a fazer.

Sra. Marquesa:  Tem então a palavra a sócia honorária n.º 2.

Arlindo: N.º 2? Então e eu?

Sra. Marquesa:  O senhor Madeira de Pau Santo é, evidentemente e por direito, que ninguém lhe pode tirar, obviamente o sócio honorário n.º 1

Arlindo:  Muito obrigado!

Sra. Marquesa:  Não tem de quê.

Irene: No uso da palavra que me foi concedida pela nossa ilustre Fundadora, a Sra. Presidente Sra. Marquesa, quero declarar o seguinte: o quadrado da hipotenusa, de acordo com a gesta epopaica dos nossos ancestrais antepassados, como é, filho?

Arlindo:  Daqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando (2), naturalmente devemos considerar a fórmula química XHZ2 OH ao quadrado, dos catetos!

2º Polícia aplaudindo:  Muito bem!

Xaxá Lili:  Muito bem, de facto, mas deixemos esses preliminares, para passarmos ao ponto um da ordem de trabalhos.

Arlindo:  Muito bem. O Sr. General fica então encarregado de escrever a acta.

2º Polícia:  Isso do Sr. General é comigo? OK, eu realmente sempre tive jeito para tomar nota das ocorrências. Não é para me gabar...

Arlindo:  Claro, claro...

Irene: Claro, claro... nós sabemos.

Sra. Marquesa: Prosseguimos então, caros consórcios beneméritos. Em primeiro lugar, os jovens de olhos azuis, beneficiários da FAOA irão fazer um peditório aos pobres. Com os proventos assim angariados, obviamente, iremos de seguida organizar um jantar para ricos no mais caro e conhecido restaurante da cidade. Os nossos convidados serão então convidados a contribuir para a RICOF. Para estimular a sua generosidade deles, aquele que der mais terá uma entrevista num dos melhores jornais do país, com direito a fotografia na primeira página.

Irene: Como se fosse um leilão?

Sra. Marquesa:  Ora exactamente. Calculo que por esse meio juntaremos um fundo considerável, e isto só para começarmos as nossas actividades de beneficiência, é claro.

Arlindo:  Concordo inteiramente, minha grande amiga, na condição de a Sra. Marquesa me dar 90 por cento dos proventos, uma vez que a ideia foi minha..

Sra. Marquesa:  Nem pense nisso, é tudo para os pobrezinhos.

Arlindo:  50 por cento, e estamos conversados.

Sra. Marquesa:  Muito bem, mas, é claro, nada de assinar papéis.

Irene:  Não concordo e voto contra.

Xaxá Lili:  Ora deixe-se de tretas. E o que é que os papéis poderiam dizer? Que os fundos da fundação foram depositados na conta do sócio honorário n.º 1?

Arlindo: Não, minhas queridas, acontece que a Sra. Marquesa é a Presidente incontestada, mas eu sou o tesoureiro.

Irene:  Eu voto a favor disso, por unanimidade.

2º Polícia:  Eu também. Como esta senhora me deu a condecoração, eu concordo com tudo o que ela disser, e vou escrever na acta que o tesoureiro foi eleito por unanimidade.

Xaxá Lili e Sra. Marquesa: Alto aí! Não, não, nem pense em escrever isso.

2º Polícia:  Ou as Vossas Incelências concordam comigo por unanimidade, ou vão já para a esquadra por desrespeito da autoridade.

Xaxá Lili e Sra. Marquesa: É claro que concordamos! Nós estávamos só a brincar...

Arlindo:  Sabe, Sr. General, eu cá por mim, começo a simpatizar imenso com Vossa Excelência!

Irene: Eu por acaso também!

2º Polícia:  É que eu gosto muito da sua senhora, da sua patroa.

Arlindo:  Mau!!!

Irene:  Ó querido, isto é só uma maneira de falar. Que ciumento! O meu marido é muito ciumento.

Arlindo:  Então e tu, que ficas danada quando a Xaxá Lili me chama querido?

Xaxá Lili:  Ai ela não gosta? Ó querida, isto é um modo de dizer muito chique!

Irene:  Vá ser chique para casa da sua avó torta! Sua galdéria!

Xaxá Lili furiosa:  Sua funileira!

Sra. Marquesa muito irritada e levantando-se:  Suas nojentas! Suas peixeiras de Alcântara. Suas lambisgóias!

Irene:  Ai é? Chamar-me funileira a mim, que sou filha duma baronesa?

Xaxá Lili:  Baronesa?! Então e eu?

Sra. Marquesa:  Peixeiras!

Irene para a Sra. Marquesa: Sua galdéria! Sua vaca!

Xaxá Lili para a Sra. Marquesa: Sua lambisgóia! Sua funileira!

Sra. Marquesa:  funileira, eu?!!!

Arlindo:  Calem-se as três!

2º Polícia:  Calai-vos, ou então, vai tudo para a esquadra, por desrespeito á autoridade!

Xaxá, Irene e Sra. Marquesa: : Nós estávamos só a brincar!

Arlindo:  Prossigamos!

Sra. Marquesa:  Fica então estabelecido que o Sr. Madeira de Figueira é o secretário da fundação, e aliás, por direito. Sr. General, teme nota, para a acta.

Xaxá Lili:  Ó Bichana!

Irene distraída olha para o chão e para trás: Oh filho, tu não me digas que a gata da vizinha entrou outra vez pela janela e me foi outra vez ao bacalhau!

Arlindo:  Ó querida, ela estava a falar contigo...

Irene:  Ah, pois! Sabe, Sra. Marquesa, a mim toda a gente me chama por Bichana.

2º Polícia:  E você deixa? (Levantando-se): Ó mulher, você imponha-se. A si, na minha frente, ninguém lhe chama uma coisa dessas, senão vai já tudo para a esquadra, por desrespeito á autoridade!

Arlindo:  Sabe, é uma moda...

2º Polícia:  Moda o caraças. Ela é a Sra. Irene e está tudo dito.

Irene: Sabe, eu não me importo nada que me chamem Bichana. Na verdade, até gosto.

2º Polícia sentando-se:  Ah, isso então é diferente...

Sra. Marquesa:  Sendo assim, a Xaxá passa a ser a sócia nº 1.

2º Polícia:  Então e eu?

Sra. Marquesa:  O Sr. General é... é ...é...

Arlindo:  O fiscal!

2º Polícia:  Aprovado por unanimidade.

Irene:  E com dois votos contra.

2º Polícia:  Muito bem, como diz a Sra. Irene Bichana, está aprovado por unanimidade e com dois votos contra.

Arlindo:  Muito bem! Assim é que é falar!

Sra. Marquesa:  sr. General, faça o favor de redigir a acta e de enviar os dados para o nosso gabinete de relações públicas... bem.... que é... é...

Arlindo:  Que é o Paulo.

Sra. Marquesa:  Pois exactamente! Muito bem, Paulo esse que depois os fará seguir para os jornais e revistas que eu lhe indicar. Está encerrada a sessão. 

  Cena 6
 

Irene e Paulo encontram-se em casa. Entra Arlindo com os jornais. 

Irene:  Então o que dizem os jornais? Estou mortinha por saber. diz lá!

Arlindo:  Espera aí, que eu ainda não tive tempo de ler porque vim logo a correr para aqui.

(Abrindo um jornal): Ora aqui está. (Lendo):"Foi ontem formada uma sociedade para protecção dos pobres, chamada, paradoxalmente Fundação Rico. São sócios fundadores duas peixeiras de Alcântara, uma funileira e um polícia de giro. O nosso jornal congratula-se ao constatar que as autoridades colaboram com os mais desfavorecidos"

Então e eu?

Irene:  Foi o polícia. Eu logo vo que ia dar bronca!

Arlindo:  E nem fala de mim...

Irene:  Ele não gostou de ti.

Arlindo: Ah, pois, mas de ti gostou, não foi?!!!

Irene: Sei lá! Ó filho, deixa-te de tretas, tu já viste bem a nossa situação?

Arlindo: Bem, realmente... mas olha, sejamos práticos: não estão aqui os nossos nomes, felizmente, portanto fica tudo em águas de bacalhau. Bem, por enquanto. Agora deixamos esfriar o assunto, e depois voltamos à carga.

Irene: O que sempre me agradou em ti, meu amor, foi o teu sentido prático. Se não fosses tu, eu nem sei...

Mas, já agora, vê lá o que diz aquela revista ali. A que eu gosto de ler.

Arlindo folheando a revista:  Olha, estão aqui umas fotografias da Sra. Marquesa e da Xaxá Lili! Num clube muito chique... e a escrever uns papeis...

Irene:  Ora lê!

Arlindo lendo: "A conhecida figura Xaxá Lili e a Sra. Marquesa das Malveiras no acto de assinarem um protocolo para a criação duma fundação com fins beneméritos, denominada Fundação RICORF." - Olha, puseram mais um R

Irene:  que quer dizer isso?

Arlindo lendoi: Assim  chamada por abreviatura de Fundação para a defesa e protecção dos Relativamente Incompetentes para Colaborarem no Orçamento Realmente Familiar.

Irene:  Realmente?!!!

Arlindo: Realmente, minha cara, estamos tramados. Esta gente é realmente muito esperta. Como acrescentaram mais um R, RICORF, nós nem sequer as podemos acusar de nos terem roubado a nossa ideia!

Irene:  Lê lá o resto.

Arlindo lendo: "O que é um nome politicamente correcto para dizer pobres. Foi tudo muito chique. A famosissima Xaxá Lili estava elegantíssima com um vestido de corte...

Irene:  Ora porra! Então e agora?

Arlindo:  Agora, minha cara, só vejo uma solução.

Irene:  Qual?

Arlindo:  Espera e vais ver!

  Cena 7
 

Repete-se a cena um do primeiro acto, até ao momento em que abrem a porta para entrar a polícia. Depois entram os dois polícias juntos, imediatamente seguidos por Xaxá Lili e pela Sra. Marquesa. Aproximam-se todos da boca de cena e diz Arlindo:  

Queridíssimos senhores espectadores, o que aqui acaba de se passar é tudo a fingir. Qualquer semelhança que possam ter encontrado com a realidade não passa de puro acaso, e nem sequer passou pela cabeça da autora. Se lhes pareceu que ela queria a criticar alguém que vocês conhecem, não foi essa a sua intenção!

Irene:  Nem a minha!

Todos um por um respondem: Nem a minha!

Arlindo:  Olhem que isto foi tudo completamente a fingir!

Todos: Tudo a fingir! Tudo a fingir! Tudo a fingir! Tudo a fingir!

Saem

FIM

 
 

Graciete Nobre

Lisboa, 30 de Junho de 1999                        

(o registo da obra está datado e assinado à mão)

 

  (1) In: Seis propostas para o próximo milénio, Italo Calvino, Lisboa: Teorema, 1998; p.111.

(2)  in Camões, Os Lusiadas.

 

 

Graciete Nobre (Castelo de Paiva, Portugal).
Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Mestre em Literatura Portuguesa Contemporânea pela Universidade Nova de Lisboa. Actividade Profissional: Ensino.
Livros publicados: Imaginália: A cidade dos desejos, Editora Luz das Letras, A Estalagem seguida de A Ilha das Cruzes - Duas Peças de Teatro, e The Inn: a play (na Lulu.com) .
Blogues:
Escrevedoiros, http://escrevedoirosemaluquices.blogspot.com/
Terra Imunda,
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© Maria Estela Guedes
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