REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

EUNICE SILVA

 

Os cortes de Dedekind

 
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Maria Estela Guedes  
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Soube-se desde os tempos da escola pitagórica (cerca do século VI a.C.) que a diagonal de um quadrado não é comensurável com o seu lado.

Por outras palavras, não existe uma razão entre dois números naturais que exprima o valor do comprimento da diagonal do quadrado de lado 1.

Os números conhecidos pelos pitagóricos eram apenas os números racionais, quocientes de dois números naturais. Ora, supondo a diagonal expressa por um racional, na sua forma simplificada, concluía-se que a fracção era redutível. A contradição resultava da única suposição errada: a diagonal expressar-se como um número racional.

Como é sabido, a escola pitagórica procurou manter em segredo esta descoberta, impondo silêncio aos seus membros sobre este assunto. Parecia-lhes provocar a ruína de toda a sua obra, já que defendiam que «tudo é número».

O segredo acabou por ser revelado.

Os matemáticos, durante gerações, atribuíram heuristicamente um número ao comprimento desta diagonal e denominaram-no de número irracional. A consideração de tais números conduziram os matemáticos a fundamentar o seu estudo na geometria. 

 
 
 
   
 
 
 
 
 
 
 
 
   
 

No século XIX, o matemático alemão Richard Dedekind observou que o tratamento geométrico dos números reais (racionais e irracionais) partia do pressuposto de que a recta é contínua, isto é, sem lacunas.

Afirmou explicitamente que a continuidade da recta se tratava tão só de uma suposição.

Dedekind pretendeu dispensar a geometria dos fundamentos da aritmética. Daí que o seu programa de investigação tenha recebido o nome de aritmetização da análise. 

Dedekind começou por notar que cada ponto da recta a cinde em duas partes disjuntas, uma à esquerda e outra à direita.

Chamou corte na recta real ao par de subconjuntos (A,B) de pontos da recta que verificam: 

1)    A e B não têm pontos em comum;

2)    se x é um ponto de A e y é um ponto de B, então x está à esquerda de y;

3)    se x  é um ponto de A, y é um ponto de B, e se z está entre x e y, então z é um ponto de A ou z é um ponto de B. 

Inspirando-se na representação dos números reais por pontos da recta, os seus afixos, Dedekind pretendeu definir número real sem, no entanto, recorrer à recta. 

Começou por definir corte (A,B) nos números racionais, como sendo uma partição do conjunto Q de todos os números racionais em dois subconjuntos de Q, A e B, tais que:

- se x pertence a A e se y pertence a B, então x<y.

Nota: A e B são disjuntos pela própria definição de partição. 

Continuou pela verificação de que estes cortes (A,B)  em Q podem revestir duas formas:

a)    A tem máximo e B não tem mínimo;

b)    A não tem máximo e B não tem mínimo. 

Prova-se facilmente, atendendo à definição de máximo e de mínimo, que não pode acontecer A ter máximo e B ter mínimo.

Pelo contrário, poderiam ocorrer cortes (A, B) em Q, tais que A não tivesse máximo e que B tivesse mínimo, mas seriam supérfluos para o objectivo de Dedekind: os números racionais definidos por a) viriam em repetição. 

Exemplo de corte (A,B) de Q do tipo a): A é o conjunto dos números racionais x tais que x<2 ou x=2, B é o conjunto dos números racionais >2.

Exemplo de corte (A,B) de Q do tipo b): A é o conjunto dos números racionais cujo quadrado é inferior a 2 enquanto B é o conjunto  dos números racionais cujo quadrado é superior a 2.

Recorde que o quadrado de um número racional é diferente de 2, conforme muito bem viram os pitagóricos.

Dedekind chamou a todos os cortes de Q do tipo a), cortes racionais; e a todos os cortes de Q do tipo b), cortes irracionais.

Intuitivamente, os cortes (A,B) de Q visualizados na recta real, correspondem aos cortes provocados na recta real pelo afixo de um número racional, que é o máximo de A. Para o outro tipo de cortes, os de tipo b), o ponto existe, mas o número racional, não. 

Dedekind construiu, pois, os números reais unicamente a partir da existência e propriedades dos números racionais.

Para dar aos seus cortes uma definição coerente, definiu também propriedades operatórias e relações de ordem, que fossem generalizações das propriedades e relações de Q, e que, por outro lado, «confirmassem» as propriedades pretendidas e muito utilizadas dos números irracionais. 

Richard Dedekind nasceu a 6 de Outubro de 1831 em Brunswick e faleceu em 12 de Fevereiro de 1916.

Entre os seus mestres, conta-se Moritz A. Stern, que chamava a atenção para os fundamentos da Matemática junto dos seus alunos. Advogava, contudo, que esta questão seria do foro da Filosofia.

Dedekind, pelo contrário, iniciou o estudo dos fundamentos da Matemática, ao procurar uma prova, sem recurso à intuição, do teorema: «toda a sucessão limitada e crescente tem limite finito».

 

 

 

Eunice Silva (Portugal)
-Licenciatura em Matemática Pura pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (1972);  -Profissionalização em exercício na Escola Secundária Pedro Nunes (1983); -D.E.A. en Histoire et Philosophie des Sciences pela Université de Paris I; -Co-autora da publicação da DGES «O postulado das paralelas de Euclides – suas origens, causas e consequências» (1984); -Assistente na FCL e professora do ensino secundário.

 

 

© Maria Estela Guedes
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