REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

ÂNGELA NOBRE

 

Elogio da Diferença

– alteridade, dinamismo e transformação
 

EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
Índice de Autores  
Série Anterior  
Nova Série | Página Principal  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
TriploV  
Agulha Hispânica  
Filo-cafés  
Bule, O  
Contrário do Tempo, O  
Domador de Sonhos  
Jornal de Poesia  
   

O diferente, o novo e o estranho é frequentemente interpretado como ameaçador. O reconhecimento de que é pela diferença que se avança, que se entende a complexidade, a teia das relações múltiplas, dos infinitos níveis que se intercruzam, seja num contexto individual, num diálogo de si para si próprio, ou num contexto colectivo, de grupo, instituição ou sociedade, constitui-se como algo que implica uma aprendizagem e uma experiência ou, melhor, uma vivência, que joga ao arrepio da prática e do pensamento dominante nas sociedades contemporâneas.

 
 
 
   
   
 
 


Podemos identificar duas perspectivas contraditórias face àquilo que surge como diferente. Por um lado, o pensamento dominante na civilização ocidental rejeita o diferente. De certo modo, esta rejeição está ligada à cultura de morte. Por outro lado, através de correntes de pensamento não-dominantes, surge o elogio da vida e da diferença.

Vida como diferença: a vida diferencia, seja a que nível for, da célula, ao órgão, ao ser vivo e ao ecosistema. O elogio da morte representa a tentativa de repetição, de fechamento e ainda de controlo, de aposta na capacidade de previsão - e de redução da interpretação da realidade ao modelo predefinido.

A relação entre as correntes de pensamento dominantes e não-dominantes faz-se de forma que, segundo a perspectiva dominante, só ela mesma é válida, de forma exclusivisista. O que é dominante, por si só, é invasivo, pervasivo e persuasivo, apresentando-se como único detentor da verdade, legítimo e genuíno, surgindo como óbvio, necessário e natural. O dominante é monolítico, imperialista e totalitário.

Tal como para Foucault o exercício de poder dá-se num jogo entre quem exerce o poder e sobre quem esse poder é exercido, sendo ambas as partes essenciais para que o poder se concretise, também o domínio do pensamento “mainstream” surge num jogo subtil de aparente não reconhecimento de qualquer que seja a alternativa, mas em que essas mesmas alternativas vão alimentando subversivamente o jogo.

No pensamento dominante temos a homogeneidade – nas correntes não dominantes temos a diversidade, a heterogeneidade, a fragmentação e a dispersão. Em termos históricos, em relação a cada época, é possível identificarem-se diferentes correntes e verificar-se o jogo de mútuas influências. Seja dum lado, seja do outro, quer o pensamente dominante, quer o não-dominante têm de permanentemente actualizar-se, afirmando-se a reafirmando-se na sua diferença: o pensamento dominante enraizando mais profundamente os seus pressupostos e o não-dominante trazendo novos pontos de vista que questionam, procuram destruir ou desestabilizar as certezas assumidas pelos pressupostos do pensamento dominante.

Desde a Antiguidade Grega que surge a necessidade de prever, de antecipar, de controlar, pois o desconhecido era assumido como negativo, à partida. Em contraponto com esta postura, surgem alternativas dispersas, já presentes nos pre-socráticos, em que o desconhecido é entendido como dinamismo, como vida, como movimento, e é assumido como bom e como desejável. Face à postura dominante surge quer a filosofia, quer a medicina, como respostas intencionais de formulação de um diagnótico ou de uma teoria, de elaboração de um tratamento, intervenção ou resposta: a realidade é deficitária, tem falhas, e é pela intervenção humana que essas falhas podem ser corrigidas. Alternativamente: a realidade manifesta-se de formas infinitas e são necessários abertura e acolhimento para que o máximo de potencialidades de cada situação concreta, hic et nunc, se concretize. O sucesso e a eficácia da intervenção humana passa não pela aposta em planos intelectuais e abstractos, redutores da realidade, mas pela capacidade de aderir e de se deixar afectar pelo dinamismo da própria realidade.

Certas áreas filosofico-científicas salientaram estas tensões, quer de forma implícita, as ciências de gestão, quer de forma explícita, a filosofia da ciência. Em gestão, o paradigma dominante, é ainda o mesmo de há cem anos, com Taylor e Fayol, os pais da gestão científica, engenheiros fascinados com o potencial da especialização de funções, da separação de tarefas e da programação exaustiva do processo produtivo. Esta perspectiva, de “comando e controlo” é ainda a dominante uma vez que é a que melhor responde a situações bem conhecidas e com uma evolução estável e previsível.

Por outro lado, as condições de turbulência, de imprevisibilidade e de complexidade cada vez mais intensas pressionam no sentido de rejeição deste paradigma dominante e de desenvolvimento de perspectivas alternativas. A passagem de uma sociedade industrial para pos-industrial, conceito este desenvolvido a partir do pos-guerra, surge como exemplo desta transição e mudança de mentalidades. O trabalho colaborativo, a liderança partilhada e a comunicação horizontal são exemplos de novas abordagens de gestão que estimulam a criatividade e a inovação.

Esta tensão entre o enfoque na previsão e no planeamento através de modelos abstractos versus a relação com a vida concreta, com a experiência e o estímulo da novidade, dá-se em termos individuais, organizacionais e societais. No seio de cada situação específica surge a necessidade de contrabalançar ambas as forças. Não se trata de rejeitar uma perspectiva em favor da outra mas sim de assumir que é o lado dinâmico, intuitivo e criativo que antecede e que determina o que é formal e procedimental.

Em relação à filosofia da ciência, esta vai desconstruir os pressupostos de base de cada ciência, salientanto explicitamente a forma como cada nova teoria destrona a anterior. Kuhn, Popper e Feyerabend salientam a importância da historicidade, da narratividade, da interacção social e da subjectividade na formulação científica. Em ciência, podemos considerar o processo de criação científica, extremamente criativo e disruptivo, tornando-se subversivo face ao conhecimento já instalado, e o processo de aplicação da ciência, procedimental, repetitivo e fechado, imune a críticas. A técnica, como ciência aplicada, pode ser interpretada como neutra face às pressões sociais ou à influência do meio, tal como o conhecimento científico, ou, alternativamente, ambos, técnica e ciência, podem ser interpretados como fruto de uma cultura, de uma mentalidade e, assim, não neutros e não imunes ao contexto social e histórico.

Na leitura de eventos históricos é possível salientar os processos de continuidade ou, inversamente, salientar a rotura e a mudança. O enfoque nos processos de transição tem a vantagem de salientar aquilo que era assumido como um dado, em termos de pensamento dominante, e que, a partir de certa altura, é colocado em causa e é substituído por outra interpretação ou perspectiva. Alternativamente, o enfoque na continuidade permite identificar várias fases da génese e do desenvolvimento de novas realidades, buscando elementos que já estavam presentes no passado e que, de certa forma, antecipam e profetizam aquilo que irá emergir no futuro. Esta leitura é fértil em relação ao desenvolvimento de géneros e de estilos artísticos, em relação a diferentes tipos de arte, as quais se influenciam mutuamente, da arquitectura à música. Como afirma o arquitecto, músico e encenador José Wallenstein, “a música é uma arquitectura”.

Em semiótica, na teoria do signo de Saussure, é pela diferença que se criam novos significados. Um sinal, som ou imagem – o “significante” – refere-se a um conceito – o “significado” – e é pela diferença entre sinais que chegamos a significados diferentes. Para Saussure a relação entre significante e significado é arbitrária, isto é, é determinada no exterior da relação. São as convenções sociais e o uso da linguagem que criam o processo de significação, de atribuição de sentido e a possibilidade de interpretação dos sinais, dos “significantes”. O sentido surge como a relação entre diferentes signos linguísticos. A diferença aqui surge como fundamental. A diferença constitui-se como elemento primordial do processo de interpretação.

Para Derrida os conceitos de “differance” e de desconstrução estão no centro dos processos de criação de sentido e de interpretação da realidade, processos sempre incompletos e provisórios. Segundo Derrida, “nada existe fora do texto” – texto interpretado como contexto, incluindo a situação concreta do uso da palavra.

Na relação connosco próprios, no jogo de espelhos interior, surge como que um mecanismo através do qual descobrimos o outro, o diferente, a alteridade, em nós mesmos. O novo totalmente novo é-nos inacessível, não o podemos reconhecer. É por aproximações sucessivas que todo o conhecimento se desenrola. Em ciência buscamos o estabelecimento de relações e de relações entre relações. Mas para além da ligação, da relação, é importante a transformação como processo de desenvolvimento, de emergência e de manifestação do máximo potencial presente em cada situação concreta. Esta transformação engloba e expressa o dinamismo da própria realidade, sempre em movimento.

Apesar de podermos conceber a realidade como movimento, apenas a apreendemos parcialmente, como que num filme de má qualidade em que se apercebem as fotografias em sequência. Avançamos de ponto fixo em ponto fixo, na ilusão de que cada ponto fixo é a realidade. Contudo o movimento é contínuo, não existe passado, presente e futuro mas sim presente-passado, presente-presente e presente-futuro, como nos diz Agostinho. A questão fundamental é a de que criamos a ilusão de que é pela cultura que avançamos, como indivíduos ou como civilização, mas é a própria cultura que representa o que nos agarra ao que é rígido e falsamente fixo. Daí a necessidade de ultrapassar a própria cultura. Este processo ilustra-se com a facilidade com que aderimos a certas ideias e concepções de nós mesmos, ou da realidade externa, e a extrema dificuldade em reconhecer as mudanças, as diferenças, a evolução e a transformação dessa mesma realidade, interior ou exterior.

Como aderir, acolher e exercitar esta abertura? Como exercer este potencial? Como participar activamente no dinamismo da realidade? Para Peirce, o âmago do conhecimento científico era alimentado pelo diálogo dentro da comunidade científica. Seria a discussão entre pares o melhor critério de validação e de melhoria do processo de criação científica. Também na vida é pela comunidade, pelas diferentes comunidades de vida, que avançamos no sentido de amplificação, de aprofundamento e de intensificação da exploração do máximo significado e do pleno potencial da realidade. Comunidade implica linguagem, uso da palavra e prática social. Podemos focar aspectos concretos ligados ao trabalho solitário, à investigação ou à reflexão isolada mas cada uma dessas actividades subentende a existência de uma comunidade específica que a suporta. Comunidade que envolve rostos, corpos, rotinas, ritos e gestos concretos.

Cada comunidade, como cada instituição, tende a abafar o seu próprio dinamismo, arrisca-se a subjugar o seu carisma àquilo que lhe é secundário, o rito tende a prevalecer em desfavor da abertura e da transformação. Assim, as próprias comunidades são palco de tensões que apenas se resolvem através dos mesmos processos comuns ao contexto de produção científica ou de evolução de uma civilização, isto é, pela acção e pela linguagem, acção e linguagem como processos primordiais de construção de sentido. O elogio da diferença – alteridade, dinamismo e transformação – é a adesão a esta atitude ou filosofia de vida, aprendida e partilhada em comunidade, entre pares. É o confronto com o novo que nos renova.

   
  À Ana Luisa Janeira,

Alguém que abre ao novo,

Que irrompe, rasga e revela,

Que abre caminho e expande horizontes,

Que foca a rotura da época histórica para realçar o inaugural,

Inaugurando-nos como seres humanos,

Seres, em que o humano é apenas adjectivo.

É pelo ser que vamos – se é possível existe.
 

 

 

Ângela Lacerda Nobre (1960, Lisboa)
Professora Adjunta do Departamento de Economia e Gestão da Escola Superior de Ciências Empresariais do Instituto Politécnico de Setúbal; Tese de Doutoramento “Semiotic Learning: a conceptual framework for facilitating learning in knowledge-intensive organisations”;
http://semiotica-em-aberto.ning.com; http://ageremeansaction.ning.com

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL