2º episódio - Entre o prazer e o martírio


Enquanto apanho das mulheres dentro da cabana, os homens, reunidos todos numa outra choça, bebem cauim e cantam em honra a seus deuses, ao som dos maracás. Ao que parece cansadas, as mulheres param de me bater e ficam todas por algum tempo me olhando, caladas. Encolhido na rede – unhado, dorido, desgraçado – mal tenho coragem de encará-las. Então a jovem e altiva cunhantã, com um simples movimento de cabeça, ordena que as companheiras se retirem, sendo prontamente obedecida. Tanta fidalguia, numa simples cunhantã, deixa-me intrigado. Quem será ela? Ainda hoje terei a resposta. Por enquanto, sei apenas que tenho diante de mim uma “cunhã-porã-poranga” (mulher belíssima) inteiramente “camixaima” (nua). Todavia, a minha desdita é tanta que a formosura da rapariga nada me suscita, a não ser vergonha. Eu, varão já provado em mulheres, sinto-me agora tolhido diante de uma simples cunhã. Quero desaparecer, puxo as beiras da rede sobre mim, como criança ressabiada, deixando apenas uma pequena fresta, por onde a espiono. Vejo quando ela, dando dois passinhos à frente, fala: “Iuri iké!”. Graças às aulas de tupi antigo que tomara de um padre jesuíta em Lisboa, compreendo que ela diz “vem cá!”, isto é, sai da rede e levanta-te. “Iuri iké!”, repete. Como continuo encolhido na rede, ela pergunta: “Re ti será?” (você tem vergonha?). Entendo tudo o que ela diz, mas meu desânimo é tanto que não me mexo. “Requau será maha xa nehnhe xa icó?”, ela torna a perguntar, querendo saber se eu a entendo. “Estou com vergonha”, por fim respondo, em português, esquecendo que a índia não me compreende. “Mãháta renhehê?” (o que você diz?), ela indaga. “Ixé xati xa icó” (estou com vergonha), digo-lhe, agora na sua língua. Um lindo sorriso, tão lindo quanto a flor do tajá, estampa-se-lhe no rosto. “Esiquiié umem, iuri iké!” (não tenhas medo, vem cá!), ordena, com a voz firme e ao mesmo tempo tão doce, que até a mais beócia das criaturas a obedeceria. Descubro-me devagar e, mesmo sabendo que os olhinhos puros da selvagem não enxergarão a minha nudez, não deixo de encobrir o púbis com as mãos – o que é a vergonha senão a filha dileta da malícia?

De pé, a um passo da cunhantã, vejo seus dois olhinhos amendoados mirando-me. “Amú tetamauara i pucu!” (o estrangeiro é alto), admira-se ela, cujo rostinho cor de mate alcança-me o peito. E, sem que eu tenha tempo de dizer algo, encosta-se-me ainda mais e apalpa-me o rosto delicadamente. “Tetamauara resá i apuá” (os olhos do forasteiro são redondos), comenta, deslizando a ponta do indicador sobre a órbita dos meus olhos, que se fecham. “Sesá i porang” (olhos bonitos), completa. Talvez ainda não vira alguém de olhos azuis. Em seguida, enfia os cinco dedinhos da mão direita na minha barba ruiva e pontiaguda, e, admirada, puxa-a para si, como querendo certificar-se de que não é postiça, pois, como se sabe, os índios são parcos em pêlos. Por um instante, até esqueço a maldita dor da perna machucada e sorrio.Vendo-me os dentes alvos, a cunhantã, tomada de grande curiosidade, passa a apalpá-los, esfregando os dedos pelas gengivas, proporcionando-me assim o primeiro prazer físico desde que caí prisioneiro. Mordo os dedinhos dela com os lábios, lambuzando-os de saliva, fazendo o rosto da cunhã abrir-se em sorrisos, como a flor da aninga sob os primeiros raios de sol. “Nde rãia porang” (teu dente é bonito), diz ela, já me apalpando o peito, mostrando-se admirada com os cabelos.

Desce-me em seguida à cintura, metendo a ponta dos dedos, de um a um, até completar os dez, no meu umbigo, provocando-me, tenho de confessar, dez arrepios. Então acontece o que eu já previa, e temia: a cunhantã, com a pureza das virgens e a desenvoltura de uma meretriz de Lisboa, fica de joelhos e, depois de apalpar-me os escrotos e o pênis por algum tempo, como que embevecida, deixando-os, confesso, em polvorosa, colhe-os na boca, como pencas de um fruto, passando a mordiscá-los deliciosamente. Entre o prazer e o martírio – pois sou um homem com os dias contados – seguro a cabeça da cunhantã e afasto-a de leve, sentindo-me mais uma vez envergonhado. Afinal, nem em Lisboa, onde cada conquista amorosa tinha para mim o sabor de um troféu, agradava-me ser visto como um “cunhã-mucu manguitauêra” (sedutor de mocinhas), como se diz em tupi. Então ela se levanta e, com olhos de felina, diz: “Nde porang, ndoicoi abá nde iabé” (tu és bonito, não há pessoa como tu). “Como é teu nome?”, pergunto. “Marã-pe eré?” (o que dizes?), retruca, pois de novo esqueci que ela não entende o português. “Marampe nde rera?”, torno a perguntar, agora em tupi. “Ixé Potira” (eu sou Potira), responde. Mesmo tendo voltado a doer a ferida da perna, ainda tenho ânimo de dizer à cunhantã: “Tera poranga!” (nome bonito), pois Potira significa “flor”. Dizer só isso, porém, é pouco; devo retribuir à altura a amizade que a tapuinha acaba de me demonstrar.

“I aisó Potira” (Potira é formosa). “Nde reté, nde robá poranga” (teu corpo e teu rosto são bonitos). “I çaquenaçaua catu” (teu perfume é bom), digo-lhe.

“Iaquaimuçáua! Potira tapuia puxuêra reté!” (Tolice! Potira é morena e muito feia!), contesta.

Mesmo não crendo em Tupã, digo-lhe que Jaci, a Lua, é formosa, mas Tupã fê-la mais formosa que ela.

“Muire acaiú tahá rerecó?” (que idade você tem?), indago. “Xa recó 20 acaiú” (20 castanhas, ou seja, 20 anos), diz ela, pois marcam a idade guardando uma castanha de cada estação de caju. Ela parece ter menos.

“Marampe nde rera?” (como é teu nome?), ela pergunta. Vou abrir a boca para responder, mas um grito de homem, gutural, terrível, interrompe-me. “Potiiiiiira! Potiiiiiira!”. A cantoria dos homens e o som dos maracás cessaram, dando lugar ao grito: “Potiiiiiira! Potiiiiira!”

Vendo-me assustado, Potira me diz: “Esiquiié umem” (não tenhas medo). Explica que é o pai dela, Guaratinga-açu, Grande Garça Branca, que a chama. Alguém o avisara de que a filha ficara só na cabana do prisioneiro, o que muito o irritou. “Tupãna irúmo, xa çó raín té uirandé” (adeus, até amanhã), diz ela, já se afastando, mas, de repente, volta para perto de mim. Ouço passos que se aproximam e enxergo muitos olhos espreitando-nos pelas frestas da parede de varas da cabana. Potira segura-me a mão direita e coloca-a sobre o seu peito esquerdo, fitando-me com os olhinhos selvagens. “Xe rorib nde rura ri” (estou alegre por causa da tua vinda). “Sori nde pia” (alegra o teu coração). “Nde pereba aiposanongine” (vou curar as tuas feridas), diz a cunhantã. Sou capaz de sentir-lhe as palpitações do coração. “Ixé xa çó ãna, ixé aiebirine” (já vou, mas voltarei). “Xe rinisem toriba resé” (estou cheia de alegria). “Eierobiá xe resé” (confia em mim), fala, já se afastando, mas não pode sair da cabana, pois o corpo largo de um tapuio, o mesmo que me aprisionou, atravanca a porta, obstruindo-lhe a passagem. Guaratinga-açu, o grande chefe, ordenara que me levassem até ele. Potira em vão arenga com o tapuio, que, sem lhe dar ouvidos, pega a “mussurana” (corda) que eu tenho no pescoço e puxa-me para fora da choça.

Com a ajuda de Potira, Alkindar-miri, Pequeno Alguidar – esse é o nome do tapuio – contém as mulheres que, como gralhas barulhentas, ameaçam avançar sobre mim. Só então noto que a noite já caiu. As chamas de uma fogueira armada em frente à cabana de Guaratinga-açu iluminam o pátio da aldeia. Os corpos que trançam alvoroçados de um lugar para outro produzem sombras que se alongam e encolhem sobre a areia. Quase sem enxergar meus pés, deixo-me levar por Alkindar-miri, cuja figura larga, atarracada e carnuda, peito ancho e arcado, nuca reforçada e pequena, braços curtos, grossos e musculosos, inspirou-lhe o nome e impede-me qualquer pensamento de fuga. Ao meu lado, Potira encoraja-me: “Esiquiié umem; morubixá-catu” (não tenhas medo; o tuxaua, meu pai, é bom).

“Sim, Potira, muito bom é teu pai; não me comerá vivo; primeiro há de matar-me”, é o que penso.