Nghéri-Hi

MANUEL RODRIGUES VAZ
Nghéri-Hi, o “Imperador do Libolo”
– Evocação de um algarvio que foi o maior povoador de Angola


Antes de mais, tenho de fazer uns avisos e algumas declarações, que parte de vocês vão, com certeza, achar contraditórias, mas que não são tanto como isso.

Embora tenha sido um dos beneficiados com o chamado Ultramar, e portanto acabei por ficar prejudicado com o 25 de Abril, que aplaudi e aplaudo como um momento necessário da nossa viragem, tenho que dizer que entendo que as colónias, a par da Inquisição dita Santa, mas que foi apenas um desfilar de arreliantes tropelias, estiveram na origem do atraso secular cujas consequências ainda hoje sofremos.

No entanto, factos são factos, a História é a História, e, no fundo, alguma coisa poderá ficar, apesar de o racismo ainda por aqui se ir manifestando com demasiada recorrência. Devo ainda declarar que o Portugal de hoje, nesse aspeto, já não tem a ver nada com o que vim deparar em 1981, quando regressei de Angola.

Sobre uma polémica que se instalou recentemente sobre se Portugal devia pedir desculpa pela colonização e pela escravatura, tenho a dizer, que estou radicalmente contra. Colonização foi uma série de ciclos que envolveu desde muito cedo a humanidade, nós próprios fomos colonizados pelos romanos e depois pelos árabes, e mal de nós se ainda pensássemos obrigar estes povos a pedirem-nos desculpas. E não esquecer, por exemplo, que a maior parte das etnias que hoje se reivindicam angolanas foram também invasoras – vieram essencialmente da região dos Grandes Lagos, só se considerando que os autóctones são apenas os Koi San, conhecidos erradamente como bosquímanos. Aliás ainda há colónias, e infelizmente ainda há escravatura, vamos é lutar de algum modo para que isso desapareça da face da terra, é mais urgente.

Mas vamos ao que interessa hoje: apresentar o livro do meu amigo Jaques Arlindo dos Santos, profissional de seguros que queria ser escritor e que fundou uma das associações culturais mais importantes de Angola, a Associação Chá de Caxinde.

Circunstancialmente, conheço-o há relativamente pouco tempo, mas fui amigo chegado de dois dos seus irmãos, o Bito e o Aguiar dos Santos, ambos já desaparecidos, especialmente o Bito de quem guardo muitas saudades das discussões infinitas que chegavam sempre até às tantas da madrugada, nos idos de 1972, no Huambo.

Vamos então ao livro, de que vou ser muito sintético, porque o que interessa hoje aqui é a figura do seu antepassado, o louletano Manuel Jorge, de seu nome completo Manuel Jorge de Sousa Calado, que retrata com mão de mestre.

Como diz no prefácio a nossa amiga Maria Luisa Dolbeth e Costa, «Na progressão da leitura, a história vai seguindo recortada por pausas intencionais para nos fazer parar e, quiçá, essa espera, para o desenrolar dos acontecimentos, cria também o suspense, mantendo-nos amarrados à leitura, sempre na expetativa do que vai acontecer a seguir, e não nos deixa parar porque estaremos sempre a ligar o fio à meada.»

Autor de Casseca – Cenas da vida em Calulo (1993), Chove na Grande Kitanda (1996), ABC do Bê Ó (1999), Berta Ynari ou o Pretérito Imperfeito da Vida, vencedor do Grande Prémio Sonangol de Literatura, em 2000, e Kasakas & Cardeais (2002), Jacques Arlindo dos Santos nasceu a 6 de Outubro de 1943, fez os estudos primários em Calulo, Kwanza-Sul, e secundário em Luanda. Foi profissional de Seguros e Técnico de contas, tendo exercido a função de Diretor Comercial na Empresa Nacional de Seguros e Resseguros de Angola, ENSA. Foi, ainda, como já disse, sócio fundador da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde, assumindo a presidência do seu Conselho Diretivo, de que se afastou recentemente para dar lugar aos mais novos. Sobre Jacques Arlindo dos Santos, o escritor e atual Ministro da Comunicação Social de Angola, João Melo, considera: «que o autor faz a história das mentalidades sem tirar nem pôr. Acredite quem quiser. Não faltam, até, as trepidantes aventuras sexuais. Se os dramas individuais não fazem mover a história, pelo menos no seu conjunto (não renego minhas raízes marxistas!), têm muito mais importância do que, durante muito tempo, nos quiseram fazer crer os cientistas macro(céfalos?)».

Tendo-me chamado a atenção com o seu curioso ABC do Bê O, que reforcei com a leitura de Casseca, crescentemente interessante, acabei por quase delirar com as aventuras de um general do prédio do cão da Fidelidade, que com a corrupção engorda tanto que, depois de morto, tem de ser içado por uma grua, incluído no seu volume Kasacas & Cardeais, pelo que não me surpreendi com a ambição declarada de com este livro novo fazer marco de história literária. Que consegue realmente.

Aproveitando para fazer uma resenha histórica do Kwanza Sul e das regiões limítrofes, nomeadamente a Kisama, Jacques dos Santos não deixa de lembrar algumas figuras históricas que passaram por lá nos séculos XIX e XX, como por exemplo o húngaro Ladislau Magyar, que inspirou a Ana Paula Tavares, uma das vozes principais da poesia angolana, o longo e primordial poema História de amor da princesa Ozoro e do húngaro Ladislau Magyar.

Nghéri-Hi, que quer dizer O que é que eu fiz?, subintitulado Maka da grande família, retrata de maneira tão objetiva como sintética o processo de miscigenação através da descrição de evolução de uma família que se afirma a partir de um europeu, o louletano Manuel Jorge, e de uma africana da sociedade rural e das colaterais relações que o homem vem a ter com outras africanas, daí resultando dezenas de filhos. A consequência é uma multiplicidade de irmãos e primos que, através das suas aventuras e desventuras, vão deixando também, as mais diversas descendências, mais ou menos inseridas na sociedade dominante, mais ou menos marginalizadas dessa sociedade. Refira-se, por exemplo, que o conhecido Lúcio Lara, que foi uma das personalidades mais influentes do MPLA, nos primórdios da independência, é também um dos seus descendentes.

Os Ngana sobas respeitavam-no sob a aura de “o primeiro branco” mesmo quando em flagrante desrespeito pelas suas crenças e tradições, o adotaram como um deles, desesperando quer os quimbanda e os detentores do poder do feitiço pelo lado nativo, quer os colonos e seus chefes pelos portugueses. Manuel Jorge era uma espécie de deus, um ser sobredotado, que usava a sua inteligência para decidir como um magistrado, sobre as maka mais complicadas das sanzalas, intervindo com autoridade nos mahézu dos vereditos, que eram sufragados nos plenários do sobado grande de Ndalahuso e onde ele, a partir do momento em que foi aceite, num gesto bem recebido pelos nativos, fez questão de se apresentar vestido com panos livres, deixando à mostra o tronco nu, imitando o melhor que podia os hábitos indígenas. Isto é, impôs-se pelo seu sentido de justiça, a que todos os africanos são muito sensíveis, exatamente porque eram tratados com a total ausência dela, e por se ter habituado a ser africano em África. (Não vale a pena lembrar o velho ditado). Por isso não admira que passasse a ser conhecido como o Imperador do Libolo, que de certa maneira até o era, por toda esta postura e porque acabou por ser também um grande povoador, com uma prole de mais de seis dezenas, e que não teve vergonha de reconhecer como seus filhos, ao contrário da maior parte dos seus patrícios portugueses, que renegavam os seus rebentos. Como diz Jacques dos Santos, ele era «Um indivíduo que ganhou fama de sábio e foi procurado por pessoas importantes, de conhecimento, e que ao longo do tempo da sua vida, em diversos momentos, visitaram o Libolo. Foram seus interlocutores missionários, negociantes, militares, estudiosos e autoridades superiores que tiveram de enfrentar, em ocasiões distintas, o tom da sua voz forte e rouca assim como os seus olhos hipnotizadores».

De realçar que Manuel Jorge fazia isto quando em Portugal se pensava em África como habitada apenas por selvagens, e mesmo Eça de Queiroz, de que era um leitor de estimação, justificava uma das suas personagens de Os Maias dizendo que «O enfraquecimento dos portugueses se deveria a uma pretensa degenerescência de raça».

Pelo meio, neste seu livro, o Jacques revela-nos de vez em quando factos pouco conhecidos da História de Angola, como os acontecimentos que levaram, nos finais de 1822, a Junta Provisória do Governo da Colónia de Angola, que tinha à testa o bispo D. João Damasceno Póvoas, a rebelar-se contra a coroa portuguesa e a pensar numa alternativa de independência para o território, por influência do que aconteceu no Brasil, que um certo deputado Amaral Gourgel, de ideias independentistas, preconizava uma ligação a esta jovem nação. «Mas não aconteceu nem a independência de Angola nem a ligação com o Brasil, porque um regimento de infantaria, em alerta, opôs-se às ideias e derrubou a Junta».

Também não pode esquecer as constantes ações de resistência dos habitantes do Libolo, primeiro em 1894/95 e depois nas primeiras décadas do século passado, originadas porque os colonos, «A coberto da regra de pretensa superioridade extravasavam o poder, usavam-no com abuso, sobretudo no tratamento dado aos negros. O uso da força, a atribuição dos mais humilhantes serviços, trouxe de volta a escravatura no seu exercício pleno». É preciso dizer que nesse tempo era comum menorizar os autóctones, sendo corrente a violência da ocupação portuguesa, com a extorsão de gado e de outros bens dos sobas locais, que ainda sofriam a humilhação do apoderamento das suas filhas e mulheres. «Decididamente, destino de mulher não branca em Angola era ser desgraçada, obedecer aos homens e às leis primárias dominantes». Neste caso, os autóctones também não eram isentos de culpas.

Jacques dos Santos vai ainda mais longe e mergulha no passado recente angolano, assinalando que «Parecia fazer lei, na complicada Luanda, uma orientação do tipo incumprimento total da ordem. (…) os defensores da história da capital, do seu presente, sobretudo da violenta sociedade dos dias de hoje, eram obrigados a admitir que a realidade suplantava o seu imaginário, sendo, nessa época especial, cruel demais para a cidade e os cidadãos.»

Por isso, aproveita uma intervenção na Assembleia Nacional, para perguntar: «É legítimo que se pergunte, então, porque se invoca permanentemente o colonialismo para justificar as nossas desgraças? As nossas penas tornam-se ainda mais dolorosas quando se percebe que a felicidade e o bem-estar prometidos e profusamente propalados ao longo destas décadas, não estão a acontecer. (…) A mentira permanente envergonha até quem a escuta e ganha corpo com tais pronunciamentos já que é enorme o tamanho da fome que se apoderou de alguns núcleos da nossa população ativa, uma fome doentia que magoa as entranhas, fere e mata».

Pela voz de Benjamim Jorge, descendente do Imperador do Libolo, ele vai ainda mais longe e aponta:

«Neste mundo, onde as ideologias se confundem e onde perdura ainda a incapacidade de se aceitar o inevitável pluralismo religioso, os cidadãos deste país devem ter o direito de saber defender e como defender que cada pessoa é dona da vontade de ter a fé no Deus em que acredita. Devem possuir a capacidade de discernir que quando duas mãos se encontram, sejam elas da cor que forem, refletem no chão uma sombra da mesma cor. E é igualmente importante que se pense nesta verdade indesmentível: cada vez mais o mundo deixará de ser caracterizado por países identificados pela exclusão que fazem das etnias e das raças, para passar a ser marcado pela coabitação de todas elas no mesmo espaço urbano e nacional, donas dos mesmos direitos e obrigações enfim, devem ter a consciência de que se torna necessária a urgente abolição dos privilégios herdados do passado».

Enfim, como diz no prefácio a Luísa Dolbeth e Costa, esta «Não é uma obra apenas de interesse descritivo, mas muito mais profunda, em que as análises sociais e os temas abordados exigem também um nível de maturidade do leitor porque lhe expõe, até, e com grande realismo, cenas chocantes para pensar, podendo-se quase dizer, perante elas, que a realidade supera a nossa imaginação. Mais uma vez podemos reafirmar que, neste jogo de narrativa não linear, mas cheia de interrupções intencionais, não deixa de ser pertinente dizermos que devemos estar sempre atentos às constantes analepses, muitas vezes para “navegar pelos lamaçais do seu complicado passado”, e apara atingirmos a inteligibilidade dos assuntos e dos temas.»

Como muito acertadamente diz o Adolfo Maria, numa nota publicada no introito, deste livro, «É uma monumental saga de família (suspeito que da família do autor), mas também é uma estória necessária da História de Angola para melhor nos entendermos como cidadãos deste País e melhor o compreender. Parabéns ao Jacques dos Santos, incansável homem da cultura angolana».

Faço também minhas, estas palavras.

Tenho dito.


Anexo: Colónias atuais (abre em pdf)


Palestra lida no dia 15 de Novembro de 2017 no Restaurante O Pote, em Lisboa, no ciclo de almoços temáticos da Tertúlia À Margem