Nem nas férias há sossego

FREI BENTO DOMINGUES, O.P.


1

A narrativa bíblica do mito da criação não pertence ao mundo da ciência, mas ao da poética teológica. Não se situa, por isso, em competição com nenhuma teoria da origem e do desenvolvimento do universo. Confessa que de Deus apenas pode vir o bem e a beleza. Apresenta o Criador encantado com a sua obra, ritmada pelos dias e pelas noites, cheia de tudo o que é bom. Nesse poema, o ser humano – homem e mulher – é a coroa da terra, imagem do infinito mistério do amor. Ao sétimo dia, Deus repousou para celebrar a obra admirável da vitória sobre o caos[i]

É uma astuciosa metáfora da legitimação religiosa do descanso semanal: “Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha, o teu servo e a tua serva, os teus animais, o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que há neles, mas no sétimo dia descansou” [ii].

Estamos perante a sacralização de uma grande instituição civilizacional. O ser humano não existe só para trabalhar. Precisa de tempo para viver e exprimir muitas outras dimensões da sua vida. A abertura a Deus revela a transcendência de todos os seres humanos, sujeitos de direitos e deveres continuamente ameaçados.

Nada, porém, está automaticamente garantido na Casa Comum, como lembrou o Papa Francisco na Laudato SI.

Sem opções éticas para regular os dias e as noites, as relações interpessoais, familiares, sociais, económicas, políticas e religiosas, estamos ameaçados de voltar ao caos.

O universo humano é uma associação frágil de natura e cultura. A vontade de tudo controlar, a obsessão da lei, de tudo regulamentar de uma vez para sempre, a perda do sentido do humor, do dever sem prazer, tornam a vida, uma neura.

Quando as instituições humanas são apresentadas como realizações da vontade de Deus caem na idolatria escravizante. O grande dia da divina liberdade é transformado numa prisão sacralizada.

2

Jesus de Nazaré, ao apresentar-se como o profeta do Reino de Deus, identificou-o com o advento do reino da libertação e da alegria. Teve, por isso, de enfrentar a escrupulosa regulamentação rabínica do Sábado, pois o seu resultado era terrível: nesse dia, os animais tinham mais sorte do que os seres humanos[iii]. Jesus resolveu atacar essa perversão, mediante uma sistemática provocação. O chefe de uma sinagoga, indignado com a atitude de Jesus, virou-se para a multidão e disse: há seis dias de trabalho, vinde nesses dia e não no dia de Sábado.

Os narradores do Evangelho são unânimes: era ao Sábado que Jesus fazia o que a religião oficial proibia. Nós, os cristãos, julgamos que é um assunto ultrapassado. É, apenas, uma questão judaica. Fazemos muito mal em reagir assim.

A razão apresentada por Jesus, para fundamentar as suas atitudes, era radical: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Atacava, assim, o fundamentalismo religioso para todos os tempos e lugares. Deus nunca pode ser invocado para a infelicidade. Não se pode louvar a Deus sem cuidar da libertação, da cura e da alegria dos afectados pelo sofrimento.

As atitudes de Jesus, em relação às prescrições do Sábado, questionam a nossa miopia: as leis e os regulamentos das Igrejas são para o ser humano ou é o ser humano para essas leis?

Muitas das controvérsias, antes, durante e depois do Vaticano II, esquecem esse dado elementar. Não são as leis eclesiásticas que mandam no Evangelho de Jesus. É este que questiona, permanentemente, as leis que inventamos: fazem bem ou mal à libertação dos cristãos? São para fazer desabrochar a nossa alegria ou para nos mergulhar na tristeza?

O enunciado de Jesus tem um alcance filosófico e teológico muito mais amplo, diria, universal. Todas as instituições têm de ser submetidas a esta interrogação: servem ou atraiçoam o desenvolvimento humano?

3

Não pretendo, com a contenda do Sábado, desvalorizar o significado dessa instituição civilizacional. O texto de S. Marcos, seleccionado para a Missa deste domingo, manifesta, pelo contrário, que o próprio Jesus sentiu necessidade de férias para si e para os seus colaboradores: Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco.

Eram tantos os que iam e vinham, que nem tinham tempo para comer. Foram, pois, de barco, para um lugar isolado, sem mais ninguém. Por desgraça, ao vê-los afastar, muitos perceberam para onde iam. De todas as cidades acorreram, a pé, àquele lugar, e chegaram primeiro do que eles. Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas[iv], e lá foram as férias!

Não teve mais sorte com as tentativas de férias no estrangeiro, em Tiro e Sídon. O mesmo evangelista conta que, no território de Tiro, Jesus entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse. Não conseguiu. Uma gentia, siro-fenícia de origem, lançou-se aos seus pés e pedia-lhe que expulsasse, da filha, o demónio.

Para entender o desenvolvimento deste texto, importa saber que os judeus tratavam os estrangeiros como cães. Aliás, na versão de Mateus, Jesus esclarece que a sua missão se limitava às ovelhas perdidas da casa de Israel. Por isso, não era justo que se tomasse o pão dos filhos para o lançar aos cachorros.

Neste caso, Marcos é mais simpático: «Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos.»  A mulher não quer saber dessas histórias e diz simplesmente: «Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos».

Jesus ficou rendido: vai, o demónio saiu de tua filha.

A versão de Mateus é diferente e passa-se em público. Jesus reconheceu o ridículo da sua estúpida displicência: «Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se como desejas». Como já tinha dito a um centurião romano: em Israel, nunca vi tanta fé!

Estas reacções, nas suas idas ao estrangeiro, manifestam que também Jesus tinha sido moldado por uma cultura preconceituosa, mas estava aberto ao espanto e à mudança. Em Tiro e Sídon, encontrou o que não podia esperar.

É Domingo, não é Sábado. Não nos podemos conformar com o mundo que temos. Dizemos que somos filhos da ressurreição e não do conformismo. Temos de o provar. Como?

in Público 22.07.2018


[i] Gn 1; 2, 1-3

[ii] Ex 20, 8-11

[iii] Lc 13, 10-17; 14, 1-6; Mt 12, 9-14; Mc 2, 23ss; Jo 5, 8-18

[iv] Mc 6, 30-34