MIGUEL GARCIA

Francisco Miguel Gouveia Pinto Proença Garcia
ANÁLISE GLOBAL DE UMA GUERRA
(MOÇAMBIQUE 1964-1974)

Dissertação para a obtenção do Grau de Doutor em História
Universidade Portucalense
Orientação dos: Prof. Doutor Joaquim da Silva Cunha e
Prof. Doutor Fernando Amaro Monteiro
Porto . Outubro de 2001

Introdução

A presente dissertação tem por tema “Análise global de uma Guerra (Moçambique 1964-1974)”. A escolha deste tema levanta três questões: porquê a análise global de uma Guerra, porquê Moçambique e porquê o período abrangido?

Portugal foi a primeira potência colonial europeia a chegar a África e a última a sair. Não acompanhando o movimento descolonizador do pós-Segunda Guerra Mundial, Portugal decidiu ficar, respondendo com um processo de guerra global, que envolveu actuações político-diplomáticas, operações militares e psicológicas e o apoio sócio-económico às populações. Esta decisão só se compreende cabalmente se entrarmos em linha de conta com as condicionantes diplomática, política, militar e social e com a análise das suas inter-influências. A análise desta relação é esclarecedora da postura externa e da situação política interna.

Temos os cenários de Guerra como um campo distinto da interacção entre aquelas condicionantes. A ora generalizadamente chamada “guerra colonial” teve na História Contemporânea um significado de destaque na memória e no imaginário português, excedendo largamente o campo estritamente militar e inscrevendo-se na sociedade numa perspectiva global: a actividade politico-diplomática, os movimentos sociais, as repercussões económicas e mesmo o destino do regime vigente até 25 de Abril de 1974.

Este trabalho procura desenvolver-se num espaço de cruzamento de várias perspectivas da análise histórica contemporânea; ou seja, procura estudar a Guerra enquanto contexto no período indicado, a Guerra não só no aspecto militar, mas enquanto problema político e social; pelo que o campo de actuação das Forças Armadas é analisado numa óptica em que se tenta demostrar o grau da sua importância no combate da contra-subversão, que é, em última análise, uma luta política. Assim, o papel daquelas não consistiu em procurar assegurar apenas a vitória no campo militar, mas sim ganhar o tempo necessário para que o confronto fosse solucionado politicamente.

O papel de Moçambique é estudado tendo em conta o interesse pelos comportamentos de mecanismos políticos e sócio-religiosos que ultrapassavam as fronteiras das colonizações europeias, no contexto integrador daquele território, num dos períodos mais conturbados da História Contemporânea: o do processo internacional de descolonização, concomitante com o afrontamento estratégico indirecto Oeste/Este.

Os limites cronológicos em que se insere o nosso estudo, situados entre 1964-1974, são condicionados ao período da confrontação armada entre o Poder português e os movimentos independentistas, nomeadamente a FRELIMO.

Esta escolha justifica-se, em nosso entender, por duas razões distintas mas correlacionadas, cuja explicitação permite definir os propósitos que presidiram a este trabalho.

Em primeiro lugar, procurou-se perspectivar o enquadramento histórico da guerra nas antigas Províncias Ultramarinas Portuguesas, tendo em conta a evolução da sociedade internacional, desde o início na questão da Baía de Lourenço Marques, das disputas pela soberania nesses territórios, até à afirmação do Terceiro Mundo após a Conferência de Bandung. Assim, interessou-nos fazer a análise do desenvolvimento da acção das Nações Unidas e o papel das grandes potências no processo internacional de descolonização bem como a persistência política portuguesa nos seus territórios ultramarinos.

Abordámos também a questão dos grandes poderes mundiais e das suas ambições em terras de África e como se definiram as esferas de influência e as fronteiras políticas. Sobre estas, é forçoso compreendermos quais os substratos sócio-religiosos anteriores e remanescentes, nomeadamente no que diz respeito ao território moçambicano, e quais as questões que esta situação levanta a um qualquer Poder estranho que pretenda exercer a sua soberania.

A Guerra Fria e a luta por zonas de confluência de interesses das superpotências em competição, o emergir do Pan-africanismo, do Pan-arabismo e do Terceiro Mundo na cena internacional, e bem como o período em que o anti-colonialismo dominou as Nações Unidas são factores imprescindíveis para a compreensão do despertar e manter dos movimentos que procuraram a independência dos territórios sob soberania portuguesa.

As questões coloniais devem, em nosso entender, ser analisadas de um ponto de vista em que a política interna e externa se inter-correlacionam, e não de uma forma isolada. Nesta ordem de ideias, salientamos as políticas que justificavam a continuação daquelas paragens como portuguesas e a evolução destas políticas, quer a nível do Governo quer da Oposição.

Em segundo lugar, entendemos analisar a conflitualidade global permanente, como surge e se desenvolve o fenómeno subversivo a nível global, sendo abordada conceptualmente a subversão como técnica e a sua aplicação revolucionária no Teatro em análise. Posteriormente, passarmos a uma abordagem do despertar dos movimentos independentistas e de quais as estratégias de penetração no espaço do Terceiro Mundo utilizadas pelos diversos interesses em presença.

A génese do independentismo moçambicano, aprofundado no seguimento lógico de Bandung, nomeadamente dos principais movimentos (a FRELIMO e o COREMO) e respectivas composição, articulação, ideologia e práticas são igualmente abordados. Para sobreviver, estes movimentos careciam de apoio político, económico e logístico a nível internacional, pelo que a vertente dos apoios prestados, de quem e para onde, mas designadamente a quem serviam, foram alvo preferencial no trabalho.

Com este estudo não é nossa intenção analisar a história das campanhas em Moçambique, no período em apreço, na perspectiva das Forças Armadas Portuguesas. A análise de vasta documentação oficial e a recolha de depoimentos de algumas personalidades, permitem-nos, sim, facultar uma visão original da génese, desenvolvimento e condução da “Guerra global em Moçambique”. Esta abordagem, apesar de poder ser considerada parcelar, procura descrever o modo como Portugal definiu e analisou a situação, destacando sobretudo a “resposta possível” ou as iniciativas portuguesas face à subversão, para a afirmação da soberania, exercendo acções oportunas, internas e externas.

Ao nível da resposta psicológica, considerámos importante analisar a fissura entre os poderes civil e militar, nomeadamente na clivagem da Informação e na textura da Acção Psicológica, pois pensamos que ela afectou, em grande profundidade, o modo como a resposta global foi executada. Para uma melhor compreensão da actuação psicológica, no que se refere ao controlo e conquista da adesão das populações, analisamos as acções do Poder português e do principal movimento independentista no território, a FRELIMO.

Mesmo antes da entrada da subversão em armas se afigurava assaz importante o papel a desempenhar pela população moçambicana, quer pela acção quer por omissão, pois as populações são um meio imprescindível para a subsistência e para a movimentação subversiva, e ao mesmo tempo o alvo desta. Parecia, assim, evidente a necessidade de se conhecerem as populações e os reflexos condicionadores dos seus comportamentos pelo que foi necessário ao Poder português, através dos diferentes órgãos de Informações, civis e militares, bem como da Acção Psicológica, efectuar estudos para difusão e posterior actuação aos vários escalões. Na nossa investigação privilegiámos a análise daquela documentação, procurando retratar o modo como aquele Poder tratava o problema.

Pretendeu-se ainda interpretar a postura das comunidades cristãs, muçulmanas, das seitas nativas e das sociedades de religião tradicional, no contexto do desenvolvimento do confronto. Tais realidades preservaram poderosos macanismos “laterais” de comunicação, exponenciados naquele território pela impressiva massa muçulmana.

Para a concretização do objectivo proposto neste estudo, tivemos presente que a História, pela pluralidade de perspectivas que podem ser chamadas a integrar temática que daquela Ciência se reclame, determinam o recurso a outras áreas das Ciências Sociais como, por exemplo, a Antropologia Cultural, a Sociologia, a Estratégia, as Relações Internacionais e o Direito. Esta confluência possibilitou, julgamos, uma maior precisão do campo de trabalho e maior nitidez quanto ao desenvolvimento do nosso plano.

Na elaboração deste trabalho privilegiámos o método comparativo, procurando colocar em confronto versões diferenciadas dos acontecimentos e, por razões ressaltantes da própria temática, entendemos também ser necessário aquilatar a situação semelhante ocorrida na então Guiné-Portuguesa.

O trabalho baseia-se, essencialmente, em quatro núcleos documentais, a saber: a documentação militar, a documentação diplomática, a documentação referente à ordem política interna e a documentação memorialística.

No que diz respeito à primeira, atribuímos prioridade à documentação arquivística (referida em bibliografia) da Divisão de Informações Militares do Estado-Maior General das Forças Armadas, do Serviço de Documentação e História Militar e do Arquivo Histórico Militar. O primeiro é particularmente importante, pois possui inúmeros inéditos, nunca antes analisados ao nível universitário. Estes são importantes para o conhecimento, não só das relações entre o poder político e militar, mas também da situação das Forças Armadas e da sua actuação no terreno.

Igualmente importantes são os documentos sobre as alterações de dispositivo das forças no Teatro de Operações e da organização e actuação das Informações Militares em proveito das operações sócio-económicas e psicológicas, visando, em última análise, a conquista da adesão das populações.

O fundo destes Arquivos revela-se ainda de grande importância para o conhecimento das relações internacionais e das ambições das grandes potências em África, das alianças entre Portugal e alguns países, bem como sobre a composição, organização e actuação dos movimentos independentistas ao nível interno/externo. Revela-se ainda de extraordinária importância para o estudo e compreensão da actuação sobre as populações.

Na documentação diplomática, considerou-se não só a impressa e publicada, mas essencialmente os fundos arquivísticos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa. Estes são fundamentais para o conhecimentos das relações político-diplomáticas entre Portugal e as diversas potências e dos respectivos objectivos quanto aos territórios portugueses em África. Tal documentação é particularmente valiosa para a análise do período anti-colonial nas NU e das suas implicações para Portugal.

No respeitante à política interna, consideramos também uma multiplicidade de fontes impressas e arquivísticas. Destacamos a legislação publicada em “Diário do Governo”, mas privilegiámos a análise de alguma documentação do Arquivo Oliveira Salazar, na Torre do Tombo em Lisboa, valiosa para a compreensão do modo como estavam articulados a Política e o Regime.

A documentação de âmbito memorialístico reúne correspondências, memórias, depoimentos e outro tipo de informação dos principais intervenientes políticos e militares, portugueses e moçambicanos, com quem tivemos a singular oportunidade de privar. Estes contributos revelaram-se complementares da documentação oficial, sendo importantes na medida em que nos possibilitaram o acesso aos bastidores político-militares da época, permitindo contextualizar muitas das decisões e medidas adoptadas.

 
 

 




 



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