MAJOR MIGUEL GARCIA

A GEOPOLÍTICA DA SIDA
Francisco Proença Garcia
Maria Francisca Saraiva

INDEX

Introdução
1. A evolução do fenómeno no mundo
2. A SIDA e o selénio
3. SIDA e Segurança
3.1. Os reflexos na população
3.2. A SIDA e as operações militares
3.3. A SIDA e o Estado
4. A resposta ao fenómeno
Conclusão
A Sida em números
Referências bibliográficas

1. A evolução do fenómeno no mundo

A infecção por HIV/SIDA representa uma pandemia global, da qual se conhecem casos em todos os continentes. Inicialmente não se conheciam as reais dimensões do fenómeno, mas o facto é que desde 1981 já provocou a morte de aproximadamente 22 milhões de pessoas, deixando 13 milhões de crianças órfãs (1). No estudo científico da guerra documentamos as baixas em consequência  dos conflitos armados. Destas estatísticas retiramos o que pode clarificar o nosso problema: é hoje certo que a SIDA provocou mais baixas do que qualquer conflito armado ocorrido no século XX, incluindo qualquer uma das grandes guerras, e a tendência é para o agravar da situação. Actualmente há cerca de 40 milhões de portadores do vírus, ou seja HIV positivos.

Podemos comparar a sua progressão à das Divisões Panzer do General Guderian, com a Blietzkrieg. Simplesmenteagora esta progressão é profundamente marcada por um carácter distintivo e única na história da humanidade, quer pela extensão da sua propagação quer na morte que consigo transporta. A progressão é contínua, global, sem escolher raça nem credo, latitude nem longitude, nem condição social. O seu poder de destruição estende-se a toda a comunidade.

No epicentro do fenómeno encontramos o continente africano. Nesta zona geográfica não faltam motivos de preocupação. De facto, 24 dos 25 países mais atingidos por este flagelo são africanos. Pensa-se que a SIDA é a responsável por 1 morte em cada 4 mortes de adultos em África (2). No entanto, é difícil dizer que o fenómeno é localizado. É inegável que tem expressão global, embora se manifeste mais ao nível urbano do que rural, progredindo rapidamente na Ásia, nas Caraíbas e nas Américas do Sul e Central, bem como nos territórios da antiga URSS.

Ainda faltam dados seguros quanto aos números reais da pandemia. Calcula-se que os casos notificados pelas diversas entidades nacionais e internacionais, na medida em que muitos países não apresentam os seus resultados de forma consistente (China) ou credível (diversos países em desenvolvimento), escondem dimensões desconhecidas que seria importante conhecer.

Não é provável que esta pandemia, como outras, apresente alguma vez um carácter homogéneo e uniforme. Segundo Isselbacher estamos perante ondas epidémicas com características ligeiramente diferenciadas nas distintas regiões do mundo, dado que há regiões mais vulneráveis do que outras. Do mesmo modo, há a registar variações também significativas dentro dos países afectados, que dependem de factores como a demografia do país e da região em questão e mesmo do momento da introdução do vírus (3).

O efeito devastador da doença encontra-se ampliado em algumas regiões subdesenvolvidas, sobretudo na África sub-saariana. Nesta região, o padrão de infecção está claramente associado ao sexo heterossexual, uma vez que o número de infectados masculinos e femininos é idêntico. Esta realidade contrasta vivamente com a situação na América do Norte e do Sul, Europa Ocidental, Austrália, e outras zonas geográficas similares, onde a maior parte dos casos ocorre entre elementos homossexuais masculinos e devido a práticas de toxicodependência com recurso a drogas intravenosas.

Há também casos muito particulares, de países como a China e a Roménia, em que a principal causa de transmissão do HIV se prende com a manipulação do sangue ou de hemoderivados contaminados, devido à falta de condições higiénicas, instalações e recursos para estudar os tipos de doadores, falta de aplicação de técnicas de esterilização de agulhas e seringas, bem como pelo uso inapropriado de transfusões.

Infelizmente, os dados estatísticos relativos à transmissão da SIDA na Ásia estão parcialmente documentados. Todavia, sabemos que a disseminação, desde o final da década de oitenta do século passado, tem sido bastante rápida. Na Tailândia a epidemia é recente: terá começado oficialmente em 1988. Até então era classificada no nível III, ou seja, pouco prevalente, à semelhança do que se passa em diversos países europeus. No nível III a maioria dos casos devem-se ao contacto com um padrão I (alta prevalência) ou II (média prevalência). De acordo com Isselbacher, entre 1985 e 1987 apenas 1% da população toxicodependente da Tailândia estava infectada e nas prostitutas esse valor era inferior. Porém, em 1989 o padrão foi alterado bruscamente, passando a mesma população estudada a contar com valores na ordem dos 40% de infectados (4).

Neste caldo de cultura do submundo urbano a proliferação da promiscuidade foi galopante. As trabalhadoras profissionais do sexo têm grandes responsabilidades na matéria, nomeadamente na transmissão do vírus aos jovens a cumprir serviço militar. Com toda a certeza sabe-se que infectaram 10% dos recrutas. Por sua vez estes, devido à sua mobilidade, ajudaram a espalhar ainda mais a doença.

Com a transição do milénio a pandemia da SIDA recebe atenção especial ao nível internacional. As Nações Unidas têm sido uma notável frente de combate ao problema. A partir do ano 2000 o tema deu o mote a sessões especiais quer ao nível da Assembleia-Geral quer do Conselho de Segurança. Sucederam-se, igualmente, diversas manifestações a nível regional, bem como iniciativas mais localizadas em diversos países.

No universo onusiano, o programa das Nações Unidas especializado na temática da SIDA, a Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS), vem promovendo estudos sobre a sua evolução. 

Segundo o relatório da UNAIDS de 2005 (5), a SIDA continua extremamente dinâmica, crescendo e alterando o seu carácter à medida que vai sofrendo mutações e explorando novas formas de transmissão.

São as mulheres o grupo de maior risco, nomeadamente as mais jovens. O estudo indica que o número de mulheres contaminadas tem sido crescente: em cinco anos (1997 - 2001) passaram de 41% para representar 50% do total do universo dos indivíduos contaminados. Na África sub-saariana esse número cresce e aproxima-se de valores que rondam os 57%. Do total de contaminados, cerca de 50% são adolescentes, com cerca de 6000 novos casos por dia, e desses adolescentes, 75% são do sexo feminino (6).

Na sua progressão, o crescimento da SIDA entre as mulheres também é significativo noutras zonas: nos EUA, Oceânia, América Latina, Caraíbas e Europa de Leste e Ásia Central (7).

Apesar de ser difícil comparar regionalmente os factores que provocam este crescimento, é claro que na base estão as diferenças de género, especialmente as relacionadas com padrões culturais. O fenómeno parece ser pluricausal e inclui os factores sociais e culturais provocados pela desigualdade de estatuto entre a mulher e o homem, a violência sexual, passando pelas práticas associadas à toxicodependência intravenosa, acabando na falta de medidas profiláticas.

Para além das mortes associadas a esta doença, enfrentamos hoje o problema do número das pessoas que têm que viver com HIV, que foi crescendo em todas as partes do mundo. Só em 2003 estimaram-se 5 milhões de novos casos, número recorde até hoje registado. Verificamos que os aumentos mais significativos acontecem no Sudeste Asiático, na Europa Oriental e Ásia Central. De facto, o número das pessoas que vivem com HIV na Ásia Oriental subiu quase 50% entre 2002 e 2004.

Na Europa Oriental e Ásia Central, a principal responsável para a subida vertiginosa é a taxa de incidência na Ucrânia, que se conjuga com o crescente número de casos na Federação Russa. Na Rússia, entre 1997 e 1998 o fenómeno multiplicou por cinco o número de infectados, prevendo-se um cenário catastrófico de 20% ou mais de contaminações na sua população. A Ucrânia conta com mais de 200.000 casos identificados (1% dos adultos), prevendo-se para 2016 cerca de 2,1 milhões de mortes com SIDA (8).

Sem dúvida que os dados estatísticos coligidos pelas NU referentes ao ano de 2004 indicam a África sub-saariana como a região com maior prevalência de HIV, com 25,4 milhões de as pessoas contaminadas em 2004, comparativamente aos 24,4 milhões de 2002. Aqui residem 64% de todas os portadores de HIV e mais de três quartos (76%) de todas as mulheres portadoras. A incidência sobre mulheres grávidas com idades compreendidas entre os 15 e os 24 anos é também muito expressiva.

Embora a prevalência de HIV se mostre actualmente relativamente estável nesta região isto traduz, apenas, o facto de que um número idêntico de pessoas continua a contrair a doença e que é igual o número de mortes em relação ao passado. No fundo, acredita-se que a tragédia se mantém, continuando o continente a contribuir com cerca de um terço do global das mortes (9).

A segunda região do planeta com maior incidência da doença são as Caraíbas, excedendo os 2% em 5 países, tendo-se a SIDA tornado a principal causa de morte na faixa etária dos 15 aos 44 anos. Na Ásia, a epidemia permanece largamente concentrada entre os utilizadores de drogas injectáveis, homossexuais, trabalhadores profissionais de sexo, clientes de trabalhadores de sexo e os seus parceiros frequentes. Na Índia, há regiões onde 5% da população contraiu a doença, com grande incidência nas grávidas, e na China as proporções são já as de uma epidemia, cujo impacte pode vir a ser devastador. A prevenção não é efectiva entre estas populações.

Na Europa Ocidental e na Ásia Central são diversas as epidemias que se propagam, sendo o principal veículo de transmissão as agulhas e seringas contaminadas.

Nos países mais desenvolvidos a homossexualidade masculina desempenha um importante papel como veículo de transmissão da doença, representando a droga injectável um papel variado, sendo responsável só no ano de 2002 por mais que 10% da totalidade das infecções de HIV na Europa Ocidental, e responsável por 25% de infecções nos EUA (10).

Embora as mudanças de comportamento e tratamentos específicos como os antiretrovirais (11) possam reduzir a velocidade infecção e os índices de mortalidade em países desenvolvidos, é provável uma expansão rápida da doença entre as populações da Índia, Rússia, China, e América Latina, o que pode provocar a instabilidade social. De acordo com epidemiologistas da UNAIDS, a Ásia provavelmente ultrapassará a África sub-saariana no número absoluto de portadores de HIV antes de 2010.

Globalmente, a epidemia continua a destruir um número devastador de indivíduos e famílias. Nos países mais afectados ela simplesmente apaga décadas de esforço sanitário e de algum progresso económico e social, afundando as economias num mar de pobreza. Na África sub-saariana, a epidemia tem um impacto muito sério. A crise humana é crescente e transversal a todos os sectores sociais.

Notas
(1) O vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV) foi identificado pela comunidade científica há aproximadamente 20 anos.

(2) SINGER, P. W. (2002) - “AIDS and International Security”. Survival. Oxford. Vol. 44: 1, Spring, p. 147.

(3) ISSELBACHER, Kurt [et. al.], (1994) – Harrison - Princípios de Medicina Interna. Barcelona, McGraw Hill, Vol. II, p. 1811.

(4) Idem, p. 1812.

(5) NAÇÕES UNIDAS (2005) - AIDS epidemic update. Special reporto n HIV prevention.

(6) Idem.

(7) Idem.

(8) INTERNATIONAL CRISIS GROUP (2001) – HIV/AIDS as a security issue. Washington, 19 June, p. 3.

(9) NAÇÕES UNIDAS, (2004 b) - AIDS epidemic update.

(10) NAÇÕES UNIDAS (2004 a) - A Joint response to HIV/AIDS.

(11) Agentes que impedem a replicação do vírus.

 

Francisco Proença Garcia. Major de Infantaria, Professor do Instituto de Estudos Superiores Militares.

Maria Francisca Saraiva. Assistente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Mestre em Relações Internacionais.