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A REVOLUÇÃO DO PRESENTE

Tania Mara Galli Fonseca (1)
Patrícia Gomes Kirst (2)
Selda Engelman (3)

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I – Aufklärung e Revolução


Vamos abrir com o que está transbordando...

Experimentamos um “excesso de contemporâneo”, como nos aponta David Le Breton (2003) (4). Por um lado, a modernidade líquida de Bauman (2000) (5), na qual os sólidos se liquefazem, as instituições se desmaterializam, derrubam-se os muros, as crenças e as tradições. A nova ordem é de mutação e mobilidade, flexibilidade e velocidade. O novo tempo é o do efêmero e da proliferação das minorias que podem, como no 11 de setembro, implodir enormes materialidades carregadas de certezas e símbolos de macropoderes. Os pequenos vêm à tona, semeando a incerteza e ressentindo antigas dores. Dão a ver, em rede mundial, quase beirando a ficção, o caráter liquefeito do Império. Por outro lado, observamos, hoje, empreendimentos tecnocientíficos dos mais inéditos que têm um interesse no futuro e naquilo que se refere ao cotidiano, principalmente quando o projeto é eliminar ou corrigir o corpo humano (Le Breton, 2003, p.15). Este se torna território de experimentação da alteração do si, passa a ser concebido como rascunho, opondo-se ao próprio sujeito. Suas fronteiras - que constituem os limites do si -, despedaçam-se e semeiam a confusão. Nas instituições, são as próprias edificações enquanto modo de espacializar o tempo, que se obsoletizam, deitando por terra o conjunto de concepções e ideais em nome dos quais foram erigidas.

. Tais novas configurações e mutações podem vir a ser confundidas com reviravoltas e rupturas , mas, aqui, estamos frente a um enigma. Um corpo que malha, um corpo que cumpre com a sua dieta, um corpo firme de silicone e paralisado pelo botóx, que sente a picada do body piercing e que cumpre com as obrigações do orgasmo-viagra, e com a alegria - prozac não parece cheio de força e vigor para o “perfeito”? Uma instituição que se desmaterializa, deixando ver o fracasso da razão que a concebeu, não parece fato alvissareiro para a liberação de potências e invenção de novos mundos? Talvez, quem sabe, mesmo de um outro humano?

Quando estamos a falar na construção do presente, quando nos pomos a pensar em estratégias de resistência e criação que venham auxiliar na invenção de novos mundos para existir e novas formas de vida para viver, não podemos deixar de olhar ao nosso redor para observar e registrar algo daquilo que nos é contemporâneo e que, paradoxalmente, se coloca como limite e como possibilidade de superação e ultrapassamento. Sim, nosso ponto de partida é o aqui-agora (espaço-tempo) em que estamos mergulhados, e o nosso olhar não recai sobre as pontas do tempo - lá-então -, fazendo-nos recuar em busca de origens passadas ou de futuros imaginários. Não nos move o ímpeto de classificar os fatos da história segundo o eixo de dois pólos: o da antiguidade e o da modernidade, o que torna descabidas as questões que procuram saber se vivemos em um período de decadência ou de progresso em relação aos nossos antepassados. Atolados no tempo, habitamos o ponto que se pode chamar meio, intermezzo, lugar de onde partem nossas operações de combate e manobras de experimentação. Nossos modos e nossa substância existem como efeitos finitos da ilimitada potencialidade formal da vida. Como Michel Foucault, em O que é o Iluminismo? (6) indagamos, então: “Qual é a minha atualidade? Qual é o sentido desta atualidade? E que é que eu faço quando falo desta atualidade?”

Nosso aqui-agora se coloca como expressão do acontecimento que nos envolve e nossa atualidade pode vir a ser definida por nossa condição de problematizar a Aufklärung (7) de nosso tempo, aqui tomada como um período que formula sua própria divisa, seu próprio preceito e que diz o que ele tem a fazer, tanto em relação à história do pensamento, como em relação ao seu presente e às formas de conhecimento, de saber, de ignorância, de ilusão nas quais ele sabe reconhecer sua situação histórica.

Segundo esta perspectiva, buscar saber se há um progresso constante para o gênero humano corresponde a determinar se existe uma causa possível deste progresso, liberar um certo acontecimento que mostra que a causa age em realidade. Seria preciso, pois, isolar, na trama da história, um acontecimento com valor de signo da existência de uma causa permanente que, por toda a história, guiaria os homens no caminho do progresso. Vejamos, ainda no texto acima referido, nas palavras de Foucault (1984, pp.107-108), a resposta de Kant ao questionamento: “Há em torno de nós um acontecimento que seria rememorativo, demonstrativo e prognóstico de um progresso permanente que arrasta o gênero humano em sua totalidade?”.

-“Não esperem”, diz Kant, “ que este acontecimento consista em grandes gestos ou crimes importantes cometidos pelos homens, após o que, o que era grande entre os homens se tornou pequeno, ou o que era pequeno se tornou grande, nem em edifícios antigos e brilhantes que desapareceriam como que por mágica enquanto que em seus lugares surgiriam outros vindos das profundidades da terra. Não, nada disso. (...) Prestem atenção, não é nos grandes acontecimentos que devemos procurar o signo rememorativo, demonstrativo e prognóstico do progresso; é em acontecimentos muito menos grandiosos muito menos perceptíveis”.

Vimos, assim, desde a ótica destes filósofos, que o que é significativo e pode operar como signo do progresso, não são os feitos e dramas revolucionários. O que é significativo é a maneira pela qual a Revolução é acolhida pelos que não participam dela ativamente, mas que a consideram, que a assistem e que, para melhor ou para pior, se deixam arrastar por ela: o que é significativo, é “o que se passa na cabeça dos que não a fazem ou, em todo caso, que não são seus atores principais”. “O entusiasmo pela Revolução é signo, segundo Kant, de uma disposição moral da humanidade” (Foucault, op.cit., p.109) e a Revolução, como lugar de entusiasmo e de revelação de uma disposição humana para progredir, é um acontecimento cuja existência atesta uma virtualidade permanente e que não pode ser esquecida, uma vez que mais do que preservar seus feitos e deles fazer modelos, o que nos interessa é saber o que é preciso fazer desta vontade de revolução que é outra coisa que o empreendimento revolucionário.

Podemos, daqui, já vislumbrar que a problemática do presente não concerne exclusivamente ao domínio racional da Aufklärung e do estado de coisas e enunciados dela decorrentes. Há uma outra face, a da Revolução que também lhe concerne e que se expressa como um combate contra o presente em favor de um futuro que virá. Uma espécie de fracasso instaurado no seio da racionalidade vigente, algo da ordem do extemporâneo que se coloca na própria atualidade do mundo e dos sujeitos, assinalando-se como um eternamente futuro cravado na carne do presente, conferindo-lhe movimentos vertiginosos, colocando-nos como artesãos de uma interminável escrita que ao mesmo tempo fala de nós e de nosso mundo.

Se as forças que nos rodeiam e nos impelem a velocidades incríveis ainda não estão claras, se o presente é perturbador e exige uma atenção redobrada, como nos diz Pelbart (8), temos razões para alçar-nos com mais garra à altura desse desafio. Como diz Deleuze, estar à altura do que nos acontece – eis a ética essencial.

É desta forma, que problematizar a questão do presente nos remete a colocá-lo sob o prisma da crítica e da crise não com vistas a destruí-lo, mas a explorar-lhe as virtualidades imanentes, liberar-lhe o tempo como potência de duração e diferenciação. Desta maneira, portanto, é que introduzir no balanço do vai-e-vem das cronologias, algo que também não passa, que se faz daquilo que é desfeito e que faz proliferar a vida ali mesmo onde a morte é mais violenta e profunda, pode apontar para a rostificação do mundo e dos sujeitos não mais a partir de fôrmas-modelo pré-existentes e universais. Rostificar do mesmo modo como se esculpe formas na areia, cujos contornos se evadem movidos pela vibração molecular de grãos imperceptíveis; utilizar e buscar as linhas liberadas de formas já significadas, rotas de fugas, rupturas a-significantes, a-subjetivas, impessoais, dispostas a todas as núpcias e conjugações em prol da produção autopoiética dos corpos. Problematizar a questão do presente invoca, pois, poder focá-lo na perspectiva de sua própria invenção, uma vez que não se trata de conferir-lhe inspiração e entusiasmo a partir de representações ideais, dadas e pré-existentes na mente e sim de imprimir-lhe uma disposição para o progresso a partir daquilo que está por vir e cuja existência se entrelaça a um agenciamento coletivo ao qual podemos querer pertencer. A vantagem do presente é que ele recém começa . Além do futuro, tem também um passado pela frente.

Na perspectiva da ontologia do presente, estar à altura do que nos acontece, como acima referido, se coloca como uma certa competência ética, inclinada antes do que para uma analítica da verdade, para o progressivo conhecimento da virtualidade do si-mesmo, como nos explica Francisco Varela (9). Tal processualidade e procedimento se baseia em uma aprendizagem que se nutre da própria capacidade de desaprender e do amor ao futuro por vir. Aprender inventivamente, então, não se refere apenas a querer outra coisa, a desejar confrontar e combater o mundo que se nos faz visível e próprio ao clarão das luzes de nossa época. Significa a produção de estratégias concretas de resistência e bifurcação em relação às formas atualizadas, o que se revela através de ações corporificadas e imediatas (10). Falamos aqui de uma cognição encarnada que não decorre de regras morais abstratas, que emerge como problema que demanda uma disposição para agir de modo imediato e que pertence, ao domínio do corpo e dos afectos. Do mesmo modo, aprender inventivamente não pressupõe o direcionamento da ação para a resolução de problemas, evidenciando-se, ao contrário, como capacitação para a problematização, uma vez que se relaciona ao índice de transversalização que o corpo suporta, dizendo respeito, em última instância, ao seu modo de agüentar criativamente as relações com o Fora. Falamos, aqui, da abertura do corpo para a diferença, para seu nível de suportabilidade das perturbações ao seu estado estável, em direção ao diferir de si mesmo e desdobrar suas potências autopoiéticas.

Podemos perceber, neste ponto, que o que passa a ser significativo na história do presente não são propriamente os feitos de um passado remoto ou recente, e sim a permanência da potência do corpo em afetar e deixar-se afetar, mantendo-se plugado à vida que nele circula em busca de expansão, como único modo de inventar sua própria duração. O que é significativo para o nosso interesse, são as múltiplas formas através das quais a vida, como acontecimento, revela sua potência de fabricação de mundos e homens através da dupla dinâmica, repetição-diferença, na qual o que retorna é sempre o outro. Assim, as derivas e ressonâncias produzidas no encontro com os corpos, podem nos indicar cada forma e sujeito, como um terminal da imensa rede de afecções e contágio na qual inscrevem sua existência. Falamos, pois, aqui, de uma Revolução Molecular, cuja expressão em geral pode ser dada através de feições ainda informes, não instituídas e significadas, ainda inauditas e imperceptíveis. Falamos de um processo de molecularização, de despersonalização, de antagonismo à soberania do eu e de suas referências identitárias, potências do extra-ser que se encontram cravadas na carne do ser e cuja existência mostra-se sempre e irremediavelmente fugidia, acelerada, nômade, não se deixando nunca resolver, decifrar ou expurgar. Forças nômades que compõem máquinas de guerra, forças de traição e de fazer fracassar aquilo que o clarão da razão de cada época nos apontou como verdadeiro, bom, justo e belo.

Em David Lapoujade (11), temos a oportunidade de continuar nosso raciocínio quando lemos: “Tudo se passa como se ele [ o corpo ] não pudesse mais agir, não pudesse mais responder ao ato da forma, como se o agente não tivesse mais controle sobre ele. Os corpos não se formam mais, mas cedem progressivamente a toda sorte de deformações.” Também reafirmando a dominação contemporânea dos corpos e suas múltiplas ilusões, Deleuze (1997) (12) nos propõe a noção de “gorda saúde dominante” que, ao devorar, expele tudo, e que revigora a própria forma com um estado de não resistência assumindo um quase nada, ou seja agregando a forma homogênea e macro em sua existência. O que podemos extrair de tais posicionamentos para fins de nossa análise, é a crítica a uma perspectiva de saúde mental que busca associar subjetivação com adaptação do corpo a um mundo dado e pré-existente, do qual o sujeito deve ser reflexo adjunto. Crítica ao processo de identificações com valores e figuras pré-moldados, formatados e homogeneizados por interesses globalizantes e universalizantes, que engolfam e prendem, na massa indiferenciada, as potências da diferença e dos desvios. Referimo-nos ao um modo de engordar a própria e já gorda saúde dominante que, em nome da filiação e inclusão social, busca absorver e neutralizar as potencialidades autopoiéticas dos corpos, colocando-as no caldeirão de um presente sem passado, onde pretende forjar misturas sem memória, sem tempo, sem duração, instantâneas e imediatamente prontas para o consumo e para a obsolescência. A velocidade aqui se reflete na própria desrealização do feito, em sua consumação e devoramento.

Para os autores acima citados, a problemática da resistência situar-se-ia exatamente no ponto em que o corpo, disposto a abrir-se para sair de si, desejoso de deixar-se perturbar para produzir-se como multiplicidade, para habitar fronteiras para além do humano, torna-se fragilizado pelos sucessivos desfazimentos, desapegado de certezas e crenças, fazendo-se simultaneamente moribundo e embrionário, confrontando-nos a uma “surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma vidência, um torpor que é uma sensibilidade exacerbada, uma apatia que é puro pathos , uma fragilidade que é indício de uma vitalidade superior” (13).O que é que o corpo não agüenta mais? Ele não agüenta mais tudo o que o coage por fora e por dentro, não agüenta o adestramento a que está submetido historicamente e também a culpabilização, a patologização do sofrimento, a insensibilização e sua própria negação. Um corpo não cessa de ser submetido aos encontros; ele diz respeito às afecções com a alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que cabe a ele selecionar, evitar, escolher, acolher... Para mais e melhor, torna-se necessária a atenção às excitações que o circundam, sendo de sua competência a capacidade em evitar a violência que o destruiria de vez. Se consideramos que o corpo não é definível como unidade psico-física, sendo um ser de consciência e de inconsciência, conforme palavras de José Gil (14), podemos pensá-lo como em estado de permanente produção, que é, por sua vez, promovido primeiramente pelo encontro com outros corpos. Assim, o corpo não nos é dado. Devemos torná-lo nosso, instituí-lo em nossos códigos de significação e valores. Neste sentido, um corpo é desde sempre um nada, corpo-deserto, portador de uma certa impotência da qual, contudo, pode extrair a potência superior de inventar-se. Tratamos, aqui, “de um querer viver obstinado, cabeçudo, indomável, diferente de qualquer vida orgânica” (15). Não seria oportuno lembrar, neste momento, do que acima falávamos a respeito da vontade de Revolução e de sua distinção do empreendimento revolucionário?

Não seria este o sentido que poderíamos dar ao desejo? Transbordamento, excesso, poderosa vitalidade não orgânica, que completa a força com a força e enriquece aquilo de que se apossa. Vida, puro acontecimento, impessoal, singular, neutro, para além do bem e do mal, uma espécie de “beatitude”, diz Deleuze. Corpos que falam de uma forma de vida que é sem forma, sem sede de forma, sem sede de verdade, sem sede de julgar e ser julgado.

II – A Multidão e o devir Zapata


A vida, principalmente desde a Revolução Industrial, passou a ser o lugar comum. Todos se sentem à vontade para falar em seu nome; todos a defendem, desde os discursos médicos, psiquiátricos, políticos, filosóficos até as práticas dos especialistas que se ocupam da manipulação genética e dos políticos que empreendem guerras planetárias. No momento em que todos a invocam, em direções e domínios tão diferentes, podemos perceber que ela, a própria vida tornou-se um campo de batalha, campo de disputa dos poderes sobre o corpo. Este passa a ser investido como capital vital, sendo-lhe atribuída uma força de valoração que irá se associar a outras forças, cooperando e se expandindo. É no contexto de tal sociabilidade e associacionismo que emerge a atual necessidade de criação de dispositivos que potencializem a construção de territórios de propagação da vida. Falamos, aqui, da emergência de coletivos sociais. Em Paolo Virno (2003) (16), encontramos a oportunidade de articular a questão do coletivo ao conceito de multidão, o que exploraremos de modo breve no contexto de nossa análise. A partir de concepções de filósofos como Espinosa, Hobbes dentre outros, o autor italiano vai nos mostrar que a multidão concerne a uma pluralidade heterogênea que persiste como tal no espaço público, na ação coletiva, sem converger para “um”, sem evaporar-se em um movimento centrípeto. Aponta-nos, assim, para a positivação do conceito de multidão, face às suas versões negativas anteriores, elaboradas em um tempo social em que as esferas pública e privada encontravam-se separadas e delimitadas, assim como vigia a separação da vida privada e da vida política. Como nos mostrou Hobbes, a multidão, se contrapõe à idéia de povo, uma vez que este converge para “um”, para o Estado e para a soberania representativa. A multidão teria, então, um sentido negativo, de oposição e polaridade, sendo contraposta ao povo, à unidade política do Estado. A multidão consistiria em um estado da humanidade que devia necessariamente ser ultrapassado a favor da coesão social fundada na base da homogeinização dos interesses coletivos. A busca do consenso e de um contrato social fundado na ilusão de totalidade e unidade, torna a multidão como ameaça aos sonhos da representação em nome do Um como o bem supremo de uma sociedade (17).

Já na modernidade líquida do contemporâneo, observamos, dentre tantos outros aspectos, a crise dos dispositivos institucionais específicos e o embricamento das esferas pública e privada, registrando-se, ainda, que o próprio sentido de comunidade se mostra diluído, assim como esvaziadas as tradições e certezas que acompanharam o trajeto de tantas gerações. A produção social, isto é, o conjunto vigente de formas de vida, a atual constelação social, antropológica e ética, toma o lugar do que é chamado comum. A inteligência coletiva abre espaço para esferas públicas não estatais, tal como a WEB, por exemplo e, é assim que, na atualidade, o conceito de multidão passa por esse coletivo, reapropriando-se de um regime-saber antes congelado no aparato do Estado e das instituições, transformando-o e colocando-o em permanente movimento.

Multidão também pode concernir à subjetividade, pois, para Virno, a pluralidade, os muitos, a multidão, consiste em uma rede de indivíduos, sendo que o ponto decisivo é considerar a singularidade como um ponto de chegada e não um ponto de partida. Os muitos são o resultado de uma complexa diferenciação progressiva, correspondem ao resultado de um processo, a um processo de individuação. O que precede a toda e qualquer individuação é uma realidade pré-individual, algo que é comum, universal e indiferenciado. Este comum, este real, poderia ser considerado como o fundo biológico da espécie, tais como os órgãos sensoriais, aparatos motor e perceptivo. Este universal, sensação/percepção não é descrito mediante a primeira pessoa do singular, pois não é nunca da ordem de um “eu” individual que sente, vê, toca, mas refere-se a atributos da espécie como tal. É assim que dizemos: vê-se, toca-se, sente-se. Outra realidade universal , outro comum, impessoal que nos circunda e no qual estamos mergulhados, é a própria língua, que é de todos e não é de ninguém. No interior da fala se enraíza o processo de individuação, no qual o sujeito passa da linguagem como experiência pública à linguagem como singularizante. E, por último, teríamos ainda como elemento pré-individual, a relação de produção dominante, o conjunto das forças produtivas, que corresponderiam ao intelecto geral articulado aos aspectos lingüísticos. A multidão leva em suas costas toda esta realidade virtual e pré-individual. No processo da multidão, estamos sem sujeito.

É assim que queremos colocar que a individuação não se dá por completo, de uma vez por todas. Ela não é completa e o pré-individual, plano de sua emergência, não se traduz todo em singularidade, uma vez que o sujeito consiste na trama de elementos pré-individuais e aspectos individuados. Podemos pensar em uma teia na qual o sujeito pode ser considerado como um composto “eu”, mas também um composto “se”. Ou seja, além de um futuro por vir , tem todo o seu passado pela frente. O próprio sujeito torna-se campo de batalha, pois seu eu individuado convive com o “se” - permanente ameaça de desfazimento e perdição. Os aspectos pré-individuais provocam, questionam a individuação fazendo com que esta se mostre como um resultado precário, sempre reversível. Por outro lado é o “eu” que parece reduzir a si, todos os aspectos pré-individuais da experiência. Delineia-se o corpo paradoxal, relação de coexistência entre organismo e corpo-sem-órgãos (CsO), relação entre pré-individual e individuação, que é mediada pelos afectos.

Desta forma, o coletivo, a experiência coletiva, a vida do grupo pode constituir-se território de uma nova individuação, pois é nesta participação coletiva que o sujeito tem ocasião de individuar e atualizar a quota de realidade pré-individual que leva sempre em si. O coletivo acentua e persegue o processo de individuação, sendo o indivíduo o resultado final do processo.

Para finalizar, utilizaremos algumas das considerações de Cecília Coimbra no texto Estratégias de Resistência e Criação: Ontem, Hoje... (18), propomos uma breve menção ao que vamos denominar de Devir Zapata. Procuraremos, então, articular através de uma certa imagem, a proposição e os conceitos que foram tecendo nosso texto.

Quando o suposto sub-comandante Marcos sobe a montanha. da selva atualizando a utopia zapatista, cobre o rosto. E sobre seu cavalo e suas costas carrega a potência da multidão. Multidão dos sem terra, sem educação, sem saúde e repletos de gana de ação e vontade de revolução. Ao cobrir o rosto, não somente carrega seu corpo e faz desaparecer sua face e permitindo visibilizar um sonho instituinte, movimentado pelo desejo de cada um ser aquele cavalheiro nômade que, na exaustão de suas trilhas, faz consistir devires minoritários.

Esta aura misteriosa de dar passagem ao outro, este fervor zapatista é um duplo na existência, singularidade corajosa que insiste na criação de uma ética nascente, não negando as armas, para um dia, quem sabe, deslizar no rizoma e não finalizar a metamorfose. Os sub-comandantes Marcos, João, Pedro, Antônio não alimentam a ilusão do final feliz ou do dia emblemático do descanso. Escolheram a sina dos corpos que não agüentam mais.

Sua trilha é uma fotografia do tempo de uma cicatriz, sua materialidade é um rastro de potência que faz com que olhemos para o mundo e possamos nos surpreender com a flexibilidade dos limites do não-lugar.

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(1) Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS

(2) Mestre em Psicologia Social e Institucional

(3) Mestre em Psicologia Social e Institucional

(4) Breton, David Le. Adeus ao corpo.

(5) Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio: Zahar, 2001.

(6) Escobar, Carlos Henrique (org). Michel Foucault. O Dossier. Últimas Entrevistas. Rio: Taurus,1984. p.105

(7) Was ist Aufklärung (O que é o Iluminismo), de Immanuel Kant, aqui colocado em análise por Michel Foucault em um contexto de estudo sobre história da filosofia. Para Foucault, o texto de Kant não coloca diretamente as questões da origem e do fim, mas posiciona-se de modo discreto, quase lateral, em relação à teleologia imanente ao processo mesmo da história.

(8) Pelbart, Peter. Pál. Prefácio. In: Formas de Ser e Habitar a Contemporaneidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000.

(9) Varela, Francisco. Sobre a competência ética. Lisboa: Edições 70, 1995.

(10) Kastrup, Virginia. Competência ética e estratégias de resistência. Trabalho apresentado no XII Encontro Nacional da Abrapso/POA-out.2003.

(11) Lapoujade, David. O corpo que não agüenta mais. In: Nietzsche e Deleuze:que pode o corpo. Lins, Daniel e Gadelha, Silvio (orgs). Rio:Relume-Dumará, 2002.p.82

(12) Deleuze, Gilles.Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.

(13) Pelbart, Peter Pál. O corpo do Informe. In: Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. p.44.

(14) Gil, José Nuno. Abrir o corpo. Texto apresentado no Simpósio Internacional Corpo, Arte e Clínica, promovido pelo PPGPSI/UFRGS, Porto Alegre/abril de 2003.

(15) Pelbart, Peter Pál. O corpo do Informe. In: Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. p.50.

(16) Virno, Paolo. Virtuosismo y revolución, la acción política en la era del desncanto.Madrid: Ed. Mapas, 2003.

(17) Não podemos deixar de mencionar, aqui, o próprio Freud, quando, em seu trabalho sobre as multidões e os grupos, se mostra profundamente influenciado pelo conceito negativo de multidão que é tomada como força indomável, irracional e a ser domesticada pelo ego e pela realidade. Para Freud, todo o grupo deveria, em nome da saúde e do equilíbrio mental, apropriar-se dos atributos do indivíduo, dotado de unidade psicofisiológica, passível de controle e predição.

(18) Coimbra, Cecília. Estratégias de Resistência e Criação: Ontem e Hoje... Texto apresentado no XII Encontro Nacional da Abrapso - Porto Alegre/0ut.2003

MESA REDONDA INTERDISCIPLINAR
PARTICIPAM:
CICTSUL - CENTRO INTERDISCIPLINAR DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE DA
 UNIVERSIDAE DE LISBOA
GIFHC - GRUPO INTERDISCIPLINAR EM FILOSOFIA E HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS
(PORTO ALEGRE, BRASIL) E 
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