A PAISAGEM DAS LUZES EM PORTUGAL (1)
texto de Mário Fortes e Cláudia Ávila Gomes
fotografias de Teresa Andresen e Mário Fortes
(arquitectos paisagistas)

A construção de paisagens...

As abordagens efectuadas no âmbito da história de arte europeia têm relegado para um plano secundário a paisagem, que a partir do século XVIII se assumiu como objecto de disciplina autónoma e integrante das restantes vertentes artísticas, englobando a arquitectura, a pintura, a escultura, e até mesmo a literatura. Desta postura contemporânea destaca-se a interpretação das paisagens construídas no passado como meras formalizações estéticas.

A reduzida investigação efectuada sobre este tema específico em Portugal, a preponderância de preconceitos históricos e a exclusividade de uma obsessão pelo exterior dificulta o reconhecimento da importância de parques e jardins construídos em território nacional durante os séculos XVIII , XIX e XX.

Neste contexto, importa evidenciar quais os fundamentos sociais e culturais que presidiram à concepção da paisagem durante o Século das Luzes, e que se reflectiram em obras notáveis de séculos posteriores. A construção de paisagens em Portugal poder-se-á ter revelado durante o período romântico como percursora de géneros ou como exemplo isolado na Europa, contrastando com a actual atitude conceptual e projectual, muitas vezes limitada a formalismos decalcados e descontextualizados.

...no contexto europeu...

Do discurso artístico de setecentos releva-se, no plano internacional, a experimentação e teorização de paisagens idealizadas nas quais se reflectiram princípios de justiça, de igualdade, e de liberdade. Nos cenários então criados demarcaram-se as vertentes histórica e científica de um conhecimento florescente, e os imperativos económicos subjacentes a uma visão fisiocrática, não se assumindo exclusivamente como reminiscências ou de um paraíso perdido ou recriações de uma idade dourada.

Nas paisagens construídas, onde a linha ondulante de feição naturalista substituiu a rígida estruturação barroca, tornou-se possível a fruição simultânea das múltiplas potencialidades produtivas, recreativas e cénicas, e a expressão de ideologias sociais e políticas, que se opuseram declaradamente a uma sociedade de estados e ao absolutismo régio.

Cenários e marcos diversos contestaram subtilmente os alicerces do Antigo Regime e relevaram a erudição dos mais insignes representantes do Século das Luzes, traduzindo as pretensões de uma burguesia ascendente, as afirmações de uma nobreza contestatária ou as exigências de um soberano iluminado.

Nas várias composições idealizadas e construídas, onde se reflectiram as dúvidas de Voltaire e os princípios de Rousseau excediam-se as questões mundanas inerentes à sobrevivência da espécie humana, promovendo-se o enriquecimento espiritual e individual pelo retorno do Homem ao Estado de Graça e pela contínua procura da Harmonia Cósmica. Aí, articularam-se saberes tradicionais com as mais recentes técnicas relacionadas com a gestão equilibrada de recursos, deixando emergir a nova atitude fisiocrática (JANEIRA A. e FORTES, M., 1998).

Nestas paisagens, a construção de templos e templetes tenderia a realçar ideais virtuosos e exigências de moralização, face a situações de eminente decadência social. O recurso a ruínas e falsas ruínas de inspiração clássica procuraria estabelecer analogias sociais e políticas enaltecendo os ideais clássicos. A integração de ruínas e falsas ruínas de feição medieval em cenários decadentes e nostálgicos acusaria a corrupção vigente ou evidenciaria períodos e políticas de afirmação nacionalista. Pirâmides, esfinges e obeliscos relembrariam cultos egípcios, práticas recônditas e rituais herméticos tão em voga durante o século XVIII.

Castle Howard (Inglaterra): Templo dos Quatro Ventos

As sofisticadas e complexas soluções adoptadas, que compatibilizaram paraísos, arcádias e paisagens rurais romanas, garantiram a unidade conceptual de cenários idealizados em torno das múltiplas ruínas e fabriques. Quadros justapostos, distintos pelos pontos de vista privilegiados e pelo respectivo enquadramento, permitiram a coexistência de estruturas de épocas, estilos, origens e dimensões diversas, por vezes controversas.

Durante este período trasladaram-se as mais significativas ruínas então conhecidas, integrando-se as respectivas réplicas em cenários arcadianos e utópicos, adaptações tridimensionais de célebres obras de Nicolas Poussin e de Claude Lorrain. Os jardins de Méreville, propriedade de Joseph de Laborde, banqueiro de Luís XVI de França, acolheram as cópias do Templo da Sibila em Tívoli e da coluna de Trajano. O parque de Hohenheim recebeu as Termas de Diocleciano, a Pirâmide de Caio Cestio e as três Colunas de Júpiter Tonante, imitações das ruínas do Templo de Vespasiano e de Tito em Roma (BUTTLAR, A., 1989, p.168-169).

Nestas superfícies modeladas, parcialmente alagadas, plantadas e semeadas, praticava-se a agricultura, a silvicultura e a pastorícia. Construíam-se templos e ruínas que dissimulavam paisagens subterrâneas onde se apelaria ao mistério e à iniciação, evidenciando discretamente as afinidades filosóficas dos seus promotores. Denunciava-se comportamentos de uma sociedade inovadora, por vezes contestatária.

No parque de Luisenlund, propriedade do princípe Carlos de Hesse, construiu-se um cenário de características peculiares no qual se integraram estruturas aparentemente desconexas e insólitas: Câmaras subterrâneas, um lago em forma de Lua, um laboratório alquímico e um monumento de pedras dedicado a Hermes Trimegistus (1) . Em muitos outros jardins e parques proliferaram grutas e túneis misteriosos. Refira-se Arlesheim, ermitério suíço no qual se delineou um percurso aproveitando um labirinto natural de grutas (2), em torno das cavernas de Apolo e de Prosérpina e, ainda, os fantásticos subterrâneos egípcios traçados por Jean Jacques Lequeu que interligariam terraços e estruturas arquitectónicas num jardim.

Studley Royal (Inglaterra): Lago da Lua e Templo da Piedade

Contudo, o recurso a esta gramática decorativa e a este vocabulário simbólico não é exclusivo deste campo artístico, destacando-se também noutras áreas como expressão dissimulada de grémios, corporações e sociedades (quase que secretos). Reconheça-se na Flauta Mágica, de Schikaneder e Mozart, o enredo e na vasta obra de Piranesi a iconografia, ambos de apropriação maçónica.

É nesta conjuntura idealista, crítica e moralizadora que se explora a pedagogia das viagens míticas e se evidenciam descidas literárias às profundezas como veículos morte, purificação e renascimento. Nos finais do século XVIII, obras fantasiosas excedem esta atitude pedagógica exaltando ritos e mistérios, sendo concretizadas de forma óbvia na concepção dos labirintos, túneis, criptas, grutas e cascatas ruídosas de muitos parques e jardins paisagistas. Denote-se a sinergia desenvolvida entre literatura e paisagem que se reflecte tanto na criação de parques e jardins, como nas muitas publicações e outras obras de cariz social e alegórico efectuadas ao longo do século XVIII.