Maria José Vera e o caminho da Luz

PAULO BRITO E ABREU


( «in memoriam» do Poeta António Vera )
«O homem fala, então, mas é porque o símbolo o fez homem.» Jacques Lacan

 

O nome é o Nume. O Astro é o estro. Requer, este «liber», o falante e aflante. E por isso, preste e pronto, e por isso divisamos: ao mentarmos sobre o livro de Maria José Vera, não podemos olvidar: a Autora profere, ela professa, a amada Psicanálise, sem temor, mas com tremor, há mais de trinta anos. Isso aduz, ou quer dizer, que a Autora realiza, pronta e preste, uma operação sobre a linguagem. Quer isto significar: um pôr-se em obra da «alêtheia», um pôr-se em obra da Verdade, um doutrinar, e ensinar, sempre através do signo linguístico.

O homem se faz homem, por isso, ao partilhar a linguagem, quero assertar, o contrato social. E para bem apreender, pra bem compreender Maria José Vera, que faça, o legente, como o culto Cassirer  – e em lugar de distinguir entre animais racionais e os animais irracionais, que destrince, o ledor, entre animais não-simbólicos e animais, ou falantes, providos de símbolo. Se o Ego anela, e apela, por o discurso do Outro, aquilo a que chamamos inconsciente é um lugar desocupado onde se consuma a autonomia da simbólica função. A propósito, então, de Maria José Vera, nos remembra, e alembra, Claude Lévi-Strauss: «Os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam. O significante precede e determina o significado.»

Ou melhor: se o mundo descrito em «O Complexo de Lúcifer» é, de certa maneira, o esquecimento do Ser, Maria José escuta, ela escruta, as vozes recônditas que vêm do Ser. Sempre tendo, por isso, em conta, que o «id fala», que o «ça parle», que o inconsciente, nos sonhos, se manifesta através da lítotes, das metáforas, e das belas metonímias. O sonho, por isso, é gramatical, ele é um texto que merece ser descodificado. O crítico literário é deveras hermeneuta – e hermeneuta é também o Psicanalista. Sigmund Freud, afinal, o hermeneuta de Sófocles. Aquele que, para aclarar a Psicanálise, retomou o caminho da Poética antiga. E não será Poesia em prosa, com todas as veras, «O Complexo de Lúcifer»??? Não será que o acalanto é alento e alento, o alimento??? O Eu, para Rimbaud, ele é um Outro, afinal – e a força da Palavra, pra Maria José, sai de si em busca de si própria no Outro. Que o edível é edule, o educar é eduzir e eduzir é seduzir – e o «sermos dois», na «communio», é o princípio, ou início, da Revolução. Ou melhor: na clínica do estilo, no horizonte da Análise a Liberdade fulgura – e temos, então, Maria José Vera, como a figura-fulgor e a livre-pensadora. Ouçamos, na cita, a promotora e Autora: «Eu sou aquele que se descobriu no ponto de um lugar nunca passível de ser ocupado por nenhum outro» – e tal como, de feito, em Vergílio Ferreira, a existência precede a essência, e está, Maria José Vera, condenada a ser livre. Na grafia, ou gramática, do inconsciente, ela é o Homem, o drama e a tragédia, a cena, o actor, o guião e fazedor – e é o que se passa, «verbi gratia», no trabalho do sonho. Não será, entanto, «O Complexo de Lúcifer», qual auto-análise existencial??? Nos afiança, de facto, a feitora: «Canto, com a minha solidão, o inconsolável desespero dos que remetem para o belo a única herança. O património. O tesouro que resta. O belo e eu somos massa da mesma solidão. Constituímo-nos no lugar de onde partiu o afecto. Toda a estética me faz chorar: dá-me a ilusão de comigo partilhar esse lugar que foi ( nunca foi ou jamais o será ) o lugar do amor.» Ou melhor: como em Jacob Levy Moreno, a Autora faz do jogo o auto e o teatro, o Psicodrama preste – e a paixão, por isso, é patética, a auto-análise é entanto passional. Remembremo-lo, entretanto, mais uma vez: em amor, ou melhor, numa harmonia das esferas, o papel de Maria José é único, dessarte, inconfundível também. E mais, por isso, do que a contracultura, este livro relata a cultura de encontros. Que disserta, desta sorte, Maria José: «Eu próprio já parti, e não me comovo. De mim fica a beleza do que criei, no lugar onde havia de ter sido o encontro.» O convénio, confluência, o contubérnio. E trago aqui, à colação, a ex-centricidade do Ser. «A ferocidade que é esquecida e vilipendiada pelos que possuem por meta o sonho da tranquilidade do lar.» Quero eu dizer: no «pensamento selvagem», de Claude Lévi-Strauss,  cotejemos então a cita com Fernando Pessoa: «Triste de quem vive em casa, / Contente com o seu lar, / Sem que um sonho, no erguer de asa, / Faça até mais rubra a brasa / Da lareira a abandonar!!!»

Temos, então, que o material mais importante do Psicanalista são, propriamente, as palavras. Palavras, palavras, palavras. Tratada, de feito, por Josef Breuer, entre Julho de 1880 e Junho de 1882, Anna O. ( ou, com mais rigor, a Bertha Pappenheim ), ela deu, à Psicanálise, o nome de «talking cure», a cura, dessarte, através da palavra. Curiosamente, tal Catarse é, pra Pierre Janet, a moral desinfecção – e mitologicamente, etimologicamente, Psicologia é, de feito, uma «fala da Alma». Do que se trata, em Psicanálise, é fazer com que, através da fala, saia, do sujeito, um segredo patogénico. Ora a «Catarse» é uma palavra grega proveniente dos Mistérios e popularizada, arcaicamente, por Aristóteles, deveras. E se a «catharsis» é o meio de liberar as paixões vivendo-as, na verve, de forma imaginária, o dolente participa, ou toma parte, nos dramas mistéricos, os de Elêusis, por exemplo, ou da «mystery play» – e não estamos, veramente, não estamos nós em plaga de Jacob Levy Moreno??? A Psicanálise, afinal, é o sonho do século, são filósofos dormentes, é a «linha oblíqua e mimosa entre o dia e a noite.» Queremos, nós, aqui, dizer: leitora de Virgílio, de Lautréamont, de Lord Byron, o bragante, a Autora, afinal, é senhora «do paradoxo e da imponderabilidade». Passa, por isso, a lógica matemática, por os princípios da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído – mas este livro de Vera, ele tem por essência o Mito e a mentira. Ouçamos, agora, uma cita, um excerto, das minhas «Loas à Lua»: «Mas se a ficção e os fantasmas do estado religioso forem considerados como mentiras poéticas ou puramente utópicas, resta agora afirmar que esse tipo de mentiras ou ficções são, para aqueles que nelas crêem, mais plausíveis e reais que a prosaica realidade.» Contar, por isso mesmo, os sonhos e mentiras: eis o múnus, o cargo, do Professor de Literatura. «Sou um exilado», nos remembra, ainda, Maria José Vera. E mais à frente, afinal: «As minhas raízes estão no pensamento e no saber, nos quais procuro afiliação. Digo «procuro», porque não encontro. Como também nunca encontrei um corpo de mulher, um continente único, que pudesse designar por «mátria». Simulo ter pátria, língua, família e pertença, para poder existir.» Ou melhor: ela simula, e assimila, o Nome do Pai. «Afiliação e pertença? Sim, uso-as para sobreviver. ( … ) E o meu desejo inscreve-se num lugar outro, que não sou eu.» Nos adverte, na cifra, Sá-Carneiro: «Eu não sou eu nem sou o Outro, / Sou qualquer coisa de intermédio, / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro.»

Como aventámos mais atrás, é exemplo, «O Complexo de Lúcifer», de Psicanálise, análise, existencial. Ele é «Mitsein» e é «Dasein», é uma tópica insistência na Verdade do Ser. Queremos assertar: se o Homem, para Sartre, é projecto, ele é também, para João Belo, dejectado no mundo. Tal como na fenomenologia, de facto, de Ludwig Binswanger, a ex-sistência do sujeito é tomada na sua tríplice dimensão do tempo, do espaço, e da mundanidade. Quer-se dizer: se o «topos» do sujeito é isolado, exilado, ou fora da ilha, urge, aqui, um Ser para os outros, a união, o encontro, do Eu com o Tu. Ser dela capaz, como o lúcido Lúcifer, é portar, e transportar, o tema e o lema, o emblema da Luz. Quer saber, o legente, qual é, na História das Ideias, o signo, e a signa, dos «Mestres da Suspeita»??? Ele é, para Paul Ricoeur, o tríplice nome de Freud, de Marx, e de Friedrich Nietzsche. Uma treva que dá Luz, a ruptura inaugural. Ouçamos o que asserta Maria José Vera: «A minha liberdade é negativa porque não tem lugar onde se acoitar. Nem possui lar, nem país. É apátrida de concepção». E esmiuçando, mais à frente: «Não tenho lugar para existir. A minha pátria é o meu desejo. Sou vagabundo. Estou sempre de passagem» – e remembra-se, o ledor, da ex-centricidade do Ser??? Se Maria José Vera é libertária Poetisa é que ela inverte, reverte e subverte o centro do mundo. Ou melhor: ela trova e ela estorva, ela é Mestra, aqui, da Grande Recusa. Revertendo, por isso, a Lord Byron, ela diz: «Não entrego a minha alma a espíritos ou a sacerdotes. Esses só obtêm de mim a minha força e o meu desdém. Ele quis, no derradeiro momento, em «Manfredo», alcançar na morte a solidão da vida. Eu alcanço na vida a solidão da morte.» Pastora, como vimos, de palavras, desvela, com a dextra, Maria José – para velar, e ocultar, com a sestra e sinistra. E disserta, a Autora, a dado passo: «Um dia remeter-me-ei ao silêncio. Talvez através dele me reencontre.» Porque todo o conhecimento, ele é forma, sagaz, de reconhecimento. E porque o ser, para Berkeley, é ser percebido. E porque o mundo, pra Schopenhauer, ele é a minha e é a sua representação. Tal como em Heraclito, a vida, para Maria José, é a morte dos imortais, e a morte dos mortais é a vida de imortais. E a propósito da Psicanálise, ouçamos, ainda, o heraclitino: «O tempo é uma criança jogando ao gamão, o reino de uma criança». Esta frase resume, como poucas, o fenómeno, figadal, de «O Complexo de Lúcifer». Ou melhor: se o jogo, aqui, é contra o jugo, o princípio do real, ele é inverso, e ele é contra, o princípio do prazer. Para afastar, por isso, a angústia, o Homem pois apela ao «divertissement», ao boato e à charla da lenda leitora. «Verbi gratia», na verdade, Juvenal, nas suas «Sátiras», ele despreza e verbera os Romanos da decadência: pois, segundo o Poeta, eles só pediam o pão e espectáculos de circo. Dizem, por isso, Espanhóis: «Pan y toros» – e já estamos no âmago, no íntimo ou imo de «O Complexo de Lúcifer». Lúcifer, ou melhor, o mundo gentio que nos vem dos avitos. Se as multidões sentem prazer com o sangue derramado, é porque Jung, de feito, é figadal – e o homem civilizado ainda arrasta, atrás de si, a cauda dum sáurio. E se canta aqui a Vénus, na Musa e no carme, é porque o hino, ou himeneu, é o rompimento do hímen. Se imaginar, entanto, é como fazer, imagina-se, por isso, em estado mágico-simbólico, e a Arte é pois regresso ao mundo da infância. E só ficciona quem finge, quem sonha e fabula. Dá-se Poesia, em nós outros, quando a gente sonha – e entra, em Metaciência, e entra nas imagens, nos mitos, nas metáforas. Pois, etimologicamente, na língua gaulesa, o «trouver», ou «encontrar», é ir ao encontro da trova e do tropo. «O Complexo», por isso, de «Lúcifer» – e eis aqui o sintoma, aqui eis a retórica do inconsciente. E é tempo de aduzir que o sonhar e a quimera, é qual «imago», paternal, do Poeta António Vera; a ele então a trova e o reconhecimento. Ou o saber, veramente, «que de mim para o outro vai uma ponte feita de corpos e de representações. Atravesso a ponte, mas os pilares feitos de mim e do outro permanecem estacas entre dois pontos inexpugnáveis», o encontro, quando o há, é qual miragem – de me encontrar ausente da minha viagem. Meditemos, entanto: se o sinérgico, ou simbólico, é um sistema de representação baseado na linguagem, Lévi-Strauss compara, a «tékhne» do xamã, com a técnica, a cura, psicanalítica. E o digamos, então, mais uma vez: a Psicanálise é um jogo, ou Psicodrama, que se apoia, verazmente, no falante e aflante.

E de mais falámos nós. E na alegria fantástica das alegorias, de que se trata, este livro??? Duma Ludoterapia ou Logoterapia??? Talvez, no Mito, de uma Arterapia. Cabe ao leitor avalizá-lo – e a divisá-lo, e avisá-lo, fazer o «transfert». Já falámos, aqui, de António Vera. E para Freud, o feitor, os sentimentos inconscientes do dolente pra com o médico são qual traslado, as traduções, de uma relação recalcada com as imagos parentais – e a criança, por isso, nos persegue, e o futuro é qual passado em preparação. O inconsciente, preclaro, é a letra. A clínica é do estilo. Se, no dizer de Jacques Lacan, «uma palavra por outra, é a fórmula da metáfora», ouçamos, com todas as veras, Maria José Vera: «Neste mundo de substituições, de que sou mestre, tudo tem um preço. Excepção feita à mulher que eu nunca amei, precisamente por nunca a ter amado.» Talvez, então, o sonho. Talvez então a vida, afinal, seja a morte. No fim da «mise-en-scène», frente ao espelho, eu digo, sideral, com Maria José Vera: «Mesmo depois de morto dominarei, pela palavra que pronunciei e que escrevi, o pensamento dos outros. Dominá-los-ei porque usarão a minha palavra para se expressarem. Dominá-los-ei, a esses, que não foram amaldiçoados – ou abençoados? – como eu, com esta força.» A força, afinal, a força do Verbo. Do autêntico, e vero, direito à diferença. A diferença encarnada em Escritora mulher. Ou encarnada, a diferença, em «O Complexo de Lúcifer». E quase à beira do fim, é tempo de alembrá-lo: bem melhor que o sedativo, o psicotrópico e calmante, é, na providência, o poder da palavra. A palavra que mitiga, e que move montanhas, por o genésico poder da imaginação. Que em Maria José Vera, o pensamento é movimento, o pensar é sopesar as palavras sensíveis. E falámos, aflante, de Maria José Vera. De uma mulher, ou terapeuta, a braços com o destino. Que ela a criança amadurece, e a esperança da messe insiste na semente. Porque sim. Outrossim. E para sempre.

Que Luz, 07/ 02/ 2018
SIC ITUR AD ASTRA
SOCIEDADE DE ESTUDOS DE FILOSOFIA E LITERATURA COMPARADAS

 

Paulo Jorge Cardoso de Oliveira Brito e Abreu, que usa, actualmente, o nome literário de Paulo Jorge Brito e Abreu, foi nado em Lisboa, numa família tradicional, a 27/ 05/ 1960. Ex-aluno do Colégio Militar, licenciou-se, em 1986, em Estudos Anglo-Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa. Tem sido Poeta, Ensaísta, Escritor, Pensador e Artista Plástico, ele dedica-se, também, ao culto Esoterismo. Entre os seus livros mais conhecidos, destacam-se, destarte, os seguintes: «CÂNTICO JOVEM PARA A TUA REBELIÃO», de 1984, «O BAFO DO DRAGÃO», de 1987, «A MINHA TROPA FORAM OS ‘ROLLING STONES’», de 1989, «AGRICULTURA CELESTE», de 1992, «LOAS À LUA», de 1996, «O LIVRE E A LAVRA», de 1999, «IGNOTA FAUNA», de 2005 e, em co-autoria com Filipe de Fiúza, «LIBER MUNDI», do ano 2016. Leitor de Éliphas Levi, Max Heindel e António Maria Lisboa, a sua obra reata relações com o pensamento mágico. Em 1999, por o seu labor de Crítico literário, é nomeado Sócio Correspondente da Academia Carioca de Letras; no ano 2000, recebe a Medalha Peregrino Júnior da União Brasileira de Escritores – e no ano 2006, por o seu contributo para a Cultura Portuguesa, ele recebe, dessarte, uma insígnia, da Escola Secundária D. Diniz.