TERESA FERRER PASSOS

CRONO-LOGIA DOS NOVOS TEMPOS

«Eis a velha cidade! A cortesã devassa,
a velha imperatriz da inércia e da cobiça (…)
Ela estreita no seio a velha populaça,
nas vis dissoluções da lama e da preguiça,
e nunca o santo impulso, o grito da Justiça,
lhe fez estremecer a fibra inerte e lassa!»
Guilherme de Azevedo, A Alma Nova

Despertou-me a atenção ver um novo livro de poesia de Cristino Cortes nos escaparates das livrarias. É cada vez mais raro um livro de poesia ter lugar visível numa dessas lojas que ainda vendem livros de poesia, contos ou romances, fora do circuito dos grandes centros comerciais. É o caso das livrarias de bairro de Lisboa, do Porto, de Coimbra. Nas outras cidades e vilas do país a situação ainda é mais sombria: há uma ou duas livrarias com obras de qualidade, quando há...

A escassez de leitores arredou praticamente das montras, e das próprias estantes, as publicações de autores de qualidade (ou coloca-os em paridade com os chamados romances «light»), e, em particular, os autores de poesia. Mesmo autores como António Ramos Rosa, Vitorino Nemésio ou Miguel Torga estão quase desaparecidos nos escaparates livreiros. O que atafulha as montras são os norte-americanos (romances policiais, históricos ou de ficção científica), e as popularíssimas portuguesas Rita Ferro ou Margarida Rebelo Pinto (que até se copia a si própria, como já foi detectado por algumas pessoas)… Nestes casos, poucos mais, o romance vende-se em Portugal…

Mas voltemos aos livros de poesia. Há muitas décadas eram geralmente livros de poucas páginas, alguns com escassas quarenta ou cinquenta páginas, outros, nem tanto, com apenas quinze ou vinte. Assim, mesmo os menos endinheirados podiam comprar livros de poesia. Quantas vezes se entrava na livraria (onde se gostava de apenas folhear obras que não se levava a intenção de comprar) e acabava-se por descobrir um pequeno livrinho de poemas de amor ou de espiritualidade ou até patriótico, de que logo avidamente, e porque o preço era baixo, se adquiria para ler nas horas vagas. Porque ainda havia tempo para fazer quase tudo aquilo que se apreciava fazer…

Como já lera alguma coisa de Cristino Cortes, designadamente, o livro Em Lisboa, pelo Natal…(1995), achei estranho o título agora vindo a lume Cronologia e Outros Poemas (Livro Aberto editores e livreiros, Lisboa, 2005). Parecia um título que nada nos confidenciava sobre a temática abordada, ou talvez até o fizesse, ao puxar para a capa a palavra cronologia. Versos a vaguearem sobre o tempo quotidiano, o dia a dia citadino, efémero e cheio de horas e minutos e segundos, às vezes breves demais, outras intermináveis.

Ao abrir as páginas de Cronologia e Outros Poemas encontramos os ponteiros dos relógios de pulso, os ponteiros dos relógios das estações do Metro, os relógios digitais dos expositores nos cruzamentos das avenidas. Na verdade, a 1ª Parte, designada «Tempus Fugit», é um libelo contra a «falta de tempo» na grande cidade.

O autor sente que a vida em Lisboa, onde vive, se tornou uma rotina difícil de suportar, pois os empregos, tantos deles frustrantes, estão longe da casa de habitação e há as crianças para levar à escola e não há tempo para nada… Ruma-se aos grandes centros comerciais sem se saber nunca por qual se deve começar a fazer as compras prioritárias e, depois, as menos urgentes; procura-se ansiosamente um lugar para estacionar o carro ou espera-se, na impaciência da imobilidade, a camioneta atrasada e já superlotada. Aguarda-se um táxi de condutor mal-encarado, irritado com o insuportável movimento de carros particulares; sente-se o cansaço amargo de um trabalho feito sem paixão. Olha-se para o relógio que parece jogar à cabra-cega com os ponteiros das horas e dos minutos. O próprio domingo tem sopros de fadiga inesperada; e até as férias são envoltas de azedos atropelos porque as opiniões da família divergem e alguém tem de ceder, e ninguém aceita condescender, transformando-se, assim, tudo isto, num «dever» a cumprir ou numa sensação de «dever cumprido».

Como «gerir» este tempo que passa como uma chuva torrencial e quase não deixa usufruir da liberdade de passear pelo jardim público? Estamos à beira de já não nos satisfazerem as televisões repetitivas, frenéticas, cada vez mais, a imitar a vida de todos os dias. O tédio dos reformados aos cinquenta e tantos anos... A ansiedade de um trabalho desgastante porque se faz sem o estímulo de que tem uma real utilidade… Como romper estes esquemas bloqueadores? Como ser capaz de ir, assim, à tardinha, até uma praia de areais a perder de vista? A verdade é que tudo isto é um tormento para quem chega a casa, cansado de uma rotina improdutiva e exausto dos longos engarrafamentos, que apelam cada vez mais à moleza, à passividade… Como alterar todas estas vidas rígidas demais para serem ainda vida?

É perante este contexto que Cristino Cortes dá forma poética à figura ridícula do cidadão encaixado numa teia de obstáculos, inibições e até a abandonar os sonhos mais fáceis de concretizar. Revisitemos alguns versos do poema «O tema do trapezista»: «Como o trapezista em todo o circo me parece / Andar agora como ele algo equilibrando; (…) // É a gestão do tempo, quase fundindo o silêncio / O reverso, o local, o espaço das palavras; (…) // E lá andamos, ele e eu, noite após noite, dia / Após dia, no vácuo procurando íntima alegria.» (pág.33).

Com Cronologia e Outros Poemas surge ante os nossos olhos um dramático calendário em que o «Tempus Fugit». Fuga e angústia do tempo, por exemplo, nos versos de «O poema da espera»: «Este é, seguramente, o verdadeiro poema da espera. / Aproveitando o tempo que passa enquanto alguém não vem (…) // Multiplica-se a consulta do relógio e quanto mais / O olhamos mais nos parece por pirraça, lentamente, / Aéreo se esmera em seu olímpico ciclo e qualquer gente / Assim esperando, perderia a cabeça em sofridos ais…» (pág.11).

Os versos citados mostram bem como Cristino Cortes nos oferece um aviso, e também um alerta, à nossa sociedade distraída ou incapaz de reagir aos atropelos de meios citadinos populosos, em que se consome muito, em que se produz pouco em comparação com o ruído que se escuta…

E, como as pequenas cidades e vilas podiam tornar menos pesado o dia a dia do habitante da grande cidade, de que o poeta é aqui o porta-voz! Como se poderiam tornar mais produtivas cada uma delas, disseminando indústrias e incentivado culturas, que aumentariam a produtividade nacional.

A concentração demográfica nas grandes cidades é atentatória do ambiente ecológico, se, para mais, há uma desertificação progressiva nas pequenas cidades, vilas ou aldeias. Cada região terá de crescer de acordo com o trabalho dos seus habitantes, explorando as produções naturais, desenvolvendo indústrias transformadoras locais, fomentando também a exportação de artesanato secular, desde as rendas e bordados às porcelanas e aos vidros cristalinos de alta qualidade. A produtividade industrial é indispensável à elevação do nível cultural dos povos!

Nesta breve nota sobre a actualidade socio-cultural dos sonetos de Cronologia de Outros Poemas de Cristino Cortes, não queremos deixar de fazer uma referência ao Prefácio da autoria de Manuel Simões (também autor da Introdução ao livro A Alma Nova de Guilherme de Azevedo, de quem, aqui, citamos alguns versos na epígrafe, na edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda datada de 1981).

Destacando que o autor «recorre com frequência a formas coloquiais em simultâneo com figuras de estilo como a elipse» («Prefácio», pág.5), Manuel Simões conclui, neste ensejo, que «a leitura torna-se, assim, menos fluente mas mais atenta ao evoluir da expansão textual, numa relação em que o “grão” da palavra poética é substituído por um modus estilístico que se espraia ao longo do discurso». Mas, não deixa também de acentuar as três palavras fulcrais em que se move a expressão poética de Cristino Cortes: «Fugacidade, mudança, desencanto…». E acrescenta que esta temática central conduziu «à reflexão sobre a morte, aspecto omnipresente na poesia de Cristino Cortes, já desde, pelo menos, Nas Margens do Hades, como foi notado com agudeza por João Rui de Sousa» («Prefácio», pág. 6).

Para finalizar esta abordagem de Cronologia e Outros Poemas realçamos da 2ª Parte, intitulada «Outros Poemas», versos que nos poderão oferecer a outra face de Cristino Cortes. Salientamos do poema «A cada um o seu Bugio», alguns versos: «Tu que és poeta bem entendes esta necessidade / De o sonho alimentar a vida, alegrar o fluxo e a rotina; / É a poesia a nova forma do oxigénio, a radical energia / De quem sabe que numa esquina dois lados se cruzam / E se tu não o sabes mas aérea e vagamente o pressentes / Já não é mau, tens a alma aberta, os deuses te amam / O futuro está garantido, sem saber sentes e ages como a gente.» (pág.65). Em outros poemas há ainda como que uma tentativa de dar um sentido esperançoso à memória (por exemplo, os poemas intitulados «Elogio da Memória» I, II, e III) ou de procurar uma luz mais brilhante para a vida (poemas «O Sol na Lezíria» I e II e «Manhãs na Ajuda»).

Estes exemplos são paradigmáticos. A voz do sujeito poético pode oferecer muitas vozes e, com elas, muitos sentidos, a um texto poético marcado pela objectividade e por um saber franco e oportuno, como é o caso do livro que acabamos de analisar.

 

Junho de 2006

TERESA FERRER PASSOS
 
 

 


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