TERESA FERRER PASSOS
A VIOLÊNCIA, MAOMÉ E O PAPA
«O essencial não são as coisas, mas o sentido das coisas, o deserto fez com que germinasses e crescesses como um sol»
Antoine de Saint-Éxupéry, O Principezinho
1) A VIOLÊNCIA, DEUS E O HOMEM

A propósito do discurso lido pelo Papa Bento XVI na universidade de Ratisbona (12 de Setembro de 2006), na sua última viagem à Alemanha, gerou-se uma onda de revolta entre chefes e fiéis da comunidade muçulmana em vários países de maioria islâmica.

A questão da violência foi confrontada pelo Papa, segundo o critério de Deus e segundo o critério dos homens. Onde começa a violência termina a racionalidade: «O Deus verdadeiramente divino é o Deus que se revelou a si próprio como “logos” (palavra grega que significa Razão, derivada do latim ‘ratio’) e, como “logos”, actuou e continua a actuar amorosamente em nosso favor», disse o Papa (1). Logo, aqueles que usam a violência não usam a razão e, Deus é, acima de tudo, Razão, diz o Papa, citando a Bíblia: «No princípio, era o “Logos”, ou seja, era o Verbo (Deus)» (2). Os homens que utilizam a violência para atingir os seus objectivos não estão a seguir a vontade de Deus. O critério de Deus é, assim, exclusivamente, o critério da paz. Mas o critério dos homens nem sempre coincide com o critério divino. Na sua exposição, Joseph Ratzinger acrescenta, citando o Imperador Bizantino Manuel II: «Deus não gosta de sangue e não agir racionalmente é contrário à natureza de Deus (…). Para convencer uma alma racional, ninguém precisa de um braço forte ou armas de qualquer tipo ou quaisquer outros meios de ameaçar uma pessoa com a morte» (3).

É neste contexto ideológico-religioso, e também político, que o Papa Bento XVI lembra o caso do profeta Maomé, fundador do monoteísmo muçulmano no século VII, por meios que não excluíram as armas. De acordo com a história, Maomé não deixou, desde as suas primeiras prédicas contra aqueles que nele não acreditavam, de usar as armas sempre que elas lhe deram vantagem, como aconteceu quando mandou os seus partidários atacar e pilhar uma caravana que vinha da Síria em direcção a Meca (cidade da Arábia) para adquirir bens materiais de que necessitavam.

Como escreve o historiador Sourdel, Maomé comportava-se como um chefe teocrático que recebera mensagens de um anjo de Deus (em árabe, = Allah) transcritas no livro que designou Corão (4).

Muitos séculos mais tarde, no século XV, em pleno período de decadência do Império Romano do Oriente, o Imperador Bizantino (cristão), Manuel II o Paleólogo, num diálogo com um intelectual persa, realçou os males da violência usada pelo profeta Maomé. O Imperador foi uma das vítimas dos seguidores do islamismo. De facto, é bem natural que a imagem que o Imperador tinha dos maometanos não fosse favorável, pois fora vencido na batalha de Nicópolis pelos turcos maometanos, em 1396.

Em 1422, o Imperador Manuel II viu-se obrigado a prestar vassalagem ao sultão. O Papa de Roma só lhe concederia auxílio, conforme o Imperador bizantino solicitou, caso ele aceitasse ficar na sua dependência directa (político-religiosa), o que recusou, tendo recolhido, inconformado, a um convento.

À violência armada do expansionismo islâmico (‘islam’ = submissos), os cristãos também responderam com a força das armas. À espada só se podia responder com a espada. O ódio mútuo era inclemente. Os crentes de uma e outra das religiões não se distinguiam claramente nos métodos de defesa da sua crença. O uso da violência tem sido constante na procura do domínio territorial, económico ou político-estratégico, por questões muitas vezes alheias aos princípios morais que maometanos, cristãos ou judeus dizem defender.

A grande diferença é que, enquanto os cristãos usaram a violência contrariando o critério de Jesus Cristo, Filho de Deus e sua imagem («Quem me vê, vê o Pai» (5), proclamara - e demonstrara na sua defesa intransigente da paz ao responder à violência com o suplício da Paixão presente desde a prisão à via sacra e à morte na cruz), Maomé, ele próprio, entrou em guerra armada contra os seus inimigos, incitou os seus adeptos à guerra para combater aqueles que não aceitavam a sua doutrina, rejeitando-o ou hostilizando-o.

A religião de Maomé foi combatida, antes de ser aceite pela maioria dos países árabes que tinham as suas crenças politeístas ou outras. Os seguidores de Maomé irão, durante séculos, usar as armas para alargarem a sua zona de influência. Os monarcas cristãos pegaram em armas para defender os lugares santos, as suas cidades, os seus países. O expansionismo muçulmano deu origem ao movimento das cruzadas contra o Infiel.

Os gregos, os romanos, os cristãos, muçulmanos ou outros, nunca deixaram de usar a violência para atingir os seus fins políticos, económicos ou civilizacionais. A violência é humana e tão humana que os instintos agressivos têm de ser combatidos na criança, têm de ser corrigidos com o exemplo e com «A Palavra que Cura» como escreve o teólogo alemão Drewermann (6).
 
2) VIOLÊNCIA E FÉ

«A Razão, a fé e a universidade» foi o título que Bento XVI escolheu para o seu discurso-lição. Temática aliciante pela sua abrangência e pelo contexto humano (professores e alunos universitários) da sua audiência. Mas, este universo humano era bem mais vasto. O Papa não iria ser só escutado pela maioria presente no auditório. Esta era uma assistência insignificante perante a daqueles que, afinal, teriam acesso à sua perspectiva sobre as relações entre razão e fé, às suas citações de autores mais ou menos conhecidos, aos pontos de vista mais ou menos controversos. Precisamente porque agora Joseph Ratzinger já não era professor universitário, já não podia mesmo falar como tal. Agora, o Cardeal e Professor Joseph Ratzinger era o Chefe da Igreja Católica Apostólica Romana, era o Papa.

E, nessa dimensão histórica que ganhou, após a morte do Papa João Paulo II, nenhum outro cargo podia ser mais usado. Por isso, as suas palavras iriam ser lidas através da Internet (na íntegra) ou em excertos, seleccionados pelos jornalistas de milhares de jornais, ou ouvidas através das televisões de muitas dezenas de países. Como Papa, agora as suas palavras chegariam a muitos milhões de pessoas.

Desde a Indonésia à América, da Rússia à Suécia, de Marrocos ao Japão, as frases escolhidas pela Comunicação Social - entre as muitas que podiam ser escolhidas - seriam naturalmente aquelas que levantassem polémica ou apresentassem alguma novidade em relação ao Dogma ou à política mundial desenvolvida nos últimos anos pela Igreja Católica. A ambiguidade de uma frase pode levar a muitas e perigosas interpretações. O Papa Bento XVI sabia-o. Por isso, o Sumo Pontífice não nos parece ter escolhido cada passagem do seu discurso-lição ao acaso, sem medir os prós e os contras, sem medir a necessidade de cada referência ou citação.

A frase do Imperador Bizantino - «mostrai-me o que Maomé trouxe de novo, e aí encontrareis apenas coisas más e desumanas, tais como a sua ordem para espalhar pela espada a fé que pregava» (7) - que levantaria uma forte polémica entre os líderes da religião islâmica e os levou mesmo a exortar os crentes a posições bem visíveis, como o referiu toda a Comunicação Social, não é, em primeiro lugar uma frase ambígua e em segundo lugar, ao lembrá-la, Bento XVI não a comentou no sentido de que era uma mentira, de que não podia ser por ele aceite ou de que era um excesso emocional do Imperador a perder poder perante o avanço islâmico nos seus domínios territoriais ou de que, muito menos, a frase do Imperador não tinha a ver com a realidade muçulmana dos nossos dias.

Assim, parece evidente que o objectivo do Papa era atingir, de forma nada velada, a realidade violenta que os movimentos terroristas islâmicos têm mostrado nos últimos anos. Por outro lado, Bento XVI disse apenas uma verdade histórica que o nosso tempo não contradiz, antes confirma. Portanto, o Papa disse a verdade. Não há aqui uma meia verdade. Há sim toda a verdade histórica colocada, sem medo de retaliações, “em cima da mesa”, ou seja, perante o auditório da universidade e, ao mesmo tempo, perante a audiência da imagem mundializada.

O que o Imperador Manuel II o Paleólogo (= gosto pelos escrito antigos) disse, pode-se aplicar aos atentados da «jihad» (guerra santa) dos grupos terroristas de Bin Laden (caso do terror sobre as torres da cidade de Nova York em que faleceram, em poucos instantes, 3500 pessoas), aos suicidas do ‘Hamas’ em Israel, etc. E, apenas a confirmar a intencionalidade do Papa Bento XVI na referência ao uso das armas pelos muçulmanos está o facto de não poder deixar de se relacionar a citação do Imperador Bizantino do século XV com a data do 5º aniversário do «11 de Setembro», que vitimou a inocente população de Nova York.

O Papa Bento XVI falava na universidade de Ratisbona precisamente no dia seguinte, o dia 12 de Setembro, um dia depois de todo o Ocidente ter recordado com um sentimento de horror, as faces negras em que se continua a apresentar uma parte do mundo islâmico. Sabemos, como Bento XVI sabe, que nem todos os fiéis a Maomé são instigadores de terrorismo ou seus apoiantes. Sabemos, e Bento XVI sabe-o também, que há um grande fosso entre os homens de boa vontade e de paz do mundo muçulmano e aqueles que, desse mesmo mundo, oferecem apenas uma imagem de crueldade.

Como entre os cristãos, o islamismo também conta com almas santas. A aridez e a sobriedade do deserto faz, como diria o escritor Antoine de Saint-Éxupéry, crescer a alma. Nos desertos, transforma-se o fraco em gente forte, gente cheia de coragem e capaz de tudo sacrificar por amor a Deus. E, desse exemplo, não nos devemos esquecer nós, cristãos, nós que somos, às vezes, fracos ao faltar-nos coragem de dar um autêntico testemunho da nossa fé em Jesus Cristo.

Teresa Ferrer Passos

(1) http://www.vatican.va/holy_father/_xvi/speeches/2006, pág. 3.

(2) «Prólogo» do Evangelho de S. João.

(3) http://www.vatican.va/holy_father/_xvi/speeches/2006, pág. 2.

(4) Dominique Sourdel em L’ Islam, Presses Universitaires de France, 1965, pág. 14.

(5) Jo, 14, 9.

(6) E. Drewermann, La Parole qui Guérit, Cerf, 5ª edição, Paris, 1993.

(7) http://www.vatican.va/holy_father/_xvi/speeches/2006, pág. 2.