TERESA FERRER PASSOS
A ARTE DA COMÉDIA EM LUÍS DE CAMÕES
 

« “Filodemo”: (…) A voz rouca, a língua fria, / Tamanho mal, tanta mágoa / Às montanhas contaria. / Lá, mui contente e ufano / De mostrar amor tão puro, / Poderia ser que o dano, / Que não move um peito humano, / Que movesse um peito duro» (Teatro Completo, p. 167).

Assim escreve Luís de Camões na sua comédia Filodemo, obra recentemente publicada com o título Teatro Completo (Prefácio de Vanda Anastácio) por Edições Caixotim (1ª edição, 2005). De notar, desde já, a beleza da capa, à antiga, com uma das mais carismáticas representações do Poeta de Os Lusíadas, repetida no interior do volume em papel vegetal (o que era um embelezamento do livro nas edições do século XIX).

Ao lado de Filodemo encontram-se duas outras comédias, o Auto chamado Anfitriões (Enfatriões, na grafia de Camões) e El-Rei Seleuco. Como nos informa a prefaciadora, «Camões escolheu para os seus textos dramáticos a estrutura do auto peninsular, entrelaçando nesta elementos estilísticos e formais tomados de outras fontes» (pp. 9-10).

O tema das três peças é, como não é de estranhar no Poeta, o tema do amor. Oscilando entre os diálogos em verso e em prosa, Camões constrói tramas romanescas de grande fundura psicológica usando uma linguagem simples e acessível aos seus ouvintes mais distantes da cultura. Não dividindo as peças em actos ou cenas, Camões «introduz uma diferença fundamental na utilização da prosa» ao «subordiná-la, incorporando-a, à estrutura do auto» (Prefácio, p. 13).

É assinalável que, em El-Rei Seleuco, uma terça parte da peça seja em prosa. Assim, ainda que a temática seja inspirada em temas clássicos, Camões procura fazer uma estruturação formal que ultrapasse as fontes de todo o teatro, inclusive aquele que obedecia às convenções do seu tempo.

Por outro lado, é curioso como usa indiferentemente o português ou o castelhano (línguas faladas oralmente, sem distinção, entre camadas populares, nobres e também igualmente utilizadas pelos escritores). Nos casos dos dramaturgos portugueses ambas as línguas são usadas na escrita, embora com a curiosidade de a primeira língua ser mais usada pelas personagens cortesãs ou nobres e a segunda por criados ou pastores (figuras mais brejeiras pelos modos e rusticidade).

Vejamos um exemplo: « “Mercúrio”: Yo también te contaria, / Brómia, se quedas atrás, / Que una noche…enojarte hás?

“ Brómia” : Qué?

“Mercúrio” : Sonãva. Que te tenía… No me atrevo a dezir más.» (Anfitriões, p.207).

Ao ler estas três belas comédias, verificamos que Camões consegue também neste género literário uma profundidade psicológica e filosófica que excede tudo o que se poderia pensar para aplicação num divertimento que se destinava a gentes de cultura, mas também do povo. Apesar disso, constrói todo um artefacto verbal leve, acessível e agradável a qualquer ouvinte/espectador.

Conforme já vimos sendo habituados relativamente a grandes escritores portugueses, Camões não teve muita «fortuna» na divulgação da sua obra. Assim, não viu a sua dramaturgia impressa: «(…) não possuímos documentos autógrafos destas peças e não há notícia de que alguma delas tenha sido publicada durante a vida do autor» (Prefácio, p. 33). Quer Anfitriões, quer Filodemo, só foram impressos sete anos após a morte do seu autor e inseridas numa colectânea com vários outros dramaturgos seus contemporâneos como António Prestes ou Anrique Lopes… E El-Rei Seleuco é apenas publicado por Paulo Craesbeeck em 1645, sessenta e cinco anos após a morte de Luís de Camões…

Estas «as malhas que o império tece» em Portugal aos seus Maiores! Lembremos, a título de referência, o caso de Fernando Pessoa…

Sendo a comédia camoniana o género que menos motivou a atenção da crítica portuguesa, não deixou, no entanto, de interessar autores como Fiama Hasse Brandão («A Nau de Anfitrião», O Labirinto Camoniano e outros Labirintos, Lisboa, Teorema, 1985), Naief Sáfady («Camões e o Teatro», Estudos Camonianos, Minas Gerais, 1983), Giulia Lanciani («La funzione parodica nel teatro camoniano», Drammaturgia e spettacolarità nel teatro iberico dei Secoli d’Oro, Napoli, Edizioni del Paguro, 1999), etc.

Além das citadas comédias e do Prefácio, esta edição de Teatro Completo de Luís de Camões conta com numerosas notas infra paginais com a correspondência moderna de termos caídos em desuso. Acrescenta-se um Apêndice com a versão da comédia Filodemo publicada por António Prestes em 1587. Aqui são indicadas as passagens em que há diferenças relativamente à versão manuscrita no Cancioneiro de Luís Franco Correa.

Nesta cuidada edição da dramaturgia do nosso genial Poeta, surge ainda um Glossário, um Índice onomástico e um Índice de lugares citados e algumas referências mitológicas respeitantes às personagens delineadas.

As qualidades humorísticas e o sarcasmo social têm, nestas três comédias, a pertinência de oferecer uma outra feição, mais humana e/ou menos convencional do Camões que nos deixou a maior herança Épica e também Lírica de toda a literatura portuguesa. A prosa em alternância com o verso (e as rimas variadas) transmitem-nos um Camões menos formal. Por outro lado, a técnica híbrida funciona aqui como um simples meio para o autor fazer uma inclemente crítica social aos costumes e aos modos de ser da sociedade do seu tempo:

«“Diz logo o Mordomo, ou dono da casa” (passagem em prosa):

Eis senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quis representar ũa farsa e diz que, (…) buscou uns novos fundamentos para a quem tiver um juízo assi arrezoado satisfazer. E diz que quem se dela não contentar, querendo outros novos acontecimentos, se vá aos soalheiros dos escudeiros da Castanheira, ou d’Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na rua nova em casa do Boticário, e não lhe faltará que conte (…)» (El-Rei Seleuco, Teatro Completo, p.257).

Teresa Ferrer Passos