TEOLINDA GERSÃO
A CASA DA CABEÇA DE CAVALO
Cena 8

(entra de rompante Badala, soltando uma enorme gargalhada.Traz na mão pequenos vultos confusos que pousa num canto e só depois se percebe que são marionetes vestidas de Virita, Carlota e Maria do Lado)  

Badala.

É preciso abrir as portas desta Casa, ou elas morrem sufocadas. As meninas. Ou, de tanto estarem presas, endoidecem.  

(Desce do tecto um cenário com um corte da Casa, em que se vê uma varanda de madeira assente em estacas e um pequeno lance de uns cinco degraus que desce para o jardim onde Badala se encontra. Ao fundo da varando fica um cubículo, que depois se percebe que é a retrete, ou “casinha”. Em corte, vê-se uma prancha de madeira que, como depois se nota, tem um buraco no meio e funciona como sanita. Quando alguém lá se senta, os excrementos caem para baixo, para um cubículo igual, ao nível do jardim).  

Badala

Não sabem rir, as meninas.

(gargalhada)

Fica a gente leve, depois de rir. Capaz de desafiar o mundo.  

(enquanto ela ri, a Casa treme. Ruído de janelas estremecendo, de portas oscilando nos gonzos, de louça e vidros tilintando).  

Eu bem lhes ensinei,desde pequenas:

Põe a mão na anca. Deita para fora a cabeça. Enche o peito de ar, a garganta, a boca, a barriga. Enche, enche. Agora solta, larga de uma vez. Como se estivesse um cão ou uma cobra lá dentro. Vomita, deita fora, atira para longe. Assim.  

(Pega nas marionetes e põe-as “vivas”, como se as ensinasse a rir. Pousa-as, e elas desmoronam-se.)  

Mas elas riem sempre tão mal, as meninas. Feitas de louça, sentadas nos banquinhos.  

(Senta as marionetes em banquinhos)  

(Suspira). Só mesmo Deus descendo dos céus e mudando as coisas. Porque elas por si não fazem nada. Ali estão, sentadas nas cadeira. As meninas.Têm vergonha de rir, aquelas sonsas.

Se ao menos levantassem a saia, deixassem cair um sapato. Dissessem um palavrão, se espreguiçassem, no meio da sala. Se arrotassem, aproveitando um silêncio, uma pausa na conversa. Zás (barulho de instrumento de sopro, imitando um arroto). Um arroto como um pano rasgado, um buraco na cortina.

Mas elas não. Bonecas, que só ganham vida quando alguém as sacode.  

(põe as marionetes “vivas” por um instante e larga-as.)  

Eu sacudo-as muito mas não adianta, ficam logo outra vez de louça. E quanto mais adultas pior. Em crianças ainda roubavam açúcar, espreitavam pela janela do curral quando se metiam lá dentro os porcos de cobrição, espreitavam pelas frinchas quando ia alguém à “casinha”, cantavam alto : da botica a Mirandela - espeta o cu numa sovela - da botica a Mirandela – espeta o cu numa sovela.

Mas depois esqueceram-se de tudo, sentaram-se na sala e nunca mais se riram.Tal é o peso da Casa e das leis do mundo.

E assim endoidecem. Já não espero nada de Maria do Lado, sempre a correr pela Casa à procura de tarefa atrás de tarefa, nem de Carlota, esperando dia e noite à janela. E agora também Virita endoidece. Aquela ideia de Filipe dá-lhe volta ao juízo. Anda a dormir em pé e não acorda.

Teolinda Gersão nasceu em Coimbra, estudou Germanística e Anglística nas Universidades de Coimbra, Tuebingen e Berlim, foi Leitora de Português na Universidade Técnica de Berlim, docente na Faculdade de Letras de Lisboa e posteriormente professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa,onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada até 1995.A partir dessa data passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.

Além da permanência de três anos na Alemanha viveu dois anos em São Paulo, Brasil (reflexos dessa estada surgem em alguns textos de Os Guarda-Chuvas Cintilantes, 1984), e conheceu Moçambique, cuja capital, então Lourenço Marques, é o lugar onde decorre o romance de 1997 A Árvore das Palavras.

Escritora residente na Universidade de Berkeley em Fevereiro e Março de 2004.

LIVROS PUBLICADOS
(Publicações Dom Quixote, Lisboa)


O SILÊNCIO (Romance),1981, 4ª edição 1995

PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO (Romance),1992,4ª edição 1996.

HISTÓRIA DO HOMEM NA GAIOLA E DO PÁSSARO ENCARNADO (literatura infantil),1982 (esgotado)
OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES (Diário Ficcional) 1984,2ªedição 1997

O CAVALO DE SOL (Romance),1989 ; edição Dom Quixote-Planeta 2001

A CASA DA CABEÇA DE CAVALO (Romance),1995,2ª edição 1996 ;
edição em Braille,1999


A ÁRVORE DAS PALAVRAS (Romance),1997
edição especial,com 50 ilustrações de Maia, 2000 ; 2ª edição, 2001
edição Dom Quixote- Círculo de Leitores 2001
edição Dom Quixote-Visão 2003


OS TECLADOS (Narrativa),1999 ,2ªedição 2001;edição em Braille,2003

OS ANJOS (Narrativa) , 1ª e 2ª edição 2000

HISTÓRIAS DE VER E ANDAR (contos) ,1ª e 2ª edição 2002

O MENSAGEIRO E OUTRAS HISTÓRIAS COM ANJOS (contos) 2003

Uma versão teatral de OS TECLADOS foi representada no Centro Cultural de Belém em 2001,com encenação de encenação de Jorge Listopad.

Uma versão teatral de
OS ANJOS foi representada em 2003 pelo grupo de teatro O Bando,com encenação de João Brites.

Uma versão teatral em língua romena de A CASA DA CABEÇA DE CAVALO foi representada em Bucareste em Abril de 2004.

Fonte: http://www.teolinda-gersao.com/bibiografia.html