ROGERS SILVA

O mundo desencantado de Desseres

A velha de olhar infantil disse que envelhecer dói, é dor que teoricamente em pouco tempo acabará, mas é dor consciente, uma vez que não se têm mais ilusões juvenis. Após dizer isso, se foi, e ninguém jamais a viu novamente. Seus sapatos foram achados a dois quilômetros de sua casa, onde morava sozinha. Estavam sujos, cheirando a papoulas. O cego que bradava luz olhou sem enxergar para a menina de semblante triste e disse, se referindo à velha de olhar infantil: Conheci-a, nunca a vi – brincou –, porém soube, através de suas palavras, que era triste. Você também – completou, abaixando a cabeça. A menina de semblante triste sorriu tristemente, olhou para o lado e viu uma criança-mulher que chorava muito. Na ocasião não estava chorando. Disse a menina de semblante triste: Sou eu, sou eu quando era criança. Depois se voltou para trás e caminhou. O cego que bradava luz, com a mão no peito, direcionando os inúteis olhos para o céu, amaldiçoando-o, esbravejou: luuuz!!! Então começou a chover. As lágrimas de Deus, achava o cego que bradava luz sob a chuva, se estão assim em diagonal é porque Ele está de cabeça baixa, chorando pelo projeto fracassado, o ser que se diz humano. A dor no peito, que em momento algum dava trégua, continuava, e por isso achou melhor ir embora para casa. Talvez daria um tiro na cabeça ou... sei lá. O rapaz que não olhava nos olhos andava calmamente quando se esbarrou no surdo e seus olhos de gato. Desculpas mútuas e simultâneas. O surdo e os seus olhos de gato ia à casa do mudo de gestos enfáticos. Lá conversariam no idioma deles e se entenderiam como seres normais, que falam e ouvem, jamais se entenderiam, visto que estes são egoístas e disputam para ver quem fala mais e menos ouve. A velha de olhar infantil, por não agüentar a dor de envelhecer, resolveu que não deixaria os anos passarem e, então, procurou caminhos que lá, no Campo em que não se envelhece, fossem. Dizem que vagou eternamente, e vaga, pois eternamente não tem fim. E nunca envelheceu. A máxima Corpo jovem é corpo que funciona surgiu do mito da velha de olhar infantil, avó da menina de semblante triste, que seria mãe da garota que perdeu a mãe. Enquanto a Terra que gira gira, conversam, no idioma deles, o surdo e seus olhos de gato e o mudo de gestos enfáticos, filho do homem que um dia foi menino. Conversam conversas. Pelas conversas resolvem, amanhã mesmo, que tentariam descobrir a cura para a surdez e a mudez. Prometiam que quando descobrissem não mais iriam conversar, talvez assim não ferissem os outros. Outro que foi ferido e por isso não olhava mais nos olhos de ninguém, pois provavelmente iria feri-lo, era o rapaz que não olhava nos olhos. Achava que se voltasse a olhar nos olhos de alguém, e esse alguém fosse mulher, ficaria como o adolescente que foi traído pela primeira namorada, adolescente suicida. Este chorou durante dois dias seguidos, sem parar, e suas lágrimas encheram duas bacias de prata. Quando as lágrimas acabaram, decidiu ir para a estrada de ferro. Calmamente, mas com muito medo, quando o trem apitava lá no horizonte, subiu nos trilhos. Anoitecia. Ventava. A garota que foi acusada injustamente, namorada do adolescente que foi traído pela primeira namorada, nunca se recuperou da tragédia. Jamais se alegrou por nada, a garota que foi acusada injustamente. Em sua casa ninguém ria, ou sorria: nem sua irmã, a garota que enlouqueceu por remorsos e raiva, nem seu pai, o cego que bradava luz, nem sua mãe, dona-de-casa tão-somente da casa. Quando estavam todos juntos, cada um ia para seu quarto, cerrava as janelas e chorava, chorava por impotência. Por raiva. Por remorso. Por nada. Um dia, quando um esboço de um sorriso se mostrava no rosto da garota que foi acusada injustamente, ela, confusa, decidiu que não, jamais iria sorrir. Fora acusada injustamente. Não tinha direito de sorrir. Nunca mais. E assim aconteceu, até a sua morte, de velhice, aos noventa e três anos. Sua mãe, a dona-de-casa tão-somente da casa, um dia, quando as filhas tinham vinte e vinte dois anos, se perguntou o que tinha feito, o que tinha construído na vida, e resolveu ir embora, abandonar o marido cego e as filhas, cada um com seu problema, cada um com sua solidão. Deixara uma carta ao marido. Não seria vista novamente. Pois viveria na Antártida, gelo lá fora e aqui dentro, no seu coração. Morreria aos cinqüenta e seis anos por conta de uma avalanche. Seu corpo nunca seria achado. Nem apodreceria. Enquanto a menina de semblante triste caminhava, teoricamente rumo à sua casa, teoricamente pois lá não chegaria, uma vez que se perderia nos olhos do surdo e seus olhos de gato, e se apaixonaria loucamente, paixão que doía, o jovem que era fissurado em carro, no seu quarto, inventava uma nave espacial na qual iria para a lua, porque aqui se frustrava a todo o momento por ver um carro e não poder comprá-lo. Seu pai, o homem que um dia foi menino, melancólico por saber que nunca mais seria menino, e raivoso por um dos seus filhos ter nascido mudo, agora se desesperava ao ver o seu filho, o outro, dentro de uma nave dando adeus com as mãos, gestos lentos, entre espantado e feliz, indo embora, para onde, se perguntava, e se perguntaria o tempo todo, pois jamais poderia imaginar que o filho inventor iria para a lua, onde morreria. A garota que enlouqueceu por remorsos e raiva não se conformava com o fato de o homem que amava, o adolescente que foi traído pela primeira namorada, ter se apaixonado pela irmã e não por ela, por que, e assim batia três vezes ao dia a cabeça contra a parede, em forma de protesto, um protesto tímido. Seria sua sina: bater a cabeça, pelo resto da vida, vida longa, de oitenta anos, na parede, parede dura. O mudo de gestos enfáticos, além de não se dar bem com o pai, sofria por não entenderem seus gestos, e então tentava, com ênfase nas mímicas, fazer as pessoas o ouvirem, mas não conseguia, visto que entendiam apenas símbolos matemáticos, nunca entenderiam um mudo de gestos enfáticos louco por comunicação. Vinte anos tentando se comunicar, e nada, quando resolveu abrir uma cova e se enterrar, anulando assim sua ânsia, todavia estéril. O homem que um dia foi menino, seu pai, por sua vez, enquanto cantava uma ópera, com uma voz linda, percebeu subitamente que a vida não valia a pena. De raiva, aumentou o volume de sua voz, já potente, aumentava e, quando atingia a nota mais alta da escala, seu cérebro estourou. De dentro saíram dores em forma de notas musicais, a voarem, cada uma para um lado, distantes entre si, em direção ao céu, um céu rosado. O rapaz que não olhava nos olhos até então conseguiu não olhar para outros olhos a não ser para aqueles responsáveis por sua sina, cabeça abaixada, quando, fisgado por um pé feminino, instigado em saber de quem era o pé feminino, olhou, medrosamente, e olhava, medrosamente, até que perdeu o fôlego por causa do olhar direcionado ao seu e morreu, feliz, embora sua alma nunca fosse encontrada, para comprovar que realmente morrera feliz. O olhar direcionado era da mulher pela qual outrora apaixonara e em quem encontrara e encontrou um amor transcendente e mortal. A criança-mulher que chorava muito cresceu e se transformou na menina de semblante triste. Esta, por seu turno, se apaixonou, paixão genuína, pelo surdo e seus olhos de gato. No primeiro dia, metafisicamente fizeram amor sob um ipê-amarelo, flores a cair no casal se amando, e daí nasceu a garota que perdeu a mãe. A menina de semblante triste não se conformava: como podia o amor dela pelo marido, o surdo e seus olhos de gato, doer tanto? Todo amor dói? Como pode duas pessoas se amarem tanto, ao cúmulo da anulação mútua? Como pode? Desiludida com as respostas foi para a beira do mar, avistou uma gaivota lá longe, ínfimo branco sobreposto à imensidão azul, sorriu, quão belo é o mundo, quão bela é a vida, meu Deus, mas quão angustiante – e se jogou. As ondas a levaram, para onde, se perguntava a filha, a garota que perdeu a mãe, para onde, se perguntava o marido, o surdo e seus olhos de gato. Juntos, pai e filha, e sempre unidos, se abraçaram até o fim da vida, chorando, porém se compadecendo, se completando, até o fim da vida, se perguntando, para onde, quando morreram coincidentemente no mesmo instante, como prometeram. Enfim, sozinho no mundo, aos cento e trinta anos, o cego que bradava luz, pela milésima vez, o olhar ao alto esbravejou com toda a sua força: luuuz!!! A luz saiu do seu âmago. Voou. A luz era sua alma.

Rogers Silva é escritor, educador e publicitário. Formado em Letras, faz mestrado em Administração. Publicou nas antologias Retalhos (org. Edson Rossato), Portal Solaris e Portal Neuromancer (org. Nelson de Oliveira). É autor do livro parcialmente inédito Manicômio (contos/novelas). Bloga em www.rogerssilvaoriginal.blogspot.com e www.o-bule.blogspot.com. Tuíta em http://twitter.com/rogerssilva Mora em Uberlândia-MG, Brasil. Contato: rogers.silva@yahoo.com.br