RICARDO DAUNT

Sobre algumas raízes profundas do
Movimento do Orpheu

14. Pragmatismo

Nove anos antes do falecimento de Laforgue, precisamente no início de 1878, Charles Sanders Peirce escreveu um artigo intitulado "Como tornar claras nossas idéias". Nele, após salientar que nossas crenças são em realidade regras de ação, afirmava que para desenvolver o significado de um pensamento, necessitamos apenas determinar que conduta ele está apto a provocar: este é seu único significado.

E o fato tangível na raiz de todas as nossas distinções de pensamento é que não existe nenhuma que seja tão sutil ao ponto de não resultar em alguma coisa que não seja senão uma diferença possível de prática. Para atingir uma clareza perfeita em nossos pensamentos em relação a um objeto, pois precisamos apenas considerar quais os efeitos cabíveis de natureza prática que o objeto pode envolver -- que sensações devemos esperar daí, que reações devemos preparar. Nossa concepção desses efeitos, seja imediata, seja remota, é, então, para nós, o todo de nossa concepção do objeto, na medida em que essa concepção tenha afinal uma significação positiva.

Esse é o princípio de Peirce, o princípio do pragma- tismo (1).

O princípio de Peirce permaneceu como que esquecido por mais de 20 anos, até que William James o expôs, em uma conferência sobre religião, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), em 1898. Daí em diante, o pragmatismo passou a ser amplamente discutido.

"Não há nada de novo absolutamente no método pragmático", diz Peirce. Sócrates, Aristóteles, Locke, Berkeley e Hume "fizeram contribuições momentâneas à verdade por seu intermédio. Shadworth Hodgson insiste em que as realidades são somente o que sabemos delas " (2) (em itálico no original).

James adverte contudo que esses precursores do pragmatismo fizeram uso desse método de modo parcelar, fragmentário -- e que sua aplicação apenas teve lugar mais tarde, no século XX.

De acordo com o pragmatismo de James, palavras como "Deus", "matéria", "Razão" não podem ser tomadas como definitivas. "Tem-se que extrair de cada uma delas "seu valor de compra prático , pô-las a trabalhar dentro da corrente de nossa experiência " (3) (itálicos nossos).

Nesse sentido, o método preconizado pelo filósofo é mais um programa de trabalho do que uma solução e não propõe ou defende dogmas ou doutrinas. Concorda, contudo, com o nominalismo, com o utilitarismo e com o positivismo (no que este tem de recusa a soluções verbais e a abstrações metafísicas).

Em outras palavras, o método pragmático supõe uma determinada "atitude de orientação", que é a de " olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das 'categorias', das supostas necessidades; e de procurar pelas últimas coisas, frutos, conseqüências, fatos " (4) (em itálico no original).

Como defenderam Schiller e Dewey, a verdade em nossas idéias significa a mesma coisa que em ciência. Significa que as idéias, acrescenta James, "tornam-se verdadeiras na medida em que nos ajudam a manter relações satisfatórias com outras partes de nossa experiência" (5) (itálico nosso).

Assim, uma dada opinião nova -- para certo indivíduo -- é verdadeira na proporção em que satisfaz seu desejo no sentido de assimilar essa nova experiência às

"suas crenças em estoque [...]. A idéia nova que é mais verdadeira é a que perfaz de modo mais feliz sua função de satisfazer nossa dupla urgência. Faz-se verdadeira, classifica-se como verdadeira pela maneira como opera; enxerta-se, então, no velho corpo da verdade, que se desenvolve" (6).

Para Dewey e Schiller ser verdadeiro quer dizer cumprir essa função de união de partes prévias da experiência com partes mais novas (7). Acolhendo essas concepções, James observa que "a verdade para nós [pragmatistas] é simplesmente um nome coletivo para processos de verificação " (8) (itálicos nossos). Entende James, também, que a verdade é uma propriedade de algumas de nossas idéias. Significa seu acordo, como a falsidade significa seu desacordo. Assim também entende o filósofo como idéias verdadeiras aquelas que assimilamos, corroboramos e verificamos -- e falsas aquelas em que isso não se dá (9).

Em todas as instâncias o pragmatista está atrelado aos fatos e coisas concretas, o que não o impede de harmonizar os processos empíricos do pensamento com os reclamos da religião. James observa: "alguma espécie de deidade imanente ou panteísta operando nas coisas, de preferência a operar por sobre elas, é, de qualquer modo, a espécie recomendada para a nossa imaginação contemporânea" (10) (o segundo itálico é nosso). E isto é fácil de explicar: o pragmatista, amante dos fatos, rejeita a afirmação do Espírito Absoluto (que serve como um substituto para Deus) como sendo a pressuposição racional de todas as particularidades de fato, quaisquer que possam ser elas; entende o pragmatista, e não poderia ser de outra forma, que tal pressuposição é uma afirmação de indiferença para com os particulares do mundo. Ainda: o pragmatismo não alimenta preconceitos contra a teologia desde que suas idéias tenham algum valor para a vida concreta. E " o quanto serão verdadeiras dependerá inteiramente de suas relações com as demais verdades, que têm, também, de ser reconhecidas " (11) (em itálico no original).

De outra parte, o pragmatismo não faz objeções à abstração, desde que esta se encaminhe na direção dos particulares, produzindo conclusões e extraindo verdades através disso. Como afirmou James, "o pragmatismo está disposto a tomar tudo [...] e a contar com as experiências mais pessoais", levando em conta "as experiências místicas, se tiverem conseqüências práticas". Assim, admitirá um Deus que habite o âmago do fato privado, se entender que esse é um lugar provável para encontrar a divindade.

Em suma, o pragmatismo "não tem quaisquer preconceitos, quaisquer dogmas obstrutivos [...]. É completamente maleável. Acolherá qualquer hipótese, considerará qualquer evidência" (12).

Os conceitos exarados por William James acerca do método pragmático levaram-no ao desenvolvimento de uma outra doutrina filosófica, a que deu nome de empirismo radical. No prefácio de O significado da verdade, James afirmou:

"o estabelecimento da teoria pragmática da verdade é um passo de primeira importância no sentido de fazer o empirismo radical prevalecer. O empirismo radical consiste primeiro em um postulado, a seguir em um enunciado de fato e, finalmente, numa conclusão generalizada.

O postulado é que as únicas coisas que são questionáveis entre filósofos são coisas definíveis em termos da experiência [...]

O enunciado de fato é que relações conjuntivas, assim como disjuntivas, entre coisas, são simplesmente matérias da experiência direta particular, nem mais nem menos, do que as próprias coisas o são".

A conclusão generalizada é que, portanto, as partes da experiência são relacionadas coerentemente pelas relações que são também partes da experiência (13).

 

(1) JAMES, William --"Pragmatismo". In : Os pensadores . Trad. bras., São Paulo, Abril, 1974. (v. XL), p. 10.

(2) Ibid ., p. 11.

(3) Ibid ., p. 12.

(4) Ibid ., p. 13.

(5) Ibid ., p. 14.

(6) Ibid ., p. 16.

(7) Cf. loc. cit.

(8) Ibid ., p. 30.

(9) Cf. JAMES, William -- "Prefácio do autor para O significado da verdade ". In : Os pensadores. o p. cit ., p. 42. A questão do significado da verdade está no centro do embate entre os pragmatistas e seus opositores. A diferença, segundo James, é que quando os primeiros falam da verdade, discutem idéias e sua operacionalidade, ao passo que os antipragmatistas, quando falam da verdade, estão discorrendo a respeito dos objetos. Cf. ibid. , p. 43.

(10) Id. --"Pragmatismo". In: Os pensadores Op. cit., p. 18. James foi influenciado por Bardley, daí que o panteísmo que defende seja idealista. Para o filósofo inglês as relações entre as coisas não são meros acréscimos à essência destas, mas constituem sua própria essência. O idealismo de James é também objetivo, assim acatando que não há diferença essencial entre objeto e sujeito, já que ambos são uma forma na qual o todo se manifesta.

(11) Ibid ., p. 19.

(12) Ibid ., p. 22.

(13) Id. -- "Prefácio do autor para O significado da verdade". In : Os pensadores. o p. cit ., p. 43-4.