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No dia 20 de Julho, fez 700 anos que Petrarca, poeta e humanista, um dos nomes maiores da literatura universal, nasceu em Arezzo, Itália.

Ao contrário do que escreveu Pina Martins, em 1974, o limite da influência de Petrarca e do petrarquismo "junto da poesia lírica das literaturas nacionais" não será o século XIX. A poesia portuguesa contemporânea mostra que o diálogo com Petrarca permanece vivo.

O "corpus" definido abrange um arco temporal que vai de 1930 ao ano um do novo milénio, tendo Álvaro de Campos no seu ponto de partida e chegando a um poeta revelado nos anos 90, Pedro Mexia, passando por Carlos Queiroz, Jorge de Sena, Alexandre O'Neill, David Mourão-Ferreira , Alberto de Lacerda, Ruy Belo, Pedro Tamen, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, Vasco Graça Moura, Luís Filipe Castro Mendes e Paulo Teixeira.

Há mais de dez anos, o poeta mexicano Octavio Paz, num ensaio sobre o amor e o erotismo, fazia chegar aos seus dias a tradição com origem na poesia provençal, e destacada passagem em Dante e Petrarca. Acerca de Petrarca chegava mesmo a dizer que "quase toda a poesia europeia de amor pode ser vista como uma série de glosas, variações e transgressões do 'Canzoniere'".

Por seu turno, Jorge de Sena escrevia em 1971 no seu jeito polémico: "A sua importância na cultura ocidental durou séculos, e está longe de ter-se extinguido: ainda hoje poetas petrarquizam, a única diferença, para pior, é que o ignoram." Relativamente a Portugal, teria Sena inteiramente razão?

Não sei se de todos se poderá dizer, como ele insinua, que são petrarquistas sem o saberem, como Deleuze disse, de alguns autores ingleses e americanos, que eram spinozistas, sem disso se darem conta. Nem isso terá importância, porque, a certa altura, tão difícil se torna destrinçar os fios da meada que melhor é seguir outras vias menos presas à identificação de fontes.

 

Jorge de Sena

 
O próprio Sena fornece, a propósito, um excelente exemplo desse petrarquismo: os sonetos de "As Evidências", de 1955, alguma coisa deveram aos "35 Sonnets " de Pessoa, os quais, por sua vez, a crítica britânica não deixou de associar a Shakespeare, eminente representante do petrarquismo na poesia inglesa do seu tempo, e, assim, chegamos, por ínvios caminhos, a Petrarca... Ou não reconhecem um eco da sua sortílega música neste soneto : "Amo-te muito, meu amor, e tanto/ que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda/ depois de ter-te, meu amor. Não finda/ com o próprio amor o amor do teu encanto.// [...]"?
 

Álvaro de Campos

 

De Álvaro de Campos já se conhecia "Nota ao Acaso" ("Sudoeste", 1935 ), onde Petrarca era usado para agredir Camões, pondo em causa a "sinceridade intelectual" deste e a sua subordinação às convenções da época.

Menos conhecido é um poema de Campos, de Julho de 1930, e onde Petrarca já era citado. O texto em questão pertence à fase de um Campos céptico, se não mesmo cínico. O heterónimo assume aí a pose de um homem desmistificador das aparências com que a vida nos ilude, e que dá conselhos a um interlocutor jovem sobre o "sexo oposto", para concluir que "tudo é literatura" e que "não somos senão fantasmas de fantasmas".

A "lição" dada vai, por um lado, no sentido de salientar que não chegamos a viver autenticamente, que tudo nos vem "de fora", e que, sob o império da literatura, nem sequer seremos "páginas aplicadas de romances", mas apenas "traduções", e, por outro lado, ela toma a forma de convite a uma total imersão na vida: "Arregace as mangas da camisa civilizada/ E cave terras exactas!/ Mais vale isso que ter a alma dos outros!" O tom condescendente dos conselhos dados não é isento de ironia. E Petrarca, que no texto da "Sudoeste" surge a pretexto das convenções que se substituem à "sinceridade intelectual", representa aqui o domínio da literatura a que tudo se reduz e que se exerce mesmo no seu desconhecimento: "Você sabe porque está tão triste? É por causa de Platão,/ que você nunca leu./ E um soneto de Petrarca, que você desconhece, sobrou-lhe errado."

Pedro Mexia

 
No texto de Mexia, não é menor o peso da ironia. Tal atitude é, aliás, comum nos poetas mais jovens, muito conscientes de terem chegado tarde de mais à literatura, que consideram com um olhar desprendidamente irónico. O poema é uma paródia do exercício escolar a que o título alude: "Paráfrase". Acompanhamos, na sua leitura, exactamente a descrição da paráfrase de um poema de que, ironicamente, nada mais temos do que essa mesma paráfrase. Petrarca, presença familiar em tais práticas da instituição escolar, sobretudo quando se trata da abordagem de textos canónicos dos períodos de maior incidência petrarquista, surge com total verosimilhança num contexto de confirmação de saberes própria do tratamento institucional dos textos ao nível menos poblematizante: "Este poema começa por te comparar/ com as constelações,/ com os seus nomes mágicos/ e desenhos precisos,/ e depois um jogo de palavras indica/ que sem ti a astronomia/ é uma ciência/ infeliz./ Em seguida, duas metáforas/ introduzem o tema da luz/ e dos contrastes/ petrarquistas que existem/ na mulher amada,/ no refúgio triste da imaginação.// [...]".
 

Alexandre O'Neill

 

A paródia é também um elemento fundamental no poema de Alexandre O'Neill dos fins dos anos 60, "Aos Vindouros, Se os Houver". Aqui, ela incide concretamente sobre o soneto de abertura do "Canzoniere", "Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono". A O'Neill, o que lhe interessa é exorcizar, pela ironia, as ansiedades e os temores de uma época que, no meio do aparente domínio da ciência e das tecnologias mais avançadas, faz a experiência da sua irremovível "falha", e duvida, afinal, do seu futuro: "Vós, que trabalhais só duas horas/ a ver trabalhar a cibernética,/ que não deixais o átomo a desoras/ na gandaia , pois tendes uma ética;// que do amor sabeis o ponto e a vírgula/ e vos engalfinhais livres de medo,/ sem peçários , calendários, Pílula,/ jaculatórias fora, tarde ou cedo;// computai, computai a nossa falha/ sem perfurar demais vossa memória,/ que nós fomos pràqui uma gentalha/ a fazer passamanes com a história;// que nós fomos ( fatal necessidade! )/ quadrúmanos da vossa humanidade."

 

Carlos Queiroz

Vinte anos antes, compusera Carlos Queiroz, provavelmente com conhecimento da "Posteritati" de Petrarca, "Epístola aos Vindouros", suspeitosa, como frequentemente acontece na modernidade literária, da modernidade científica e tecnológica: "Fomos as vítimas inglórias/ da infância das técnicas." Queiroz pode não ter lido a "Carta" de Petrarca; o que seguramente leu foi "La Jolie Rousse", de Apollinaire , como o mostra o final do poema apelando para a indulgência dos vindouros: "Assim pensando em tudo isto/ (E no mais que vereis à transparência/ Das lágrimas contidas nestes versos),/ Ó felizes vindouros:/ Quando a calma cristã dos vossos lares/ Em 'taedium vitae' se transforme/ E vos inspire a nostalgia/ Desta época atroz da infância das técnicas,/ Orai por nós, orai por nós, orai por nós!"

 

Pedro Tamen

 

Uma das epígrafes de "Os Quarenta e Dois Sonetos", de Pedro Tamen , coloca-nos problemas interessantes. É um divertimento, em forma de diálogo, de José Bergamín , no qual figuram Petrarca e Laura, envolvidos num jogo em que, despidos de qualquer aura, respondem a perguntas de um professor. A que vem, então, a desmitificação de dois dos símbolos maiores da poesia amorosa, e num livro em que, precisamente, o amor é o tema dominante? Para que leitura nos estará o poeta a preparar? Lembremo-nos das palavras de Octavio Paz que, no início, destacámos, e onde defendia que quase toda a poesia de amor europeia podia ser vista como uma série de glosas, variações e transgressões do " Canzoniere ". Tamen terá querido lembrar que, não obstante a irremediável distância de Petrarca, marcada pelo registo paródico que pede de empréstimo a um escritor mais perto de si, o autor do " Canzionere " é uma referência incontornável, e, ademais, num livro dominado por uma forma e uma temática indissociáveis do poeta de Arezzo. Basta ler um dos sonetos, para nos darmos conta de que este poeta tão exímio em conceptualizar as subtilezas e os paradoxos do amor e tão propenso à expressão complexificante, alusiva dos sentimentos, leu Petrarca e outros que, ao longo dos tempos, se deixaram seduzir pelo sortilégio do seu canto: "Quase não querer-te é querer-te ainda mais:/ se tudo baixa e funde sobre mim, / não saibamos de donde ou quando sais/ nem porque chegas ao chegar ao fim// [...]."

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