NICOLAU SAIÃO

Três, a conta que deus fez (dito popular)

Pela mão de Camilo Prado, através da sua Editora Nephelibata,  foram dadas ao grande público brasileiro e, por extensão, a todos os leitores da língua portuguesa, os livros “Os fungos de Yuggoth” de H.P. Lovecraft e “Vestígios” de Gérard Calandre.

   A expressão pela mão tem inteiro cabimento – pois as edições da Nephelibata, que se impõem pela sua qualidade material, são executadas artesanalmente pelas mãos do editor com o concurso adequadíssimo das mãos de sua mulher. Mais do que trabalho aprimorado será de se dizer trabalho de quem ama os livros e os faz com desvelos de amorosos por extenso.

   Não é de estranhar pois que todas as edições já postas em terreiro possuam a bela estrutura (até no papel!) que faz jus à frase consabida de Éluard que, em frente de um escorço de Picasso, que mais tarde o veria numa bela edição de Albert Skira, a disse com emoção: “Como eu gostaria de poder fazer os meus livros com as minhas mãos!”.

   O empreendimentos a que Camilo meteu ombros justifica plenamente, pelos resultados - já de concepção gráfica já de acabamento, diria mesmo de feitura total – que epigrafemos da forma mais alta estes livros que se certificam como objectos excelentes da arte de editar.

   Finalmente, mediante os bons ofícios de Annie Launay e das Éditions du Parc, vai também sair a público o tomo bilingue de Jules Morot “Le mardis gras”, de que tive o gosto de assegurar a versão em português (“Terça-feira gorda”).

   Aqui ficam dois poemas de cada um dos autores referidos.

 
 

VENTOS ESTELARES

 

 Sobretudo no Outono, a essa hora

 Em que tombam as sombras do entardecer

 Os ventos estelares derramam-se

 Pelas ruas mais altas e desertas

 Onde assoma a luz fagueira de algum cálido aposento. 

  

As folhas secas agitam-se em estranhos redemoinhos,

 O fumo das chaminés enrola-se com etérea graça

 Atento às geometrias do espaço exterior

 Enquanto Fomalhout palpita entre as brumas do Sul.

 

É a hora em que o poetas lunáticos conhecem

Que fungos brotam em Yuggoth,  que perfumes

E matizes de flores enchem os campos de Nithon,

Que nenhum jardim terrestre pode ter.

  

Mas, por cada sonho que esses ventos ofertam

Doze dos nossos nos roubam!

 

A JANELA

 

Era uma casa velha, com estranhas alas tão emaranhadas

Que ninguém podia dizer que lhes conhecia bem a disposição,

E num quarto pequeno algures nas suas traseiras

Havia uma singular janela entaipada com pedra antiga.

 

A esse lugar, numa infância atormentada pelos sonhos,

Costumava  ir sózinho, quando reinava a noite negra e vaga.

E destroçava as teias-de-aranha sem qualquer  ponta de medo

Sentindo-me,  p’lo contrário,   cada vez mais maravilhado.

 

Mais tarde  num certo dia  levei até lá uns pedreiros

P’ra descobrir que paisagem os meus antepassados

Haviam tentado encobrir,

Mas quando perfuraram a pedra, impetuosamente entrou

Uma lufada de ar soprada p’lo ignoto vazio  do outro lado.

 

Fugiram a sete-pés... Eu assomei-me  - e encontrei um por um

Todos os mundos selvagens que os sonhos me haviam mostrado.

HPL 

 

NOTÍCIA

Ao declinar da tarde chego à cabana velha

de muitas gerações. O silencio deixa-me respirar.
As paredes ainda são as mesmas. Grandes manchas
de humidade, a luz de astros distantes, a presença
de pássaros desconhecidos. Os meus pensamentos que
iniciam a ronda das sombras. Era um dia era uma hora
propícia de repousos, de vozes como antigamente.
Coisas construídas e eu estou aqui
ladrar de cães entre as árvores. Eu vejo
mais do que a luz, as linhas leves dos montes.
Desce neles o perfil divino da terra molhada.
As estações na ombreira da porta Raramente lembramos
os lugares como um livro que se abre Horizonte já
inacessível.
O primo pequeno o calção sujo de terra Fotografias
pacientemente dispostas sobre a mesa de madeira
Sem detença me abandono Veredas perfumadas flores voando
pulsa lento o sangue junto ao esqueleto

Neste chão vos imagino calados como outrora
vida sem desenlace o fogo que se desenrola
amei em vós o fulgor do coaxar das rãs
o alfabeto sensível do que a escuridão me dizia.

Devagar. Deus dá-se por satisfeito espreguiça-se
no sereno entardecer. Devagar digo de mim para mim
Longa criatura arfando na terra nas horas que passam.

Abro a porta, aguardo a quietude abro a saída
uma chuva mais frágil entre duas águas que se reúnem.



 JITTERBUG

 

Perdi uma das casas

da minha infância

 

Pombos por sobre as árvores

onde é agora um hipermercado

 

Na rádio, Hillary St.Georges

entoa uma ária do  “Rigolleto”.

 

O meu pai morreu com um livro de Tchekov

sobre a mesa-de-cabeceira

onde um lenço e uma tesoura de unhas

aguardavam o último arranco

 

O meu tio, que me ensinou a espirrar

- fazia-o sem ruído, como um velho soldado –

morreu também

e a prima que me acalentara as manhãs de domingo

foi também desta para melhor. E agora

 

Olho ao longe o pequeno subúrbio

a minha casa antiga está entre outras

Será a que inicia a rua frente à estrada

a segunda, a terceira? Não creio que seja a de portas

azuis, com um pezinho a condizer, ou aqueloutra

um pouco fanada, com uma motocicleta junto ao muro.

 

A mãe, pobre dela, ausentou-se

vive agora num bairro periférico

e a sua memória flutua

“Filho, lembras-te da figueira?”

“Meu rapaz, recordas-te do perdigueiro castanho?”

 

E é só a isto que chega

enovelando rostos, quando muito uma expressão

das vizinhas que iam ao baile.

 

Por isso

sou já um pouco como aqueles velhotes relampados

de sapato engraxado, estralejante

comendo bolos-de-rei com um cafézinho

na “roulotte” de comes-e-bebes

perto do andar que hoje habito. Tenho já

como eles

 

a pupila funda

a garganta presa

o braço anguloso

de quem foi desapossado de algo que era perene

 

e agora é a fome da terra   uma linguagem secreta.

GC

 
 

COMMOTION DE NOËL

 

Je suis un espion plus que parfait

mes yeux mes mains ma silhouette

tout ce que j'ai appris tout ce que j'ai oublié

tout ce que j'ai vu Seigneur après votre décès

même les cuillères de bois et l'assiette brute

du dîner

au commencement de la nuit

même les chaussettes avec des trous de mon cousin

même la chemise en lambeaux de mon père

et les joyeux yeux tristes de ma mère

et ce qui nous achetons sans le paiement

et sans un dieu lui paye

 

Tout cela je garde dans mon coeur.

 

Dans les nuits les jours de mon adolescence

quand je m'asseyais à méditer

dans la roche peinte de blanc

au moyen du potager de la petite Armandine

qui m'offrait des marrons cuits quand c'était l'automne

et nettoyait mon front avec un mouchoir de lin

en regardant ma sueur de sang.

 

Tout cela est mon trésor

pour vous cher Monsieur pour vos anges

pour vos assistants dans la forêt céleste

pour les notaires de votre auguste Père

sans oublier le petit que vous avez été

et même le mendiant qui vous a aidé

à monter sur le petit âne

qu'il vous a transporté jusqu' à la porte Suse

ce jour lá de Pâques.

 

Ainsi, Seigneur, pardonne moi

mes défauts

mes brusques joies

mes étranges silences

 

et  tous les poèmes que j'ai seulement pensé.

 

POUR O.HENRY

 

Dans son esprit s'est faite lumière

et il a tapoter par centaines le grisbi

 

Son bouton de gilet ne lui servait pour rien de plus

et dans sa cellule il l'a regardé attentivement

il s'a donné à ce travail

en l’érigeant entre deux doigts 

l'indicateur et le gros pouce

 

Sa femme l'a cousu à l’époque ancienne

un heureux après midi de bourbon et de sacrés bécots

 

Il se méfie  se méfie et pourtant

beaucoup est resté pour décider

peut-être des diamants   des horloges des chaînes d'or

mais rien ne l'intéressait déjà   il a eu nécessité

de madrigaux et de quelques monnaies sonnantes

Et tout a été simplement de cette jolie manière.

 

Nous avons besoin de bien plus de choses

nous   leurs vieux compagnons de promenades

par des villages bruyants

de bien de plus nous avons besoin

mais c'est surement au cours

des temps sans date marquée.

 

L'amour l'amitié flagrants délits de jeunesse

de bien de plus nous avons besoin

et le monde arrive et apporte

seulement du cotton sordide dans les poches.

 

JM                                                                        

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.