NICOLAU SAIÃO

Maria Alzira Brum Lemos
Ou a reconstrução da memória

 

                                           “Não se pense, meus senhores, que a memória
                                                        é coisa do passado
                                                        Ela é matéria do presente, deste infinito presente
                                                        e umas vezes está no que foi e outras no que
                                                        vai ser e sempre será”.
                                                                                   Fernando Batalha, “Aforismos".

1.

   Como nos disse em tempos François Jacob, num texto tão excitante como de clara feitura, “A vida é mais questão de engenhoquice do que de engenharia”.

  Referia-se, no caso vertente, à vida carnal, material do Homem elaborada através dos séculos, mas eu estou em crer que se referiria efectivamente à vida em geral, fôsse ela de seres humanos ou de tigres, de lobos de Alsácia ou do nosso estimado “Ornithorhynchus anatinus”, animalzinho estimável, protegido pelas leis internacionais e que, a quem o viu pela vez primeira com olhos de ver, deve ter comunicado um espanto que apenas podemos conjecturar ou inferir a partir de relatos cabais e com chancela científica.

   O mesmo se dá igualmente, arriscaria dizer, com certos livros – que naturalmente são representação dos seus autores ou, melhor, das congeminações dos seus autores em certa fase de vivência ou de escrita. Livros únicos, de uma feitura que não se pode entretecer de novo sem se correr o risco da repetição desnecessária, ainda que o que se pretendesse fôsse o de uma mais perfeita adequação, mais exacta preparação como uma iguaria de maestro ou de transmutador. E livros absolutamente, felizmente compósitos, com suas diversas partes e escaninhos, aparentemente intercambiáveis como puzzles, como labirintos comunicacionais, como peças de um mecanismo intelectual, literário e feito a partir de uma escrita cujo cimento mais evidente é o que parte da memória, do como e do porquê em que tudo surgiu e, depois, se estruturou para fazer sentido – ainda que um sentido que a uma primeira vista (uma primeira leitura?) não é imediatamente reconhecível ou, ia dizer, mesmo descriptável a quem dele se aproxime sem ter tido a precaução de verificar que se está a contas com um texto-ornitorrinco.

  No qual se mescla, como se fosse só por acaso, uma certa angústia de viver  trespassada de súbitas alegrias (ou comoções) que principalmente vêm da infância ou da extrema juventude, que é onde as coisas todas começam antes de termos necessidades evolutivas interiores em que a engenhoquice a que se reportava o insigne autor de “O jogo dos possíveis”, livro onde as hipóteses biológicas são postas em equação (mas também de “A estátua interior”, autobiografia a que eu melhor chamaria viagem memorialística por si mesmo e pelos outros que lhe certificaram a existência e a permanência como pessoa em todas as direcções) assenta arraiais de maneira significativa e incontornável.

 2.

   a. Não estamos a contas com um livro ameno ou, dito de outra forma, amável. A autora, como se fosse uma bióloga-cirurgiã, disseca o texto (a memória dos eventos que o constroem), descarna a escrita de forma simuladamente (mais que dissimuladamente, num jogo que nos arrasta como cúmplices para dentro das páginas) natural, tranquila, habitual dos meios em que nos faz excursionar: areópagos universitários, terras do (seu) estrangeiro, entrepostos colegiais que frequentou, cidades e lugares onde residiu ou visitou, em suma - elementos que, mais tarde, na nossa existência civil, constituem mesmo que o não queiramos lembranças por extenso e que são, por si sós, lugares estranhos.

 Creio que me faço entender...

 No entanto, não nos deixemos iludir, pois este é também um livro vincadamente filho de uma prestidigitação que os poetas aliás assumem sem que o mostrem excessivamente, uma vez que isso faz parte, diria, das regras do jogo em que se cruzam realidade e imaginação e já se sabe, desde Madame de La Fayette e do seu canónico “A princesa de Clèves”, que há fantasias que são muito mais reais que presumíveis realidades, ou dito de outro modo: que para uma situação ser vincadamente real necessita do colorido da construída fantasia, que é alma da escrita, dos relatos e das efabulações, da célebre folha de papel branco vencida pelas palavras e as frases organizadas de determinada feição.

  Ou seja, exactamente, da Literatura.

   b. “Ninguém nunca admitiu ter feito parte da Ordem”, diz-nos, significativamente, a autora a dado passo ao referir-se à entidade que consubstancia o título deste seu livro simultaneamente aberto e fechado, convivente e provocatório, simbólico, metafísico e no entanto muito concreto nas recorrências a que alude (da infância, dos encontros e desencontros, mesmo da própria nomenclatura discursiva e circunstancial dum quotidiano pós-moderno que subitamente irrompeu e riscou transversalmente um mundo onde está mesmo presente, ainda que em fotografia desfocada, o erotismo interactivo ou digitalizado e os sinais de uma técnica e de uma ciência entre “a opacidade e a transparência” (sic) e que, se têm a ver com a evolução das sociedades, muito mais o têm com a resposta que cada um lhe possa dar, seja em escrita seja em existência comum e de todos os dias civis.

   É um livro onde as personagens, vistas ou recordadas, sentidas ou apenas criadas para que o pensamento e o sentimento possam existir numa escrita que incessantemente se questiona, ora se perdem ora se encontram, revoluteando como imagens num espelho, como dizia Fulcanelli, no espelho que é este livro onde a autora (gémea ou mulher com rabo como um ornitorrinco? alguém pagando o pato ou madame bovary entrevistadora de Templiakov? poetisa dando comida às plantas carnívoras ou gestora da Coisa Perdida onde se pesquisa a língua?) se expressou.

  Essa língua, afinal, que dá origem a universos alternativos – ou seja, da escrita – que foi segundo os cânones o princípio do Mundo e que é pelo menos, indestrutivelmente e enquanto houver tempo, memória e terra para os conter, aquilo com que se faz a vida passível de existir num livro, em todos os livros, neste livro simultaneamente atormentado,  complexo, sugestivo e onde, afinal e ao cabo, se consegue aperceber uma difusa e conquistada e sentida alegria de existir.

Maria Alzira Brum Lemos
A Ordem Secreta dos Ornitorrincos
São Paulo, Amauta Editorial, 2008

Maria Alzira Brum Lemos no TriploV

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc. 

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).  

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).     

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),  “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil)...

Prefaciou os livros “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários” de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.