NICOLAU SAIÃO

LUA

Há palavras que toda a gente conhece
que são quase comuns a todas as pessoas
Palavras propagadas através da gelada
superfície dos números e dos tempos
que nos cercam com o seu peso imaginário
de coisas construídas.

Por vezes um cadáver entre as pontes
justifica a grande evidência.

Pensemos na palavra Lua por exemplo.
Não há ninguém que não saiba o que é a Lua.
Por presença constante em todos os espaços
paralela ao ser dos seres e dos signos
de aqui até ao infinito
a olhamos de verbo a verbo.
Mas meditemos

no que efectivamente significa
- ela e o seu rumor transposto
ela e o silêncio multiplicado
da sua imagem mortal.

No fundo   nada significa
A não ser pelo oculto existir do sensível
plano da luz e da penumbra
no mundo das cidades.

Está no alto   é verdade   emitindo ruídos
tão nítidos e negros tão débeis na distância
que houve que edificar um espectrómetro sonoro
a fim de lhe captar os arquejos
de animal pré-histórico. Está algures

num deserto da Austrália
esperando pacientemente algo de novo e vital
e o seu rosto escarlate de serpente
não é um objecto mais para o tempo da pedra
e do metal incompletos. Da sua carne
brota um falo por vezes   é uma antena
para as plantas e os lagartos perpétuos.

Quantas vezes
o gélido e inquietante murmúrio das areias
se confundiu na sua brancura devastada?
Ei-lo no descampado: uma sombra uma ausência
proibida e sábia
longo e espiralado como um nervo do crâneo
como um rápido sulco fotográfico
no peito em ruínas.

Há rostos ao longe  memória de hecatombes.

Não é que a Lua seja inconfessável abismo
embora tenha um corpo projectado e essencial
de vida e morte. Não falemos sequer
nos seus enquadramentos diversos
nas suas presenças repentinas, nos seus credos
ou no fugaz tecido laminar da sua
franja de esquecimento. Apenas
a palavra conta, conquanto nada ultrapasse
o exterior universo do seu Universo próprio.

E ainda
que tudo lhe faculte a impossibilidade
de estar nos outros como em si ou de ser afinal
matéria de febris prestígios
 - uma parede   trapos velhos   carnagem -
não está em nada não reside em nada

- ela não está em nada não rola sobre nada
que da boca não saia   quer seja acto ou urina
um rasgão de tiros na noite um vidro a mais
quer seja a incontável câmara do sangue
dos olhos esmagados
das negruras com que o sopro do tempo passa

e flutue
e penetre
e comunique
e seja enfim em todo o lado o segmento infindável

da dúvida.

 

in “Os objectos inquietantes”(1994)

nicolau saião

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.

  Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc. 

   Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).  

  No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).     

  Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).

  Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.

  Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),  “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil)...

 Prefaciou os livros “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários” de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).

   Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.

  Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).

   Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.

  Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.

     É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.