NICOLAU SAIÃO
Entrevista concedida a Ruy Ventura

"A Poesia é o símbolo mais alto da dignidade da pessoa humana.", declarou Nicolau Saião a O Distrito de Portalegre.

Tal como noticiámos na semana passada, Nicolau Saião comemora este ano 30 anos de vida literária, artística e cívica. A exposição realizada pela Biblioteca Municipal com o apoio do pelouro da Cultura da Município portalegrense é uma homenagem justa a um homem que tem dado o seu melhor a Portalegre, mesmo sabendo que seria alvo de "tentativas de ocultação" e de "censuras discretas" da parte daqueles que, muitas vezes, ele próprio apoiara noutras ocasiões. Nascido em Monforte em 1946, veio aos três anos para esta cidade, onde tem divulgado a arte e a poesia em locais tão diversos como este jornal, a revista "A cidade", a rádio, etc. Poeta d' "Os Objectos Inquietantes" e de "Flauta de Pan", o terreno privilegiado "para a sua aventura da palavra é", como refere Albano Martins, "o do real quotidiano".

O Distrito de Portalegre - Nicolau Saião nasceu em Monforte e, aos três anos, veio para Portalegre. Qual a sua ligação a estas duas localidades?

Nicolau Saião - A minha ligação é de duas ordens: a interior e a exterior. Em relação a Monforte, apesar de bem pequeno, tenho memórias algo fundas: vejo-me a passear com os meus pais no jardim, junto ao castelo, pelas ruas onde tinham lojas, carpinteiros, funileiros, um alfaiate... Recordo especialmente a casa de minha madrinha Mariana (da conhecida família Mata) que tinha uma estufa e um grande sótão, que me serviram de modelo para a peça de teatro "Passagem de Nível". No que respeita a Portalegre, tenho as profundas vivências exteriores que, devido à passagem dos anos, se vão transformando em memórias: os grandes verões, com passeios pela Corredoura, pelas festas e romarias (Sr. do Bonfim, Sra. Santana, a festa da Penha...). Enfim, a sequência da infância, da adolescência e da idade madura.

DP - Em que medida o republicanismo de seu pai, João Garção, o influenciou?

NS - Apesar de ter vários amigos monárquicos, e de uma absoluta tolerância em relação a credos diferentes do meu, sempre vi na república a possibilidade de o homem comum ser dignificado, dependendo apenas do seu mérito e do seu carácter.

DP - Fez a Guerra de África (na Guiné). Essa experiência humana marcou-o na sua poesia?

NS - Creio que sim, seguramente. Contemplei muitos momentos penosos (também os tive...). Apercebi-me do absurdo e da brutalidade do sistema ditatorial, que prejudicava das baixas até às altas patentes. Conheci militares (fossem praças ou oficiais) de grande nobreza e força de carácter. Para mim o exército pode ser um local de junção de excelentes profissionais, desde que envolvido por uma democracia humanista. A poesia que lá fiz e que lá pensei reflecte a meu ver o drama profundo em que estavam imersos os homens, a região e a própria natureza envolvente. A partir dessa estadia, creio que se sente no que escrevo a presença de África que, como disse o Poeta, "é um continente surrealista".

DP - Como se iniciou a sua entrada na escrita?

NS - Os primeiros poemas publiquei-os no "Diário de Lisboa", no "Suplemento Juvenil", que foi um alfobre de autores depois conhecidos. Depois de vir da tropa, comecei a escrever n' "O Distrito de Portalegre", com o beneplácito do seu director José Dias Heitor Patrão. Fui sempre aqui bem tratado com a maior consideração e estímulo. Tenho, confesso, uma ternura grande por este jornal.

DP - Como se processou e o que significou para si o seu contacto com o surrealismo?

NS - Em 1969, vindo de férias a Portugal (estávamos na Guiné), Carlos Martins comprou alguns livros de Cesariny, Ernesto Sampaio, Virgílio Martinho e Herberto Helder. Na volta, assentámos em que, assim que regressássemos, escreveríamos a estes autores para lhes manifestar o nosso companheirismo. Assim fizemos. A abertura surrealista possibilitou-me contactar com os universos que eu já descobrira por volta dos 15 anos, ao ler uma revista brasileira que trazia quadros e poemas de Max Ernst, Breton, Éluard e Victor Brauner.

DP - Qual o papel do surrealismo na sociedade actual?

NS - O papel de avaliar e analisar o mundo de uma forma aberta e criativa, propondo eventuais soluções para problemas graves que se nos colocam: a globalização, a desertificação do imaginário, as novas violências, a tentativa de instauração de novos fascismos sociais.

DP - A atribuição do Prémio Revelação em 1991 foi um marco importante na sua vida literária. Em que medida alterou o seu percurso?

NS - Possibilitou que tentativas de ocultação de índole provinciana, medíocre e invejosa não mais tivessem verdadeiro efeito. Há gente que não gosta de nos ver em foco, porque isso é a prova do seu falhanço e da sua incapacidade, mesmo que os não contestemos. Ao defrontarem-se com a opinião pública nacional, que não controlam, como por vezes acontece localmente, podem ficar responsabilizados, o que acima de tudo temem, porque no fundo conhecem bem os seus limites. Além disso, o prémio deu-me novas audiências e afirmou na prática o sentido da minha caminhada.

DP - Nicolau Saião é um homem dos jornais há 30 anos. Que diferenças tem encontrado no jornalismo?

NS - De um ponto de vista formal e técnico, houve melhorias sensíveis - excepto em alguns pasquins sem emenda. De um ponto de vista humanista, certos orgãos informativos têm baixado o seu nível com o pretexto de que as populações também têm baixo nível. Pura mistificação: não é pelo facto de as pessoas terem tendências negativas que vamos incrementá-las com o pretexto de que estamos a servi-las. No fundo, o que esse jornalismo pretende é ganhar dinheiro e fabricar novos primários.

DP - A sua acção cívica e cultural em Portalegre tem tido altos e baixos. Como a caracteriza?

NS - Os altos corresponderão decerto a períodos mais favoráveis na gestão social dos ritmos nesta localidade. Não esquecendo que há alturas de maior criatividade e difusão, dependendo de factores diversos. Os baixos reflectirão certamente ocasiões de menor disponibilidade, menores facilidades concedidas e, até, as censuras discretas a que um autor inconformado fica por vezes sujeito em localidades onde permanece um fechamento utilizado por entidades que assim procedem ao arrepio dos interesses da comunidades.

DP - Tem sido um divulgador incansável da Poesia. Que papel lhe reserva neste século XXI?

NS - É uma luz que sempre brilha nas trevas. Claro que, aqui, Poesia nada tem a ver com versalhada insensata e pretensiosa. A poesia é, a meu ver, o símbolo mais alto da dignidade da pessoa humana. De um ponto de vista ético, criativo e generoso. Talvez isso explique a marginalização e a ocultação a que certa gente tenta submeter os poetas, substituindo-os por pseudo-intelectuais a meio-pano (mesmo que sejam académicos) com características de pequenos burocratas hegemónicos e, no fundo, como referia Eça de Queirós, "pilriteiros e apepinadores".

DP - É poeta e pintor. Qual das duas dimensões lhe dá maior satisfação estética?

NS - Ambas. Cada uma delas nos faz falta para excursionarmos pelos seus dois continentes. Por vezes, como que numa febre ou num encantamento, só se escreve; noutras, as imagens, as cores e os traços aparecem em catadupa e há que dar-lhes a resposta que nos pedem ou nos impõem.

DP - Que poetas e que pintores o marcaram?

NS - Não posso deixar de referir à partida a minha "santíssima trindade": Cézanne, Thomas Mann e Schubert (este último, apesar de músico, era também um poeta através do que fazia e do que vivia). Depois posso citar (e misturo propositadamente portugueses e estrangeiros) Raul Brandão, Yves Bonnefoy, Régio, Branquinho da Fonseca, Guillevic, António Franco Alexandre, Asger Jorn, Bulgakov, Rilke, Cristovam Pavia, etc..

DP - Um novo livro de poesia ainda este mês. Que projectos se aproximam?

NS - Alguns, e diversificados. Tenho na calha a junção de crónicas e prosas diversas (onde Portalegre marcará forte presença): "As Vozes Ausentes". Há a tradução para a Black Sun Editores dos poemas de H. P. Lovecraft; para esta editora, ainda, um livro misto de prosa e poesia intitulado "Nigredo/Albedo - O Livro das Translações". Com Luís Vintém, estamos já a articular um volume que mesclará a foto, o poema e o texto em prosa: "Portalegre vista por NS e LV". Tenho também o livro de poemas "Cantos do Deserto", inspirado pelas minhas estadias nas terras desérticas de Almeria - o Campo de Tabernas. Para além disto, continuarei com as traduções de autores diversos e do meu apreço e, por último, a continuação do projecto, que é já uma afirmação, do suplemento cultural "Fanal", que tem tido a colaboração amiga e interessada de confrades de diferentes proveniências. Isto tudo reflecte a minha ligação ao Alentejo, nomeadamente a São Mamede, apesar dos amargos de boca a que os criadores estão por vezes sujeitos.

DP - Para finalizar, que se lhe oferece dizer?

NS - Gostaria de pedir aos leitores que reflictam nos problemas que o novo milénio nos coloca: tendências hegemónicas da parte de certos dominadores, visando apenas o lucro e o poder indiscriminado; necessidade de saudáveis ritmos de vida serem incrementados; aprofundamento dos direitos que a todos se põem: melhor saúde, melhor instrução visando melhor educação, adequação do sistema judicial hoje total e medularmente corrompido do ponto de vista ético; maior respeito dos poderes públicos pelos que devem ser o alvo último da sua acção - as populações em geral e, dentre estas, os mais desprotegidos e necessitados.